Solidário, humilde, comunista, gênio, humanista. Com pompa de herói nacional, a despedida do arquiteto Oscar Niemeyer, morto quarta-feira passada, a dez dias de completar 105 anos, retratou a a abrangência amealhada pela trajetória acima de ideologias, credos e convenções (veja a galeria de fotos). As declarações protocolares e as sucessivas coroas de flores que ganhavam, sexta-feira (7), no velório no Palácio da Cidade, sede da prefeitura do Rio – boa parte delas enviadas por personalidades nacionais e internacionais, como os líderes cubanos Fidel e Raul Castro –, somava-se a admiração dos anônimos. As homenagens das embaixadas de Argélia, França e Itália, países que acolhem projetos de Niemeyer, misturavam-se à comoção de cariocas e gente vinda de outros estados ali reunidos para ver de perto "o homem que construiu Brasília". As palavras de amigos como o poeta Ferreira Gullar, o arquiteto Paulo Casé, o cartunista Ziraldo e o escritor Zuenir Ventura, unia-se a voz de centenas de fãs identificados, mesmo à distância, com alguma das múltiplas feições do brasileiro genial. Como o menino Richard Lourenço Dias, de 6 anos, levado pela mãe adotiva, Ana Maria da Silva, para realizar um desejo nascido neste ano:
– Ele descobriu a obra de Niemeyer por um trabalho da escola. Ficou encantado com os prédios e me perguntou se poderia conhecê-lo. Então prometi: a gente vai encontrá-lo um dia porque somos do povo e ele, também.
Três meses depois do trabalho escolar, Richard assistiu pela televisão ao anúncio da morte do arquiteto. Ana Maria resolveu que era o momento de cumprir o prometido. Encarou o calor de quase 40 graus, prévia do verão carioca, para chegar ao Palácio da Cidade por volta das 10h. O esforço, diz a apossentada de 62 anos, é recompensado pela força inspiradora de Niemeyer, inclusive para as crianças:
– Espero o meu filho possa se inspirar nas obras de Niemeyer. Aposto que ele vai lembrar deste dia para sempre.
Descoberto, em seguida, pela imprensa, o menino desenhou os arcos da Praça da Apoteose a pedido dos repórteres. Surpreendeu-se ao ouvir o desenho, com rabiscos coerentes aos feitos por qualquer menino de 6 anos, ser chamado de "admirável" por um jornalista. Ainda não sabia o significado da palavra bonita. Depois que a mãe explicou-lhe, agradeceu e contou que quer ser engenheiro e desenhar “como Oscar Niemeyer desenhou a vida toda”.
Richard admira, em especial, o Sambódromo, pois "é importante para o samba e lembra o corpo de passistas". O reconhecimento do menino às curvas femininas, tradicionais inspirações do poeta do concreto, ilustrava a eternidade de Oscar Niemeyer.
Outros identificam-se com o timbre carioca do arquiteto que nasceu em Laranjeiras (ouça a reportagem de rádio), mudou o país, ganhou o mundo e viveu os últimos dias na igualmente emblemática Copacabana. O estilo marcado pela elegância e a simplicidade agregava desde arquitetos, artistas e governantes até fãs como o comerciante Airton Machado, de 61 anos. O comerciante saiu às 8h30 de Bangu, bairro onde mora, na zona oeste carioca, para juntar-se às centenas de pessoas que passaram ao lado do caixão coberto por uma bandeira do Brasil, no qual era possível ver, por um vidro, o rosto do arquiteto.
A admiração de Airton é tanta que ele pediu a um grafiteiro para reproduzir, numa camisa branca, a primeira página do jornal Extra do dia seguinte à morte do ídolo, acima da frase “A vida é um sopro”, dita por Oscar Niemeyer em uma entrevista à rede inglesa BBC, em 2001. Pretende fazer mais cinco dessas camisas, para dar à família.
. Ícone da arquitetura, exemplo de vida, carioca emblemático e... pop star. O o status de celebridade também faz parte das diversas feições reconhecidas por não menos diversificados admiradores. Caçador “profissional” de famosos e cenas históricas, o auditor fiscal aposentado e clone de fotógrafo Vicente Cirilo de Souza, de 75 anos, não perdeu a oportunidade de guardar uma recordação do arquiteto. Ele foi o único do público a fotografar dentro do salão nobre.
– Eu tenho fotos da inauguração do sambódromo. Não poderia faltar na minha coleção a foto do homem que pensou e construiu aquilo – orgulha-se Cirilo.
Amigos destacam Niemeyer como poeta e humanista
Já Ferreira Gullar encanta-se com o Niemeyer "poeta". Ele lembrou o poema Lição de Arquitura (1980), que escreveu no exílio para o amigo:
– Niemeyer tinha uma arquitetura poética. Introduziu não só a forma curva, mas também a leveza. Seus prédios parecem flutuar.
O velório do arquiteto no Rio foi iniciado às 8h30, a pedido da família. Antes da abertura ao público, o prefeito Eduardo Paes e o governador Sérgio Cabral participaram de uma cerimônia com os familiares no salão nobre do Palácio. Antônio Anastasia, governador de Minas, Márcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte, e Maristela Kubitschek, filha de Juscelino, representaram o estado vizinho. Em Minas, Oscar Niemeyer começou a implantar suas estruturas de concreto em curva nas construções do Conjunto da Pampulha – principalmente na Igreja de São Francisco de Assis, obra que gerou elogios e notoriedade mundial ao arquiteto.
– Ele teve uma longa vida dedicada ao interesse público, à ciência e à arquitetura. Foi, sobretudo, um ser humano querido por todos – resumiu Anastasia.
Luís Carlos Prestes Filho, ao lado da mãe, Maria Prestes, estendeu uma bandeira do partido comunista e lembrou a amizade do arquiteto com seu pai:
– Papai e Oscar Niemeyer foram os grandes comunistas do Brasil. A população não perde apenas um grande artista, mas também um grande homem. Um homem enormemente solidário.
Ato ecumênico tem Dorival Caymmi e Internacional Comunista
Os padres Omar Raposo e Jorjão, o rabino Nilton Bonder e o pastor luterano Mozart Noronha conduziram uma cerimônia ecumênica assim que o velório foi fechado ao público. Lembraram a simplicidade presenta na obra e na vida de Oscar Niemeyer. Padre Jorjão afirmou que o mais importante legado do arquiteto está "na prática dos ideais de justiça e igualdade". Para Bonder, a responsabilidade política e humana de Niemeyer faz dele um dos maiores brasileiros de todos os tempos, cuja capacidade agregadora refletia-se naquela ingular reunião:
– Acredito que essa seja a primeira vez em que se reúnem dois padres, um pastor e um rabino para celebrar a alma de um ateu – disse o pastor, arrancando risos.
O religioso emocionou a viúva do arquiteto, Vera Niemeyer, ao ler um poema no qual ele sugere que Oscar Niemeyer será recepcionado por um coro de anjos que cantam a Internacional Comunista – hino internacional do comunismo. O pastor ainda puxou o coro de Suíte dos Pescadores (1957), de Dorival Caymmi, letra que narra a despedida de um pescador.
Arquiteto é sepultado no cemitério São João batista
O ato ecumênico se encerrou por volta das 17h40, quando o caixão de Oscar Niemeyer saiu do Palácio da Cidade, levado por um carro dos bombeiros. O cortejo seguiu até o cemitério São João Batista, em Botafogo. No trajeto de aproximadamente 15 minutos, um grupo de comunistas não saiu do lado do carro. Oscar Niemeyer foi sepultado, por volta das 18h, em um carneiro (sepultura eterna), ao som da Internacional Comunista, cantada com entusiasmo por alguns familiares e membros do partidão. Em seguida, a Banda de Ipanema, da qual o arquiteto era patrono desde 2010, tocou Cidade Maravilhosa. Carlos Oscar Niemeyer, neto do arquiteto, que trabalhou com ele durante 13 anos, justificou:
– Ele era apaixonado pelo Rio de Janeiro, apesar de ter projetado Brasília e gostar muito de lá. Mas o Rio era a cidade dele.
A trajetória do poeta das curvas No dia 15 de dezembro de 1907, no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio, nascia Oscar Niemeyer Soares Filho, o filho de funcionários públicos que se tornou um dos arquitetos mais influentes de seu tempo. O poeta das curvas, como ficou conhecido ao longo da carreira, se formou em arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes em 1934, então com 27 anos, e assinou mais de 600 projetos ao redor do mundo, 35 deles tombados como patrimônio da humanidade, ao longo de 78 anos de carreira. O início da trajetória profissional foi de muito trabalho e pouco dinheiro – o estagiário Niemeyer não recebia salário – no escritório dos arquitetos Carlos Leão e Lúcio Costa, com quem formou, a partir de 1956, a parceria que resultou num dos seus projetos mais importantes: Brasília. Antes da Capital Federal, Niemeyer já havia participado dos projetos do Palácio Capanema, sede do Ministério da Saúde e Educação, e do projeto do prédio O Berço, ambos no Rio. Em 1940, um divisor de águas: o arquiteto conheceu o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, que encomendou a Oscar Niemeyer o Conjunto da Pampulha. O complexo, que envolve um Cassino, um Hotel e a Casa do Baile, foi finalizado em 1943, com a Igreja São Francisco de Assis. Entre esta data e 1957, ele participou do Comitê Internacional de Arquitetos que desenvolveu a sede da ONU, em Nova Iorque, e projetou o Edifício Copan, em São Paulo. Dois anos depois de concluir seu primeiro grande projeto individual, em Belo Horizonte, ele ingressou no Partido Comunista. A orientação política de Niemeyer favoreceu, segundo as palavras do próprio arquiteto, a disseminação do seu traço artístico pelo mundo. Convidado ao exílio pelos militares que tomaram o poder no Brasil em 1964, o arquiteto viveu na França a partir de 1967 e levou a técnica do concreto armado, na qual foi o pioneiro no Brasil, a países como Argélia (Universidade de Constantine e a Mesquita de Argel), Itália (O auditório de Ravello), Líbano (Feira Internacional e Permanente), França (Centro Cultural de Le Havre-Le Volcan e sede do Partido Comunista francês), Argentina (Porto da Música) e Espanha (Centro Cultural Oscar Niemeyer). De volta ao Brasil no início da década de 1980, com a abertura política do presidente João Batista Figueiredo, Niemeyer continuou a inovar. Seus principais projetos desde a volta ao país são: Passarela do Samba (Rio, 1983), Memorial JK (Brasília, 1981), Memorial da América Latina (São Paulo, 1987), Museu de Arte Contemporânea (Niterói, 1991), Auditório do Ibirapuera (São Paulo, 1999), Memorial Portinari (2002) Museu Oscar Niemeyer (Curitiba, 2002). Oscar Niemeyer foi casado, entre 1928 e 2004, com Anita Baldo, período em que teve sua única filha, Anna Maria Niemeyer. Viúvo desde 2004, o poeta das curvas se casou com Vera Lúcia Cabreira em 2006 e foi condecorado com a medalha Mérito Cultural do Brasil um ano depois, quando completou 100 anos. (João Pedroso Campos) |
Emoção marca a despedida de Oscar Niemeyer
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