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Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2024


Saúde

"Governo erra diagnóstico ao apontar falta de médicos"

Marina Chiarelli* - Do Portal

09/07/2013

 Arte: Carlos Serra

Após forte reação de profissionais e da comunidade médica brasileira à contratação de médicos estrangeiros para reduzir o déficit de profissionais no Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente no interior e nas periferias, o governo federal anunciou na segunda-feira, 8 de julho, mais uma proposta: o curso de medicina, na rede pública e privada, vai ser ampliado de seis para oito anos de duração, sendo os últimos dois anos de trabalho obrigatório no SUS. A norma faz parte das medidas provisórias editadas pela presidente Dilma Rousseff instituindo o programa Mais Médicos, que o governo considera um investimento na formação dos profissionais brasileiros.

Porém, a onde de protestos que agita o país tem levado às ruas profissionais insatisfeitos com as condições de trabalho na rede pública e com as medidas anunciadas pela presidente Dilma. No protesto “Vem para a rua pela saúde”, realizado no dia nacional de mobilização, 3 de julho, médicos de 26 estados e do Distrito Federal exigiram melhorias no setor e mais financiamento para a saúde pública.

Entre as principais reivindicações, as entidades médicas do país pedem a criação da carreira de estado, visando à interiorização de profissionais; a realização de concurso público com piso salarial estabelecido pela Federação Nacional dos Médicos (Fenam); e a obrigatoriedade da prova de revalidação do diploma para médicos estrangeiros.

Para exercer a profissão no Brasil, todo profissional de medicina formado no exterior precisa revalidar o diploma através do Revalida, uma prova do Ministério da Educação, feita pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). A proposta do governo é substituir o exame por um período de avaliação dos médicos estrangeiros em instituição brasileira de ensino por três semanas. As entidades de medicina condenam a flexibilização da avaliação.

Nas últimas quatro edições realizadas, a taxa de aprovação manteve-se inferior a 10%. Em 2012, por exemplo, de 922 pessoas inscritas, apenas 77 foram aprovadas (8,4%). A prova de revalidação do diploma também ocorre em diversos países da Europa, da América Latina e nos Estados Unidos, e o sistema de avaliação é considerado mais rigoroso que o brasileiro.

O presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Florentino Cardoso, afirma que o caos da saúde pública é muito mais que uma questão orçamentária, e que os problemas esbarram na má gestão do Ministério da Saúde. Para o médico, a atual gestão do ministério contribui para as más condições dos hospitais públicos, pela falta de incentivo aos profissionais e de investimentos na infraestrutura de hospitais e escolas médicas, afetando diretamente a população.

O presidente da ABM também aponta defasagem salarial. Atualmente, o salário inicial de um médico da rede estadual do Rio de Janeiro, para 20 horas semanais de trabalho, é de R$ 1.500, o mesmo oferecido no último concurso anunciado pela prefeitura do Rio. O valor é um quinto do piso salarial estabelecido pela Federação Nacional dos Médicos (Fenam), de R$ 9.688, e do oferecido pelo governo aos médicos estrangeiros  Divulgação

Em entrevista ao Portal, Florentino Cardoso alerta sobre os problemas na estrutura dos hospitais brasileiros sob gestão do Ministério da Saúde, defende as entidades médicas e apresenta caminhos para melhorar o sistema de saúde pública do país.  

Portal PUC-Rio: O governo alega que só trará médicos estrangeiros para preencher vagas não ocupadas por brasileiros. Como o senhor avalia esta proposta?
Florentino Cardoso
: Eu acho que o governo está fazendo uma avaliação enviesada, e esse viés é politiqueiro e eleitoreiro. O governo erra o diagnóstico ao dizer que o problema do caos instalado na saúde pública é por falta de médicos, e errar o diagnóstico em medicina significa errar o tratamento. Então o tratamento vai estar fadado ao insucesso, e isso nós não gostaríamos, pois a população está precisando ser bem assistida.

Portal: As entidades de medicina são contra a vinda de médicos estrangeiros?  
Florentino Cardoso
: As entidades de medicina não questionam a vida de médicos estrangeiros, e sim a falta de revalidação do diploma. Não tem como avaliar os médicos em apenas três semanas, como o governo quer fazer. É um jogo de cena. Todo país sério recebe médicos estrangeiros, mas avalia todos eles de maneira bem feita. O objetivo disso é não expor a população a médicos desqualificados. E, se o Brasil precisa adotar seriedade para cuidar da saúde, que é o nosso bem maior, não há motivos para que o governo não faça revalidação de diploma através do Revalida. Trazer médicos sem qualidade vai expor a população a riscos, e nós vamos responsabilizar o governo por qualquer dano que algum paciente possa sofrer.

Portal: Como o senhor separaria os interesses corporativistas das entidades médicas e os interesses da sociedade?
Florentino Cardoso
: O interesse da sociedade é ser bem atendida. Não tem problema nenhum trazer médicos de fora, desde que sejam bem avaliados. Nós, entidades médicas, não podemos omitir opinião e expor a população. Não admitimos que um médico estrangeiro venha trabalhar no Brasil sem ser avaliado. É preciso avaliar a qualidade, o conhecimento e a habilidade dos médicos que vão lidar com os nossos pacientes. Nós estamos verdadeiramente protegendo a população. A nossa corporação defende a necessidade de os médicos terem adequadas condições de trabalho, possibilidade de se manterem atualizados e terem uma remuneração digna. Isso é fundamental para que os médicos possam dar sempre o melhor para a população. Nós não admitimos que um médico mal remunerado, trabalhando sem condições e sem se atualizar possa atender dignamente a população que o procura. Mas é claro que médicos de qualidade são sempre bem-vindos no Brasil.

Portal: O governo pretende trazer os médicos estrangeiros para trabalharem nas periferias do país, longe das capitais. O que o senhor tem a dizer sobre a iniciativa?
Florentino Cardoso
: Nenhum médico pode trabalhar em um lugar em que faltem aparelhos para o atendimento, água e luz. Seria muito bom se, dentro da carreira de estado, adotassem o piso salarial da Federação Nacional dos Médicos (Fenam). Nos últimos três concursos públicos feitos para a cidade e para o Estado do Rio, o salário-base proposto para 20 horas semanais era em torno de R$ 2 mil, e isso certamente não motiva nenhum médico. Muitos profissionais acabam recorrendo a uma jornada dupla, o que dificulta o atendimento dos pacientes, pois nem sempre conseguem conciliar os dois serviços.

Portal: Qual deveria ser a prioridade do governo para melhorar a saúde pública?
Florentino Cardoso
: Melhorar o financiamento da saúde deve ser sempre prioridade do governo. Nós identificamos três grandes problemas: o subfinanciamento, a gestão do Ministério da Saúde, que é ruim; e a corrupção do país, que é desenfreada.

Portal: A carreira de estado para os profissionais de medicina seria uma solução para resolver a carência de médicos em regiões carentes do país?
Florentino Cardoso
: Já houve algo semelhante no país em relação ao Judiciário. Era muito difícil conseguir alocar promotores e juízes em vários municípios. Com a carreira de estado, certamente vamos colocar muitos profissionais em cidades em que hoje ninguém quer trabalhar, como no Judiciário. Além da carreira de estado, o governo federal precisa investir na infraestrutura, porque onde se diz que há poucos médicos o salário é péssimo e as condições de trabalho são terríveis. Tem que haver um reconhecimento de que a saúde está subfinanciada, que o setor precisa de mais recursos. Precisamos reconhecer também que a gestão é politiqueira e eleitoreira, e que ainda existe muita corrupção no país. O governo federal teve a oportunidade de melhorar o repasse de recursos quando foi regularizada a Emenda 29 (que garante percentuais mínimos a serem investidos em saúde pela União, estados e municípios), e a presidente Dilma Rousseff se furtou da ação. Outra oportunidade foi no ano passado, quando o orçamento do Ministério da Saúde era de R$ 93 milhões, e o ministro Alexandre Padilha deixou de utilizar R$ 17 milhões para investimentos na saúde. Se reconhecemos que a saúde é subfinanciada, como é que não se utiliza um recurso disponível? Divulgação

Portal: O senhor considera que a atual situação dos hospitais públicos do Brasil é resultado da administração do Ministério da Saúde?
Florentino Cardoso
: O Hospital Geral de Bonsucesso (HGB) era referência em transplantes. Hoje as salas de transplantes estão desativadas e o hospital está em péssimas condições.  O HGB é gerenciado pelo Ministério da Saúde, o que mostra que a atual gestão é muito ruim. Outro exemplo é o Hospital Federal dos Servidores do Estado, mantido pelo governo federal. Já foi a maior referência do país, era referência para a Presidência da República. Mas, recentemente, recebi de uma pessoa que trabalha lá fotos que mostram o Hospital dos Servidores completamente sucateado.

Portal: Além da falta de ações e serviços necessários para a promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças, o senhor acredita que o país precisa investir na qualidade das escolas de medicina e na residência médica?
Florentino Cardoso
: O gasto na saúde em relação aos tratamentos é enorme. Promover a saúde, prevenir e detectar precocemente as doenças são iniciativas que precisam ser motivadas cada vez mais. A chegada da vacina de HPV ao SUS, por exemplo, foi uma excelente iniciativa. Mas melhorar as escolas médicas do país também é muito importante. Há cerca de três anos, havia um total sucateamento nos hospitais universitários federais, que têm melhorado, só que muito lentamente. Precisamos investir no aparelho formador para que o Brasil tenha condições de formar ótimos profissionais.

Colaborou Jana Sampaio.