Renan Rodrigues - Do Portal
12/12/2012Reeleita em outubro do ano passado com 54% dos votos, Cristina Kirchner atingiu 60% de aprovação popular no fim do ano passado. Inflação, desembrego na casa dos 7,5%, escândalos de corrupção – como o que atingiu o vice-presidente, Amado Boudou, acusado de lavagem de dinheiro –, intervenção crescente do governo na economia e batalhas pelo controle da mídia derrubaram a popularidade da presidente (35% de aprovação em abril) e acenderam o sinal amarelo sobre os respingos políticos e econômicos no bloco sul-americano. Embora uma parcela dos argentinos aprove a ofensiva kirchnerista, analistas identificam contornos de um isolamento externo e interno, cujas consequências estenderiam-se de obstáculos ao Mercosul até a reincidência de greves como a que paralisou o país há pouco mais de 15 dias.
A bola da vez é a queda-de-braço entre a Casa Rosada e o grupo Clarín, maior conglomerado de comunicação do país, que há quatro anos se opõe ao governo Kirncher. Prevista para entrar em vigor na sexta-feira passada, a controversa Lei de Meios Audiovisuais – que restringe o volume de licenças para a operação de emissoras de rádio e TV por empresa – foi adiada até que a Suprema Corte argentina decida sobre a constitucionalidade. Nesta terça, a presidente apresentou, à Câmara Civil e Comercial, um recurso extraordinário contra a suspensão de parte da Lei de Mídia, como é conhecida.
Enquanto desviam os holofotes do principal foco de protestos – a estagnação econômica –, os novos capítulos da guerra declarada contra parte da imprensa levanta polêmicas em ambos os lados. O Clarín é acusado de parcialidade nas coberturas de manifestações contra Cristina. Já os opositores acusam o governo de controlar 80% dos veículos de comunicação, por meio de verba publicitária, e de manipular índices econômicos, como os relacionados a inflação.
Em meio às turbulências, argentinos buscam uma luz para a retomada do crescimento e mostram-se cada vez mais divididos. A estudante de Ciências Políticas da Pontifícia Universidade Católica da Argentina Pili Canavesi, de 18 anos, lembra que um dos caminhos necessários à recuperação econômica passa pelos avanços democráticos, para os quais a imprensa plural, equilibrada e autônoma é um dos componentes essenciais. Ela critica a influência de Cristina sobre os meios de comunicação, mas reconhece uma cobertura parcial feita pelos jornais Clarín e La Nación, "o que gera um fogo cruzado entre imprensa e governo":
– O relacionamento entre Cristina e a imprensa é horrível. Hoje, os meios de comunicação na Argentina são nojentos – opina – Os veículos oficiais, como o C5N, sempre tentam mostrar a melhor imagem de Cristina, enquanto La Nación e Clarín, os adversários, sempre tentam arruinar a imagem da presidente.
Pili qualifica a Lei de Mídia como uma “atitude infantil”. Segundo ela, o Clarín exagera por fazer oposição, porém “fala a verdade ao expor os indícios de corrupção do governo”:
– Por mais que exagere, mostra a verdade sobre a corrupção. E o governo, em vez de assumir seus atos, diz que o Clarín mente – resume a estudante, que participou do panelaço contra o governo no dia 8 de novembro.
Brasil não corre o risco de contaminação, asseguram especialistas
O risco de a polêmica em torno da interferência governamental na imprensa argentina contaminar o Brasil é nulo, garante o jornalista e professor da PUC-Rio Leonel Aguiar. Até porque, esclarece ele, o princípio de se evitar a concentração dos veículos de comunicação em um grupo é legítimo, desde que voltado à promoção da pluralidade de ideias, essencial na democracia:
– A ONU falou recentemente que o processo na Argentina é legítimo e legal porque ele está baseado na pluralidade de ideias e pontos de vista. Não se pode ter uma concentração dos veículos de comunicação de massa. E só se atinge esse objetivo se tiver uma pulverização dos veículos. A concentração do grupo Clarín é combatida pelo governo por esse viés – explica o coordenador do departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.
A professora de Relações Internacionais da PUC-Rio Ana Carolina Delgado concorda que não há risco de a imprensa no Brasil assumir uma só dicção, seja oficial ou privada, ou sofrer controles. Segundo ela, o amadurecimento das instituições brasileiras, refletido no discurso da presidente Dilma Roussef, sugere que o país ultrapassou essa fase:
– No Brasil, está muito claro para os políticos de forma geral, e para o governo Dilma, em especial, que a liberdade de expressão consiste num dos pilares para o processo democrático. A presidente Dilma já ressaltou essa percepção em diversos discursos – avalia.
A analista ressalva que, embora a atual gestão de Cristina Kirchner seja muito criticada, o país tradicionalmente procura respeitar as instituições:
– Muitas delas estão mais consolidadas do que a de países vizinhos, em especial os andinos, que passam por um processo de reformulação de suas instituições.
Ameaça não à estabilidade, mas ao fôlego do Mercosul
O caldeirão político na Argentina não representa, ainda segundo a professora de Relações Internacionais, um risco para a estabilidade do Mercosul. Ela avalia, no entanto, que a estagnação econômica, traduzida, por exemplo, na dificuldade em pagar o funcionalismo e na possibilidade de nova moratória, não só dificulta a recuperação interna, como tende a prejudicar o fôlego comercial do bloco:
– É preciso lembrar que, apesar dos avanços ao longo dos anos em termos de normas e de sua consolidação, o Mercosul segue como um bloco eminentemente comercial. Assim, a fragilização econômica no país vizinho pode, claro, afetar as ambições comerciais.
Entre medidas protecionistas e negociações com credores internacionais, o governo argentino busca a superação de obstáculos crônicos, como a escalada inflacionária, o desemprego que já aflige 17,6% da população e a oxigenação de novas e velhas parcerias. A ampliação da "aliança entratégica" com o Brasil, com a "integração as cadeias produtivas", como projetou a presidente Dilma, em visita à Argentina no fim do mês passado, envolve, também nas palavras da presidente brasileira, a correção de algumas assimetrias comerciais.
Para expandir os laços de comércio com o Brasil (a balança comercial bilateral deverá fechar o ano em torno de US$ 34 bilhões) e outros países, dentro e fora do Mercosul, o governo de Cristina Kirchner terá, segundo boa parte dos analistas, de fazer deveres de casa nada simples. Um deles é espantar o velho fantasma do calote internanional, considerado "provável" pela agência de classificação de risco de crédito Fitch. Um dos sinais, segundo Ana Delgado, de que a economia vizinha é preocupante:
– O que preocupa não é a manipulação de dados da inflação, que supostamente ocorre há anos, mas o fato de isso espelhar, sobretudo nos últimos anos, um enfraquecimento da economia argentina – alerta a professora de Relações Internacionais.
Cronograma de protestos: 13 de setembro: O primeiro panelaço de 2012 contra o governo reuniu aproximadamente 200 mil manifestantes nas ruas de Buenos Aires.
8 de novembro: Com a economia e a liberdade de expressão na pauta do protesto, e inflamadas por um apagão na rede elétrica administrada pelo governo, aproximadamente 700 mil pessoas voltaram às ruas da capital em um protesto convocado pela internet, que ficou conhecido como 8N. 20 novembro: Após os panelaços, Cristina Kirchner enfrentou sua primeira greve geral, com duração de 24 horas. O protesto mobilizou, pela primeira vez, em um ato histórico, os dois principais sindicatos do país, a Confederação-Geral do Trabalho (CGT) e a Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), em um pedido de compensação salarial para a inflação crescente. |
Incertezas econômicas minam credibilidade
Embora parte da população mantenha-se fiel ao governo Kirchner, as turbulências econômicas, sobretudo a escalada dos preços e do desemprego, vêm minando o apoio popular. A desconfiança começou a crescer quando Cristina interveio no dólar, recorda o jornalista Ariel Palacios, correspondente de veículos de comunicação brasileiros em Buenos Aires. A moeda americana é, tradicionalmente, investimento adotado por parcela significativa dos argentinos. Para o economista Luiz Roberto Cunha, decano do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio (CCS), trata-se de "uma medida paliativa que não resolverá a fuga de divisas", estimada em U$ 3,5 bilhões no primeiro semestre deste ano:
– A Argentina está sem dólar em caixa, ao contrário do Brasil, que tem US$ 300 bilhões em reserva. Ela está com dois navios presos em portos na África por dívidas. Os argentinos mantêm o hábito de comprar dólares para guardar dinheiro. Essa medida afeta, portanto, toda a população.
Enquanto toma medidas de austeridade para combater a crise, Cristina Kirchner envolve-se em escândalos associados ao mau uso de dinheiro público. Como a reforma num banheiro no andar do gabinete presidencial da Casa Rosada por valor equivalente a R$ 1 milhão. O episódio inflamou os argentinos para o panelaço de novembro, que ficou conhecido como 8N.
Fora casos como esse, a inflação e a asfixia da renda e do emprego acirraram os protestos, culminados com a paralisação geral em 20 de novembro, combinada por redes sociais. O repúdio às medidas econômicas também produziu uma união inédita entre sindicatos e entidades até tradicionalmente alinhadas ao governo: Confederação-Geral do Trabalho (CGT), Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), Federação Agrária Argentina (FAA). Reivindicam, principalmente, compensação salarial para a inflação que, segundo a Casa Rosada, foi de 8,9% em 2011, mas chega a 25% de acordo com medições independentes. A estatização da maior petrolífera do país, a YPF, aumenta o clima de incerteza na economia argentina e periga afetar também o Brasil, seu maior parceiro comercial.
– O crescimento da economia depende do consumo interno, dos investimentos produtivos e das exportações. As exportações são afetadas, porque a Argentina está em uma crise gravíssima há alguns anos. A Argentina é um grande parceiro do Brasil e ela quer, desesperadamente, colocar barreiras. Se o Brasil continuasse exportando o que ele tradicionalmente exportava, havaria, aproximadamente, mais 0,2% no nosso crescimento. Ao contrário da barreira Argentina, o Brasil continua importando. A Argentina é um grande mercado consumidor – avalia o professor Luiz Roberto Cunha.
A estatização da YPF, antes nas mãos da espanhola Repsol, faz parte de um "jogo duplo" adotado pelo governo, afirma Palacios. Segundo o jornalista, embora estatize a maior petrolífera do país, Cristina favorece empresários ligados ao governo:
– Perón, fundador do partido da Cristina, disse a seguinte frase quando voltou do exílio: “Você precisa governar como se estivesse dirigindo um carro que você dá a seta para a esquerda, mas vira para a direita”. Esse jogo duplo é o que faz o governo atual – compara.
A Argentina atingiu, ainda segundo Cunha, um patamar crítico a respeito da credibilidade dos índices oficiais da economia. Enquanto Cristina nega o salto inflacionário, a oposição acusa a presidente de maquiar tais números e de subir o próprio salário em 42% neste ano. O governo nega, sem precisar, entretanto, o reajuste.
– Todos os países que apresentam acordo econômico mantêm, também, acordo de estatísticas. É preciso trabalhar com um padrão uniforme. Os salários podem ser corrigidos se estiverem desatualizados em valor de mercado. Mas esse reajuste dos salários do governo mostra que a inflação existe. É uma tristeza um país com essa situação. Na Venezuela não se discute, por exemplo, a credibilidade dos dados – lamenta o economista.
Criado em 1991, a partir do tratado de Assunção, o Mercosul reunia originalmente Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – a controversa entrada da Venezuela só foi aprovada neste ano. Com objetivo de estimular o comércio entre seus integrantes, o bloco prevê a redução de tarifas alfandegárias para a exportação. Acordo que, no entanto, esbarra nas recentes barreiras impostas pelo governo argentino:
– É uma tragédia para o Mercosul, porque é uma união aduaneira, ou seja, uma redução de tarifas alfandegárias. Essa atitude da Argentina quebra a reciprocidade. O governo brasileiro vem sendo muito diplomático, mas o Brasil está sendo prejudicado. Somos prejudicados por uma má gestão que vem muito antes do Kirchners. Com todo o respeito ao Uruguai e ao Paraguai, o bloco se baseia na relação Brasil-Argentina.
Apesar da oposição fragilizada, terceiro mandato é improvável
Desde a morte de Néstor Kirchner, em outubro de 2010, uma mudança na Constituição para permitir o terceiro mandato de Cristina é apontada como a possível saída para a manutenção do kirchnerismo. A estratégia depende, no entanto, da aprovação de uma reforma constitucional por aproximadamente dois terços do Congresso, maioria que a presidente Cristina Kirchner, hoje, não possui. Para Ariel Palacios, o desgaste do governo, que passa pelo período de menor respaldo popular, dificulta prognósticos:
– No começo do ano, o cenário era favorável ao governo, mas o apoio diminuiu. No entanto, falta muito tempo para as eleições no ano que vem, ainda sem data definida – lembra o correspondente, em tom cauteloso.
Embora haja tempo para a recuperação dos índices de aprovação da presidente argentina, a professora de Relações Internacionais da PUC-Rio acredita que os sucessivos desgastes políticos e a estagnação econômica inviabilizem a mudança constitucional para um terceiro mandato de Cristina. Ela observa, por outro lado, o avanço do "doutrinamento da população pela juventude Kirchnerista", liderado pelo filho de Cristina, Máximo Kirchner:
– A La Cámpora, como é chamada a juventude kirchnerista, tenta fortalecer e propagar o kirchnerismo com trabalhos em escolas e distribuição de cartilhas, por exemplo. Isso pode enfraquecer mais ainda a oposição, que já não tem um projeto capaz de colocar em xeque o atual. Ainda assim, acredito que o governo não consiga reformular a Constituição, tendo em vista o desgaste político e o descontentamento de parte da população. Isso não significa, no entanto, que não haverá uma tentativa de reformulá-la – pondera Ana Delgado.
Se o momento econômico argentino atrapalha o governo, a oposição mostra-se incapaz de explorar politicamente episódios como o apagão na véspera do panelaço de 8 de novembro. Palacios diz que os líderes oposicionistas que não aproveitam momentos "entregues de bandeija":
– O prefeito de Buenos Aires, de oposição, deveria ter estado no panelaço, mas preferiu ir ao show do Kiss, em uma área fora ao do apagão – exemplifica.
Posicionamento e imparcialidade
Já a oposição entre Cristina Kirchner e o grupo Clarín, que ocupa o centro de uma batalha judicial considerada por alguns analistas o primeiro passo de uma manobra maior para ampliar os poderes do governo, reacende discussões sobre alicerces democráticos como a liberdade de expressão, a pluralidade de opiniões e o equilíbrio na cobertura jornalística. Para Leonel Aguiar, o posicionamento político de veículos de comunicação – como fazem, por exemplo, jornais americanos e ingleses, que apontam seus candidatos em períodos eleitorais – não deve significar uma abordagem tendenciosa dos fatos:
– A qualidade e a credibilidade da informação não podem ficar contaminadas pelo posicionamento do veículo. O interessante é que o noticiário fique equilibrado. Em disputas eleitorais, a chamada cobertura factual deve ser equilibrada, em termos de espaço, entre os principais candidatos. Isso é essencial para a democracia.
Leonel considera correto o apoio declarado a candidatos em editoriais (textos em que os jornais expõe os pontos de vista institucionais). Já as reportagens e a cobertura política ou eleitoral devem primar pela neutralidade e pela pluralidade, de maneira a propiciar informações mais esclarecedoras e alinhadas ao interesse público, o que nem sempre é observado. Ao mesmo tempo, acrescenta o professor, "o governo precisa saber distribuir a verba publicitária destinada aos órgãos de comunicação".
– O governo deve criar mecanismo para pulverizar a verba publicitária entre os principais veículos de comunicação, mas também os que não são hegemônicos – argumenta Leonel.
O grupo Clarín em números:
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