João Pedroso de Campos - Do Portal
29/11/2012O espetáculo trágico da relação entre Israel e países árabes, que se arrasta há seis décadas, ganhou mais um capítulo nas últimas semanas. No velho palco, a Faixa de Gaza, a sucessão de ataques do grupo extremista palestino Hamas ao sul de Israel e as retaliações das forças armadas israelenses continuam dando dimensões ao conflito que vão além das pretensões sobre a antiga “terra prometida”. Se a guerra é a mesma, o número de vítimas, não: só nesta última escalada de violência, 70% dos 130 palestinos mortos nos cinco dias de bombardeios eram civis, contabiliza o Serviço de Urgência da Faixa de Gaza, que também contou oito militares israelenses mortos no combate. Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, o professor do Departamento de Relações Internacionais Márcio Scalércio, especialista em conflitos, avalia que os "novos" episódios exaltam ainda mais os ânimos que dão força a grupos extremistas por todo Oriente Médio, como o Hamas.
Scalércio analisa os efeitos simbólicos e práticos, rumo à sonhada paz, das manobras recentes nesse complexo e milenar tabuleiro, desde o suposto fortalecimento político do Hamas e da divisão de poder diluído entre as regiões de Gaza e Cisjordânia, até a criação do Estado palestino – alternativa que desde 1948 inflama conflitos e negociações em variadas escalas. Revestida de verniz simbólico, a resolução também interessaria aos israelenses, acredita o especialista da PUC-Rio.
O primeiro passo do reconhecimento da cúpula internacional ao Estado palestino foi dado na tarde de hoje. A proposta do presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, para promover à condição de Estado observador não-membro ganhou aval da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Dos 193 votos da Assembleia, 138 foram a favor da causa de Abbas. Houve nove votos contrários e 41 abstenções. Semelhante ao de países como o Vaticano, tal status não garante voto direto aos palestinos na ONU, mas não permite que os territórios palestinos sejam considerados como em disputa e possibilita à Palestina fazer parte de tratados internacionais, como o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou a Quarta Convenção de Genebra sobre a Proteção dos Direitos Civis. Assim, representa, segundo o secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, uma oportunidade para a retomada do processo de paz entre israelenses e palestinos, paralisado há dois anos.
Márcio Scalércio também aponta caminhos para a complicada tarefa de desfazer nós antigos sobre Gaza e outras regiões consideradas por ele igualmente estratégicas à diplomacia mundial – e em especial, à americana –, como a Turquia, cujas ambições políticas sobre o mundo islâmico são grandes; o Irã, que adota um discurso antissemita e antiamericano, mas nega que esteja enriquecendo urânio para armas nucleares; a Síria, onde a guerra civil entre Bashar Al-Assad e rebeldes já conta mais de 40 mil mortos e 300 mil refugiados; e o Egito, onde o decreto pelo qual o presidente Muhamed Mursi se atribuiu poderes acima do judiciário do país deflagrou uma onda de protestos populares e aumentou a desconfiança sobre a transição democrática.
Portal PUC-Rio Digital: Há mais de meio século israelenses e palestinos rivalizam-se em confitos naquela região. O que os recentes confrontos trazem de novo?
Márcio Scalércio: Há uma rotina de ataques e retaliações entre israelenses e palestinos desde 1948. De um lado, o Hamas ataca o sul de Israel com foguetes sob a alegação do sítio contra a Faixa de Gaza, o bloqueio mantido pelo governo israelense por terra e por mar que isola a região. Os ataques com foguetes seriam manifestações de resistência. Os israelenses afirmam que retaliam estes ataques alvejando alvos dentro de Gaza. O pretexto para esta escalada atual foi o assassinato de uma das principais lideranças do Hamas, Ahmed Said al-Jabari. Depois da morte dele, o Hamas teria intensificado seus ataques, incluindo até mesmo ataques de maior alcance que colocaram Tel Aviv e Jerusalém sob o raio de ação. Isso teria não só intensificado a resposta israelense, com ataques aéreos e foguetes vindos do mar, como também serviu pra testar o sistema de defesa israelense contra foguetes, a Cúpula de Ferro. Há especulações, não só na imprensa internacional, mas na imprensa israelense, de que esta crise teria sido causada para testar este sistema de segurança, tendo em vista uma guerra futura contra o Irã.
Portal: A propósito, como o senhor avalia a ameaça do Irã nesse contexto?
Scalércio: Diríamos que o Irã está realmente produzindo armas nucleares, o que, inclusive, Teerã nega o tempo todo. Não é só o Irã que teria armas com este poder de destruição no Oriente Médio. Israel também as tem. Por que eu não posso imaginar que as armas nucleares também são uma ameaça ao Irã? A questão que sempre se coloca é se o Irã e presidente Ahmadinejad são ameaças. Esta questão é incompleta. Na verdade, você tem um regime de hostilidade que produz esse tipo de comportamento no Oriente Médio. O governo israelense entende que a ameaça iraniana, ao desenvolver um arsenal nuclear é maiúscula, e afirma que pretende, em algum momento, tomar providências contra isso no aspecto militar, contando ou não com o apoio do Ocidente. Fala-se até mesmo numa ação unilateral israelense. Já o Irã afirma que, se atacado, vai responder. E certamente seria com mísseis, porque os iranianos têm desenvolvido esta tecnologia nos últimos anos.
Portal: Considerando-se os ataques recentes, dos quais o Hamas, segundo boa parte dos analistas, saiu fortalecido, quais são os caminhos principais para se desenhar ou redesenhar uma paz possível no Oriente Médio, principalmente entre israelenses, palestinos e iranianos?
Scalércio: É uma situação de hostilidade onde faltam política, conversações e entendimentos diretos. Israel ajudaria muito a retomada de uma política de conciliação na região se resolvesse acertar seus pontos com a Palestina e se integrar mais na região. O governo israelense entende que é forte o suficiente para tomar medidas unilaterais, não se integrar à região. A pergunta se o Irã é ameaça revela-se, como disse, incompleta: o Irã ameaça porque se sente ameaçado. A conjuntura de hostilidade resulta no comportamento hostil. Hostilidade que também parte do Irã, que chama os Estados Unidos de "grande Satã" e Israel de "pequeno Satã".
Portal: Até que ponto, como o senhor sugere, a maior integração de Israel à região, ou o caminho do diálogo torna-se mais difícil com o fortalecimento político do Hamas, que ganhou legitimidade internacional e ofuscou outras instituições palestinas nas negociações com Israel?
Scalércio: Depois que o Hamas ganhou as eleições, em 2006, aconteceu uma situação, no mínimo, bizarra, e que colocou o Hamas em xeque no cenário internacional. O governo americano havia sido um dos incentivadores de eleições por todo o Oriente Médio, em uma política chamada Novo Oriente Médio. Imaginava-se que este artifício poderia democratizar os conflituosos regimes na região. Os palestinos fizeram eleições, que foram limpas, porque houve observadores internacionais, e o Hamas ganhou. Depois da vitória do grupo, os países europeus, Israel e os Estados Unidos não reconheceram o governo do Hamas. Foi como apoiar eleições em que só vale a vitória de quem se quer que ganhe. Não é assim que se brinca. O Hamas ficou isolado, o Fatah aproveitou para manter seu controle sobre a Cisjordânia, e isso levou a uma luta dentro da Faixa de Gaza vencida pelo Hamas, que assumiu o controle da região. O Hamas não reconhece Israel e isso desencadeou o bloqueio contra Gaza.
Portal: Depois do recente cessar-fogo, tanto Israel quanto o Hamas disseram ter atingido seus objetivos. O senhor concorda com tais avaliações? O que muda nesse xadrez político?
Scalércio: A crise atual fortaleceu o Hamas. Mesmo que Israel alegue que não conversa com o grupo por considerá-lo terrorista, o interlocutor para o cessar-fogo é o Hamas. Os israelenses conversaram com o Hamas por intermédio do Egito. Acredito, entre as linhas de representação palestinas, que o Hamas saiu fortalecido do conflito e o líder da Organização para Libertação da Palestina, Mahmoud Abbas, perdeu densidade política, saiu enfraquecido dele.
Portal: Levando-se em conta a antiga segmentação de poder na região e a ascensão do Hamas, o senhor acredita na viabilidade de uma liderança unificada na Palestina?
Scalércio: É muito difícil, porque o movimento palestino é dividido desde sempre. Pode haver uma unidade de propósitos gerais, mas cada um dos grupos tem agenda própria. A Organização para Libertação da Palestina (OLP) foi criada por Gamal Abdel Nasser, então presidente do Egito, e era uma organização que tinha uma espécie de relação simbiótica com o Egito. Até que Yasser Afarat criou o Fatah, um grupo palestino que deveria levar à frente uma politica palestina independente. Este foi o ponto em que se começou a falar nos processos de criação de nacionalidade e identidade palestinas. Pode-se afirmar que criação de Israel em 1948 criou, na verdade, duas nações: Israel e Palestina, mas isso não unificou os partidos palestinos. Eles eram fragmentados em partidos de esquerda, que diziam ser a vanguarda da revolução socialista árabe. O Hamas, que foi o primeiro grupo de teor religioso, surgiu a partir da Primeira Intifada e fragmentou ainda mais o quadro político palestino.
Portal: Na sua avaliação, a criação do Estado palestino também interessa a Israel?
Scalércio: Eu acho que a criação do Estado palestino é de interesse palestino e israelense. Se houvesse uma unidade, o Hamas, que não reconhece Israel, se enfraqueceria e a paz seria facilitada. As negociações seriam mantidas entre dois Estados reconhecidos internacionalmente, sem precondições, o que é interessante também aos Estados Unidos. Eu sempre digo que falta aos palestinos o Estado, que assuma compromissos legais em nome do povo, castigue e reprima os grupos que não se adequem à disciplina do Poder Público. Faltam, à Palestina, Max Weber e a sua ideia de o monopólio da violência legal pertencer ao Estado.
Portal: Até que ponto os assentamentos judaicos na Cisjordânia e as mortes de civis palestinos em Gaza aumentam o apoio popular ao Hamas?
Scalércio: O Hamas sai fortalecido desta crise porque, além de ser um interlocutor de cessar-fogo, para muitos dos palestinos quem está resistindo é o Hamas. O Fatah assiste impotente ao avanço dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, isso é uma das razões da discórdia. Esses assentamentos são ilegais, e deveriam ter sido contidos e desmantelados há muito tempo. Mas Israel avança na sua política de assentamentos. Enquanto isso, os palestinos são protagonistas de uma política de alteração da composição demográfica de um território que legalmente pertence a eles. O Fatah é impotente no enfrentamento disso. Aquilo que dizem ser a “comunidade internacional”, que para mim é muito mais convenção e uma gíria do que qualquer outra coisa, corresponde ao conglomerado dos interesses tidos como os mais importantes do mundo e não faz nada pra dissuadir Israel desta política.
Portal: Apesar de ter sido, mesmo indiretamente, o interlocutor das articulações para o recente cessar-fogo, é possível enxergar o Hamas como mediador ou os interesses são outros? Na sua opinião, quem ganha com a manutenção desses conflitos?
Scalércio: Assim como o governo de direita israelense, o Hamas ganha com a crise, com as hostilidades, com a manutenção da briga. O Hamas chama a atenção, mas não é, necessariamente, o mediador dos progressos quanto à questão palestina no cenário internacional.
Portal: Como a União Europeia e o Mundo Árabe veem esta nova escalada da violência?
Scalércio: A União Europeia está passando por uma crise econômica grave, então vê qualquer tipo de situação instável no Oriente Médio com muita apreensão. A Europa é mais cuidadosa que os Estados Unidos nestas questões, por exemplo, porque o Islã não só cerca a Europa como está dentro dela. A quantidade de pessoas que são originárias destes países ou que descendem de pessoas destes países é muito grande. A União Europeia faz parte do quarteto de negociações do Oriente Médio, que também envolve a ONU, os Estados Unidos e a Rússia. Mas eu acho que os europeus têm que tirar o Tony Blair da posição de enviado no Oriente Médio. Ele é de uma inutilidade total, porque os árabes, com razão, não confiam nele. Já o mundo árabe tende a se colocar um discurso solidário aos palestinos e a não fazer nada na prática. Dizem que a Liga Árabe foi criada para que os árabes briguem entre si de maneira mais cuidadosa.
Portal: O presidente Barack Obama recomendou o cessar-fogo a Benjamin Netanyahu, que aceitou a proposta na última quarta-feira. Qual foi o limite para a intervenção americana?
Scalércio: Os Estados Unidos querem que a questão fique minimamente sob controle. É positivo aos americanos que as coisas se mantenham estáveis em meio à volatilidade que caracteriza o Oriente Médio desde 1945. Há sempre o perigo de Israel arrastar os Estados Unidos para uma situação política indesejável a Washington. Ainda mais agora, que a conjuntura está mais volátil depois de diversos fatores, como os levantes árabes, a guerra civil na Síria, a possibilidade desta guerra contaminar o Líbano, as manifestações pela derrubada do rei da Jordânia, que é amigo do Ocidente, e a situação política instável no Egito. Há partidos religiosos disputando o poder em todo o Oriente Médio. Outra dificuldade aos americanos são os bombardeios cirúrgicos israelenses a Gaza, que são enganosos, uma conversa afiada. Isso é muito difícil. Gaza tem uma das maiores taxas demográficas do mundo, muito civis morrem com os “ataques cirúrgicos”.
Portal: Outro agente importante desse tabuleiro é o Egito. O decreto feito pelo presidente Mohamed Mursi, segunda-feira passada, faz os egípcios, e principalmente a oposição, terem motivos para temer a instauração de uma ditadura islâmica pela Irmandade Muçulmana?
Scalércio: Eu acho que, num país como o Egito, com tradição de governos autoritários desde que existe como Estado Nacional, essa possibilidade está sempre no horizonte. Há de fato, hoje, esse tipo de temor. Não é uma paranoia, há essa possibilidade sim. Essa atitude do presidente Mursi em tentar neutralizar a ação do Judiciário contra o Executivo levanta temores concretos.
Portal: E o presidente Mursi tem motivos para temer um segundo levante a partir da Praça Tahrir?
Scalércio: Eu tenho impressão de que aí é mais complicado, porque ele é um presidente eleito e conta com apoio de grupos islâmicos, especialmente o da Irmandade Islâmica, que tem capacidade de mobilização de massas. Isso diminui as chances dos grupos de oposição, que são muito variados e fragmentados, de mudar a situação política no Egito por meio de manifestações.
Portal: Como o senhor avalia a relação entre os governos de Mohamed Mursi e Barack Obama?
Scalércio: Obama foi hostil a Mursi durante a campanha eleitoral que o reelegeu. Mas o ponto central é que o Egito depende dos Estados Unidos para comprar comida, o governo egípcio recebe uma mesada. São por volta de US$ 2 bilhões por ano que os americanos enviam. Além disso, os oficiais das forças armadas egípcias, principalmente os superiores, de coronel pra cima, têm um vínculo muito grande com os Estados Unidos. Há elos com oficiais americanos. Embora o presidente Mursi tenha mudado um pouco esse quadro, porque substituiu comandantes e oficiais generais, o alto escalão egípcio frequenta cursos e passa temporadas nos Estados Unidos. A dúvida é como o Mursi administrará a relação com o novo governo Obama.
Portal: Apesar das instabilidades pelas quais passa, o Egito, conforme ocorreu na negociação do cessar-fogo entre Israel e o Hamas, tem força política para ser uma liderança local, um mediador das negociações na região?
Scalércio: O Egito é o país árabe mais importante porque tem a maior população e, do ponto de vista religioso, tem um grande peso. Suas mesquitas e os grupos de estudos islâmicos no país têm repercussões no Oriente Médio e no mundo islâmico todo. Mas há outra grande questão, que é uma disputa entre o Egito e a Arábia Saudita sobre qual é o país árabe mais importante. A ascensão do Egito à posição central nos cenários árabe e islâmico depende de até que ponto os egípcios vão conseguir manter a independência dos Estados Unidos.
Portal: Como as pretensões da Turquia no mundo islâmico e região são vistas pelos Estados Unidos?
Scalércio: Os Estados Unidos estão muito atentos à discussão sobre a mudança posição da Turquia, que faz diferença no quadro do Oriente Médio. O país abriu mão de um posicionamento político automático quanto ao Ocidente e passou a ser mais criterioso. A Turquia tem pretensão de ser a nação hegemônica no Oriente Médio e até mesmo no mundo muçulmano. A política externa turca é ambiciosa, o governo americano tem que ficar atento a todos os fiapos desta teia.
Portal: Em que proporção o Oriente Médio deve ocupar a agenda de Barack Obama depois da reeleição?
Scalércio: O Oriente Médio sempre toma um pedaço grande da agenda, isso é inevitável. Os Estados Unidos ainda estão engajados no Afeganistão junto a tropas da OTAN, além de terem um olhar muito atento ao que se passa no Iraque, às dificuldades com o Irã e à aliança com Israel. Todo governo americano tem que jurar que é amigo de Israel e pronto, sejam quais forem a conjuntura e a orientação do governo israelita. Por isso muito tempo do presidente norte americano é consumido pela leitura de coisas sobre o Oriente Médio e discutindo sobre o que acontece lá.
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