Um mês após o início dos movimentos que tomaram as ruas, seus contornos começam a se definir, avaliam cientistas sociais do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes) do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, reunidos para um debate sobre as “Jornadas de Junho” na quinta-feira, 4. Ao fazer um balanço sobre as pautas, reivindicações e conquistas das manifestações, os sociólogos lembraram que muitas das demandas da população já haviam sido levantadas e expostas aos governos locais, voltando à tona com novas configurações e peculiaridades. No entanto, os sociólogos acreditam ser possível, desde agora, identificar e analisar traços autênticos deste movimento, como a reivindicação por autonomia.
Marcelo Burgos, pesquisador da sociologia urbana, cidade, cidadania, considera injusta a crítica de que o Brasil estava completamente adormecido:
– A sociedade já dissera não às questões do metrô, das remoções arbitrárias e da Aldeia Maracanã, e o governo passou o rolo por cima. Havia um silenciamento pelos governos, uma grande organização do poder, um “decisionismo”, uma arrogância, somadas a um Judiciário também silencioso. A sociedade civil organizada precisa se reorganizar.
Citando o sociólogo Manuel Castells – que afirmou que o espaço público é um caos criativo –, Burgos justificou a natureza difusa das manifestações, assim como a adesão de diferentes setores: “É normal que novas pautas apareçam e que diversos grupos queiram se manifestar”. Para ele, teriam peso, mas não seriam fatores decisivos a reação da polícia, os gastos com a Copa ou a volta da inflação: seriam apenas hipóteses para explicar a explosão das ruas, que “deixou de ser a força de 9 ou 10 mil jovens para se transformar numa massa que adere quase que instantaneamente à movimentação, numa multidão que quer encontrar caminho para temas que estavam silenciados”.
Clamor por autonomia e rejeição a ‘Brasílias’ impostas
Luiz Werneck Vianna reiterou que a participação nas tomadas de decisão das políticas públicas estão na ordem do dia. Para o sociólogo, “foi tudo ao mesmo tempo agora”, e todas as demandas poderiam ser traduzidas numa só: autonomia.
Citando a construção de Brasília como “um projeto decisionista” e o governo JK como um dos momentos “mais exaltados de uma modelagem que mudou a democracia do Brasil”, ao aproximar novas elites empresariais do Estado, Werneck Vianna culpou o “surto de modernização” que acompanha a sociedade brasileira desde os anos 30, “sem participação nem deliberação”. E comparou esses períodos ao momento atual:
– O processo de modernização impôs sua marca a tudo. A Fifa entrou nesse balaio. Foi um susto para as pessoas ver lugares sagrados para elas, como o Maracanã, serem retrabalhados à moda dos figurinos neoliberais europeus: “Vocês modernizaram sem nos dar o moderno, excluindo mais uma vez”; “Vocês fizeram pequenas Brasílias futebolísticas sem nos consultar”. A partir daí, poucos vão se atrever a reiterar essas políticas. A deliberação está na ordem do dia.
Democracia participativa não se resume a plebiscito
Para Burgos, a sociedade quer participar mais ativamente das tomadas de decisão nas políticas públicas, e o tema da articulação entre democracia representativa e democracia participativa deve ser traduzido numa maior participação popular nas instituições democráticas. Se, de um lado, a reforma do sistema político está posta, pois “há um senso de que grande parte da rua tem como alvo as instituições da representação política fundadas no voto”, de outro, há a necessidade de fortalecer as instituições representativas:
– A sociedade não reconhece mais o prefeito que elegeu há pouco mais de um ano, e os governos, só porque foram eleitos, acham que podem fazer tudo. A democracia participativa, que está longe de se limitar a plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular, permite uma cultura de participação muito além de mecanismos políticos mais estritos. Tem que estar presente em todas as instituições.
Pesquisadora de sociologia da cidade e políticas públicas urbanas, Maria Alice Rezende de Carvalho ressaltou que um regime democrático deve “consultar as margens e ser capaz de notar o que as ruas podem oferecer como ponto de vista reveladores daquilo que as instituições não enxergam”.
Brasileiro mostra maturidade
Maria Alice lembrou que a sociedade brasileira não teve medo de mudanças em episódios que poderiam ser traumáticos, como as várias trocas de moeda e o racionamento de energia, em 2001. Ela acredita que a sociedade tem mostrado maturidade e capacidade de reflexão. Como saldo da efervescência das ruas, ela destacou a construção de uma comunidade indeterminada:
– O fato de indivíduos ordinários serem capazes de criar um novo padrão cultural de comunidade, que se manifestou, refluiu, poderá voltar. É uma dinâmica que diz respeito às interações mais do que a identidades. É possível extrair daí a ideia de renovação democrática e não das utopias, de maciços filosóficos, de grandes lideranças messiânicas, mas de nós mesmos, indivíduos ordinários, que sabemos ir às ruas e constituirmos comunidades de interesses.
Quanto a projeções futuras, Maria Alice tem esperanças de que um mundo com mais diálogo possa ser construído nas próximas décadas:
– Estamos diante de um movimento que sugere que a solidariedade possível é uma solidariedade na interação. É uma solidariedade reflexiva, não por adesão. Temos interesses em comum, sabemos lidar com a diversidade de identidades, ainda que seja um pacto temporário, um acordo para enfrentarmos pragmaticamente as nossas questões.
“Há um movimento global por direitos”
Apesar de tratar-se de um fenômeno nacional, cada estado impõe a análise de particularidades que, para Burgos, devem ser estudadas, fazendo um balanço por estado. Maria Alice acrescenta que os acontecimentos têm colorações locais, mas é possível observar uma onda mais larga que vem crescendo desde os anos 1980:
– Há um movimento globalizado por direitos que certamente tem tonalidades globais. Estamos falando de uma coisa maior que não afeta apenas a democracia brasileira, a juventude brasileira, as demandas por direitos no Brasil; estamos numa onda ascendente, numa luta globalizada por direitos que se manifesta de muitas maneiras, com traços muitos próximos a esses a que temos assistido, desde pelo menos o final dos anos 80.
Segundo Maria Alice, um movimento planetário tem sacudido as praças do mundo, seja nos arredores de Paris, nos bairros pobres de Londres, nos anos 2000, nas praças das cidades do Oriente Médio, da África, a partir do ano de 2010, no Occupy de Nova York no outono de 2011 e em Istambul. Fazem parte desse movimento global por direitos: a valorização da liberdade e a desmilitarização da polícia, regularizando ações violentas; demandas por moralização da política e diminuição dos índices de corrupção.
Segundo Luiz Werneck Vianna, há um fenômeno geracional nas “jornadas de junho”. Ele não vê os ventos de uma revolução, mas acredita que o que está à tona é um movimento propício para o aprofundamento das instituições da democracia. E que, por mais que muitos temam os caminhos que podem ser tomados, não há justificativas para temores maiores: “Vamos pisar com cuidado, porque queremos defender nossos sonhos”, citando.
Para os especialistas, parece cedo para falar de um resultado dessas “jornadas”, pois, ao que tudo indica, o movimento começa a se aprofundar:
– As Jornadas de Junho já entraram por julho, estão longe de estarem concluídas, e não é hora de fazermos balanços, juízos ou uma espécie de avaliação do resultado do movimento. Estamos ainda convivendo com ele. Há marcas visíveis de que o movimento está se aprofundando e, em alguns casos, assumindo outras características. Estamos lidando com as características do movimento, agora em uma nova face – resumiu a professora Maria Alice Rezende de Carvalho, citando as ações em estradas, que interromperam a circulação de carros e cargas em vias estratégicas do país.
A revolução deve ser transmitida
Se por um tempo acreditou-se que as tecnologias da informação poderiam tirar as pessoas das ruas e segmentar de acordo com preferências muito localizadas, hoje não se tem dúvidas de que é exatamente o contrário: elas não só repovoaram as ruas, como apresentaram uma enorme capacidade de lidar com a adversidade.
Werneck Vianna defendeu que estiveram nas ruas as classes médias mais novas que cresceram numa sociedade cada vez mais qualificada como uma sociedade de direitos, e que as bandeiras levantadas foram pela concretização dos direitos já adquiridos:
– Crescemos numa sociedade de direitos que tem cada vez mais essa qualificação. Mas esses direitos ficaram distantes, abstratos, não se concretizaram. A Carta de 1988 não é uma constituição a ser combatida.
Werneck Vianna lembrou ainda o papel da imprensa na democracia brasileira:
– O que temos feito é denunciar a presença do passado, do antigo, do anacrônico. E durante muito tempo foi pela mídia que isso se deu, nos escândalos que dia a dia se repetem, no acompanhamento de CPIs, de processos criminais que ameaçaram a República com a corrupção.
Maria Alice traçou um paralelo entre as jornadas de junho e movimentos nas praças e parques de Paris, Nova York, Istambul, e falou do ressurgimento da cidade como um centro para se pensar política, centro esse que muitos trabalhadores não têm condições iguais de acesso, devido à atual morfologia urbana, no caso do Rio. Para ela, a manifestação também denunciou a deficiência da opção pelo modelo rodoviário.
– A cidade é um plano de fundo de conflitos, que não são necessariamente para serem resolvidos de maneira violenta. Eles têm que se expressar e têm que ter canais institucionais para que se expressem e busquem a melhor solução – apontou Maria Alice.
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