Presente nas homenagens em nome dos 100 anos da morte de Machado de Assis, na PUC-Rio, a escritora Nélida Piñon fez um discurso apaixonado, no qual declarou um dos principais motivos de sua admiração pelo autor de clássicos como "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro". Em entrevista para o PUC-Rio Digital, a autora, que foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, conta o que acha de tão fascinante na vida e na obra de Machado de Assis: “Se Machado conseguiu, nós não temos o direito de errar.”
- A senhora citou Machado como o maior escritor brasileiro. Por que?
- Não só eu o acho o maior escritor brasileiro, como o brasileiro mais fascinante. A vida dele toda é excepcional. É uma vida que contrariou o destino que lhe teria sido reservado. Porque ele estava cercado de adversidades. Ele se opôs a todas elas e, ao morrer, era presidente da Academia Brasileira de Letras, era um dos mais ilustres brasileiros. Sua obra tem uma coisa muito rara, ela tem uma dimensão universal. A limpidez suposta de Machado de Assis tem, nas suas entrelinhas, significados poderosos. Ela é uma literatura toda de alusões, de insinuações, que não diz tudo que outro escritor teria que dizer para imaginar que está sendo entendido. A elaboração intelectual de Machado dificulta não a leitura, mas o entendimento total do leitor, porque este precisa se dar muito pra se acercar de Machado. Porque Machado entendeu, à perfeição, a complexidade humana.
- Qual foi a sensação de presidir a ABL, que foi fundada e comandada por Machado durante 11 anos?
- Ah, eu me senti muito bem, muito a vontade. Os acadêmicos foram encantadores comigo e em nenhum momento suspeitaram da minha eficácia. Eles acharam que eu já tinha provado minha eficácia no meu período de interina. Então, eles me permitiram ser, votando em mim, presidente do centenário, que não estava nada organizado – eles não tinham previsto nada anteriormente –, eu tive que começar do zero e dizem que foi uma beleza. Não fui presidente comum. E acho que foi importante para as mulheres do meu país que uma mulher escritora tenha sido presidente, no centenário, da instituição cultural mais importante do Brasil.
- No centenário de morte de Machado, sua personagem mais famosa, Capitu, foi protagonista de série de TV na Globo. Qual é a importância de, ainda hoje, refletirmos sobre a traição de Capitu, que no livro "Dom Casmurro", Machado não diz com precisão se ocorreu ou não?
- Porque não é a questão capital do romance. A traição é o menos importante. A traição de Capitu, nas mãos de um outro escritor, ninguém se lembraria. Nós só discutimos a traição de Capitu porque o livro foi escrito por Machado de Assis, e coincide ser um grande romance. Porque a construção romanesca relativa a esse romance é para criar ambigüidade. As pessoas se esquecem que quem está contando o livro que você está lendo é o Bentinho, é o Dom Casmurro. Machado não quis que nós soubéssemos porque não tem importância. Um adultério é uma bobagem, diz respeito só, se a mulher é casada, ao marido; mas pode ser também que ele aceite bem uma pequena traição, não a considere importante. E no romance "Dom Casmurro" são outros temas em pauta: a dificuldade do relacionamento humano, o mau uso, no bom sentido, da linguagem, a distorção verbal, a distância entre o que você diz e o que você pensa, a incomunicabilidade entre os seres, o sentimento da finitude, porque as coisas são muito relativas. Sem falar que ele cria em torno da Capitu quase uma teoria do falso feminino. De certo modo ela, traindo o Bentinho, consolida uma imagem do feminino, do chamado “eterno feminino”, que de verdade é uma coisa horrorosa. É uma expressão que surgiu num determinado momento na Europa, e que era como se você quisesse petrificar a mulher dentro de uma moldura social, na qual ela não evoluísse.
- Silvio Romero chegou a chamar Machado de “capacho de todos os governos”, por ele não fazer críticas sociais abertamente. A senhora acha que a postura que Machado adotou, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi uma resposta?
- O Silvio Romero hoje é citado por conta dessa agressividade, inveja terrível que ele demonstra diante do talento de Machado, que o ignora, não responde, em nome da real presidência dele na Academia. Mas é porque Machado percebeu que a obra dele tinha fundamentos e que ser ou não ser arrasado por um crítico não tem importância. Um crítico não assassina texto. Só há uma pessoa que pode assassinar o autor: é o próprio autor. Quando ele erra, quando ele asfixia o texto, quando ele não sabe administrar a emoção do texto, quando ele faz um texto que não deveria ser dado pronto e a vaidade dele obriga-o a publicar. Machado é um homem das entrelinhas. Evidentemente que há aspectos ali que nós podemos imaginar como uma resposta a Silvio Romero ou a sociedade que não pode entender. Não era uma sociedade pronta pra declarar, já de público, a genialidade de Machado. Mas mesmo assim, quando Machado morre, ele já é tido como o mais importante escritor brasileiro.
- A senhora disse uma vez que até hoje não surgiu nenhum escritor que se emparelhe com Machado, mas que ele, ao mesmo tempo, “foi injustamente excluído do rol dos maiores intérpretes do Brasil”. Qual seria a causa disso?
- Porque não há um grande ficcionista no hall dos intérpretes. É como se a literatura não fosse suficiente para interpretar realidades, como só um Gilberto Freire, um Sérgio Buarque de Hollanda, um Caio Prado, todos eles empunhassem a bandeira de traduzir o Brasil. Acho que isso é um grande equívoco. Eles são grandes intérpretes, mas Machado de Assis interpreta o Brasil através da ficção, através das crônicas. Quem pode enveredar pelo campo humano com mais liberdade, com mais desafios, que um criador de arte? Coisa que os outros não são. Os outros são importantes, mas eles estão presos a uma teoria, eles estão presos a uma interpretação que não pode ter transportes poéticos, vôos poéticos. O transporte poético é capaz de viajar pelo humano e por uma sociedade como ninguém pode, porque tem a total liberdade de, inclusive, mergulhar no caos. E, além do mais, quem mais pode interpretar um país que aquele que trabalha a língua? É alguém que usa a língua nos seus desvãos, os seus grotões, pra sacar dela a sua origem, a sua gênese.
- Depois de uma carreira com tantas honras e premiações, em diversos países, como a obra de Machado continua a lhe inspirar?
- Não é tanto “me inspirar”. Mas é que “a obra e o homem”. Eles me comovem, me emocionam. Machado e a obra me inspiram pra continuar a produzir, a criar com honorabilidade, com uma noção de que existe a grandeza em algum lugar. Se eu vou alcançar ou não tem importância, o que importa pra mim é o meu esforço, a minha crença na palavra, a minha crença na narrativa. E depois eu penso “como é que esse Brasil tão modesto e medíocre da primeira metade do século XIX criou esse gênio?” Então, isso me estimula. Não me permite renunciar. Não posso abrir mão do que eu desejo fazer, porque Machado é um exemplo extraordinário.