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Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2024


País

"O debate na economia política brasileira é como um Fla-Flu"

Rodrigo Serpellone - Do Portal

14/03/2013

 Maria Christina Corrêa

Nove de novembro de 1989. A data da destruição do Muro de Berlim ficou para a história da Humanidade como o fim da Guerra Fria. No Brasil, seis dias depois, as primeiras eleições presidenciais após a ditadura tiveram igual valor simbólico para o país. Este é o tema tratado no livro O Brasil depois da Guerra Fria, do jornalista Arthur Ituassu, professor de Comunicação Social da PUC-Rio.

Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, Ituassu compara o confronto entre liberais e protecionistas, no contexto da economia política brasileira, ao clássico Fla-Flu. A obra gira em torno de 1989, ano cercado por um contexto “marcante de mudanças brutais nos ambientes nacional e internacional”. Porém, de acordo com o autor, mestre e doutor em relações internacionais, as mudanças iniciadas neste período criam impactos até hoje. Ele afirma que o Brasil também teve um processo de queda de muro e que as mudanças nacionais foram “concomitantes com o processo do exterior”.

Portal PUC-Rio Digital: Quais são seus objetivos e expectativas com o livro?
Arthur Ituassu: O objetivo é fazer uma contribuição para o debate de economia política do país. O que tento argumentar, levar o leitor a perceber, é que a democracia e a mudança no ambiente internacional propiciam um pensar mais flexível sobre o tema. Havia um padrão muito rígido na economia política brasileira, muito controle do Estado sobre a economia, basicamente um modelo desenvolvido nos anos 1950, paradigmático na história do país até este momento. Foi um modelo importante, que trouxe a industrialização, modernizou o país e o fez estar entre as maiores economias do planeta. Mas trouxe problemas: inflação, Estado caro e pouco eficiente, economia muito pesada de impostos e burocracia. A redemocratização possibilitou um questionamento deste modelo e a redução da presença do Estado em varias áreas: nas relações comerciais do país, na dinâmica interna da economia e em temas antes sensíveis, como a proliferação nuclear, a preservação do meio ambiente e a propriedade industrial. Muitas vezes o debate da economia política no Brasil é como um Fla-Flu: tem os intervencionistas e os liberais. Os intervencionistas dizem que a intervenção do Estado na economia é solução para tudo. Os liberais afirmam que a redução do Estado é solução para tudo. A democracia possibilita um debate mais flexível. Em alguns momentos ou em algumas questões, pode ser benéfica uma maior atuação do Estado. Em outros momentos ou em outras questões talvez seja melhor uma redução da presença do Estado. As políticas sociais que ganharam força no governo Lula são exemplo do primeiro caso. Os problemas que temos de infraestrutura e ineficiência na gestão dos bens públicos, como educação, saúde, justiça, são questões que em geral nos levam para o segundo caso. Nesse contexto, é importante ressaltar que o liberalismo não é nenhum bicho-papão; boa parte do que somos hoje é fruto de uma mudança liberal. Além dessa flexibilidade na reflexão sobre os modelos de economia política para o país, tento mostrar ao mesmo tempo no livro que fazemos parte do mundo, e que as mudanças que ocorreram no Brasil a partir de meados dos anos 1980 até o fim dos anos 1990 acompanham e dialogam com o contexto internacional. Às vezes achamos que somos coisas separadas, por estarmos em um país muito grande. Mas o processo de transformação internacional da época está presente aqui. Houve um fim da Guerra Fria no Brasil.

Portal: De onde surgiu a ideia de escrever sobre a Guerra Fria?

 Maria Christina Corrêa Ituassu: O livro parte de uma curiosidade minha sobre o que poderia ser o debate político no Brasil em 1989. Há transformações brutais no cenário internacional naquele momento; 1989 é um ano muito marcante. A própria mídia vai explorar aqueles fatos de forma bastante clara. Em especial as mudanças dramáticas e espetaculares do Leste Europeu, que vão culminar na queda do muro. Há também a questão da África do Sul, a decadência do regime racista, manifestações na Praça Celestial. Você olha para aquele ano e vê que há mudanças brutais. E no Brasil também. É o pontapé inicial da democracia brasileira, há a primeira grande eleição presidencial no país após o regime militar. Há todas as transformações econômicas e na área de tecnologia, dos modos de produção e comunicação, que começam a despontar no dia a dia das pessoas no fim da década de 80. Há processos de integração comercial, o Mercosul começa a aparecer em meados dos anos 80, a União Europeia se aprofundando, Nafta se consolidando. Além disso, o Brasil estava em um ambiente de crise sem precedentes. Quando se olha a história política econômica do país, há uma mudança brutal na forma como o Estado brasileiro lida com o ambiente internacional. Isso me gerou uma curiosidade fundamental: o que era aquele debate político? Períodos de incerteza são normalmente férteis em ideias. Minha intenção foi explorar este terreno.

Portal: Se o Brasil não tivesse uma política protecionista na década de 80, o cenário atual seria diferente?
Ituassu: Essa é uma falsa questão. Isso não seria possível, pela própria cultura política brasileira. A ideia de que era necessário proteger a indústria nacional estava cultural e institucionalmente enraizada desde os anos 1950 no país. Podemos discutir o fato de esta política ter durado mais tempo que o necessário. Fomos protecionistas ao extremo, alcançamos níveis de autarquia como os da Albânia stalinista ou de Cuba. Isso tem papel na crise, na inflação. Não à toa o Plano Real abriu mais a economia brasileira à concorrência externa, para disciplinar o preço interno. Esta política teve seu momento, mas podemos dizer que perdurou demais, se alastrou exageradamente pela cultura e pelas instituições do Estado brasileiro. É nesse sentido que o período de reformas que vai de meados da década de 1980 até o fim dos anos 90 é um marco no caminho político que nos trouxe aonde estamos hoje. Há uma linha que liga o que éramos e debatíamos em 1989 e o que somos e debatemos hoje.

Portal: Atualmente, países desenvolvidos criticam o Brasil por aumentar as tarifas de importação. O país ainda adota uma política protecionista?
Ituassu: Somos relativamente protecionistas. Temos uma cultura protecionista que não muda de uma hora para outra. Houve mudanças no fim da década de 1980 e praticamente em toda a década de 1990 no comércio internacional. Isso gerou impacto, mas ainda mantém o país relativamente protecionista. A questão é se isso não aumentou nos últimos governos: de lá para cá, talvez tenhamos nos tornado mais protecionistas. E aí acho que é um problema.

Portal: A queda do muro de Berlim foi o momento mais marcante do mundo no ano de 1989. As primeiras eleições presidenciais livres no Brasil teriam simbolicamente o mesmo peso?
Ituassu: Acredito que sim. Houve um fim da Guerra Fria aqui também. É claro que o processo de redemocratização veio muito antes, desde o momento da campanha das Diretas Já, de onde vem a foto de capa do livro. No entanto, 1989 é um momento importante, dentro desse processo maior. Houve uma queda do muro no Brasil. As mudanças que o Brasil implementa em um período de mais ou menos 15 anos são concomitantes com os processos de transformação internacional do momento e dialogam com o que acontecia lá fora.

Portal: A troca de ameaças entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte pode configurar uma nova Guerra Fria?
Ituassu: Não, são situações completamente diferentes. A grande característica da Guerra Fria é haver duas superpotências, um equilíbrio claro de forças. Tanto que não há registros oficiais de combates entre os EUA e URSS. O conflito se dava indiretamente. Esse equilíbrio entre dois "dinossauros" constitui a Guerra Fria. E, hoje, a Coreia do Norte não é a URSS. Se eles jogam uma bomba nuclear nos EUA, serão obliterados do espaço em menos de um mês. Não há como comparar a capacidade armamentista americana com a norte-coreana. O equilíbrio da Guerra Fria possibilitava uma série de coisas. O Brasil desrespeitava todos os regimes de comércio internacional durante o período. Não acontecia nada com o Brasil porque, naquele contexto, interessava aos EUA ter o Brasil como aliado. Quando a Guerra Fria acabou, tivemos que nos adaptar aos regimes de comércio internacional, de proliferação nuclear, de preservação do meio ambiente...

Portal: Você acredita que esse suposto fim do socialismo antigo, após a queda do Muro de Berlim, deu margem à criação do “socialismo do século XXI”, praticado por Hugo Chávez?
Ituassu: Tem influência, tem um processo de absorção, de continuidade. No entanto, esse socialismo do século XXI é mais ligado à chamada crise da democracia representativa. Há um descolamento muito grande entre o representante e o cidadão. O político só aparece na época das eleições, e o cidadão fica passivo, com uma visão muito negativa sobre a política. A política não pode ser reduzida aos escândalos de corrupção; ela é basicamente o que nós somos e queremos ser. É uma questão de identidade, não pode estar reduzida a grandes eventos midiáticos. A realidade que chega ao cidadão propicia a passividade. O cidadão acha que tudo é sujeira, falta graus mínimos de soberania popular. A democracia representativa que estava no poder na Venezuela, por exemplo, não resolvia os problemas da população. As taxas de mortalidade infantil eram absurdas. Os programas de combate à pobreza de Equador, Venezuela, Uruguai e Brasil foram, claro, muito importantes. Mas junto com eles vieram, em graus diferenciados, comportamentos antidemocráticos como a tentativa de controle da mídia pelo conteúdo, de perpetuação e personificação do poder, de controle sobre as instituições. Esses são problemas gravíssimos para qualquer contexto democrático.

Portal: O livro tem como base editoriais e artigos dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo. Por que usou essas referências?
 Maria Christina CorrêaItuassu: A pesquisa não tem a ingenuidade de achar que os jornais são o que a população pensa. A pesquisa com os jornais parte do pressuposto de que a mídia, especialmente impressa, naquela época em que não havia internet, é referência fundamental da construção da consciência política. Isso explica a relevância do material que está sendo estudado, mas não significa que seja um retrato fiel do pensamento da época. Os editoriais não servem de referência só para os leitores, mas também para jornalistas, políticos, a classe industrial, os sindicatos etc. Apesar de ter a consciência de que os artigos passam pela aprovação dos jornais, há uma pluralidade muito grande. Se pegarmos os exemplos dados no livro, há uma gama muito ampla de participantes de todos os posicionamentos, como Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Cesar Maia e outros. Isso ajuda a entender o debate político.

Portal: A crise econômica da década de 80 começou de fato naquele momento ou foi descoberta com a abertura política?
Ituassu: A crise já vinha de antes, e ganhou visibilidade na abertura, que possibilita a crítica, a participação que antes não havia. A questão da transparência do governo começa na Constituição de 1988 e, aos poucos, está se tornando realidade. A crise foi monumental, no meio de um período de plena incerteza, de transformação.