Noite de domingo, no Centro do Rio. Moradores de rua que, na movimentação dos dias úteis e nos horários comerciais, se tornam invisíveis às milhares de pessoas que circulam na região, estão “em casa”. Pelo menos 5 mil pessoas estão em situação de rua na capital fluminense, segundo pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em 2008. Uma delas é Juliana Pereira da Silva, 31 anos, que vive sob a marquise da Caixa Econômica Federal da Rua Almirante Barroso, no Largo da Carioca. “É ali que eu moro. Minha casa, minha vida”, disparou Juliana, numa mistura de humor e resignação, apontando o banco símbolo do sistema habitacional.
Embaixo de marquises de prédios ocupados pelo poder financeiro da segunda maior economia do país vivem famílias que se formam não apenas por laços parentais, mas, sobretudo, por solidariedade e necessidade de sobrevivência. Por estes motivos, Juliana e o marido formam uma família postiça com outras três pessoas com quem dividem um pedaço da cobertura da agência bancária.
Vendedora de chicletes, Juliana se diz “nascida e criada” na rua. Faz R$ 20 trabalhando o dia todo pelas ruas e avenidas do Centro. O sacrifício a deixa com dor nas pernas, principalmente depois de ter sido agredida com cassetetes por guardas municipais, ela se queixa.
– Os guardas às vezes aparecem e batem na gente. Da última vez tentaram nos levar para o abrigo à força. Eles machucaram minha perna, pegaram meus doces e levaram meus documentos. Na Delegacia Maria da Penha, que fica ali na Visconde do Rio Branco, chegaram a me empurrar, você acredita? – contou Juliana, ciente da contradição em se tratando de uma delegacia cujo nome batiza uma lei que protege as mulheres da violência.
A Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) afirmou, em nota, que costuma prestar atendimento a moradores de rua agredidos e que conta com uma ouvidoria para estes casos.
Mãe de seis filhos, Juliana carrega o peso de pertencer a algumas estatísticas que mostram as desigualdades sociais do país, como o racismo. No Brasil, segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS) 67% dos moradores de rua são negros. Sua filha, de 14 anos, é mãe de gêmeos de 2 anos, compondo os 19% de bebês que nascem de mães entre 10 e 19 anos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Juliana também está entre os 6,8 milhões de brasileiros que não sabem ler nem escrever. Drogas ilícitas ela não usa, mas confessa tomar bebidas alcoólicas. Com um filho de 15 anos preso em um reformatório, ela embarga o choro ao pensar nele. No rosto, marcado por cicatrizes e rugas, ainda preserva a jovialidade de seus 31 anos.
Juliana, apesar de viver na rua, tem casa. Fica em Tinguá, na Baixada Fluminense, a 70 quilômetros da capital. Poucas vezes vai lá, porque não consegue arrumar trabalho na região e por ficar cara a passagem de ônibus – mais da metade do que ganha vendendo chicletes.
Os motivos para este grupo escolher a rua como moradia são muitos. As principais causas identificadas pelo MDS são: conflito familiar, alcoolismos e uso de outras substâncias e desemprego. Uma outra razão apontada por Juliana para viver no Centro do Rio é a maior disponibilidade de serviços públicos como a saúde, que é insuficiente em Tinguá, segundo ela. Deitado no chão, entre placas de papelão e um fino cobertor, Marcelo Nascimento, de 38 anos, seu marido, repousava de uma operação de apendicite recém-realizada. Os pontos da cirurgia sequer haviam caído, e no dia seguinte ele teria que voltar para o emprego de guardador do Vaga Certa. Na noite de calor intenso, o medo de Marcelo era que viesse chuva pela frente.
– O ruim de ficar aqui é quando chove. Se venta muito, molha a gente.
Segundo a Secretaria de Assistência Social, por meio da assessoria de imprensa, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) presta serviços individualizados para reinserir o morador em situação de rua no convívio social e no mercado de trabalho. O trabalho do Creas tem a intenção de recuperar laços que foram rompidos na vida do morador de rua:
“O Creas é o grande articulador com as demais políticas para trabalhar a inclusão social desse usuário que se encontra em situação de rua. Todos são atendidos pela equipe multidisciplinar, composta por assistente social, psicólogo, advogado, pedagogo, entre outros. Cada caso é avaliado individualmente e é traçado um plano de atendimento individualizado. Há pessoas que estão muitos anos na rua, mas que ainda têm família e que retornam para casa”.
Acostumado a “viver na pista” sonha com emprego para mudar de vida
Ao lado de Marcelo Nascimento estava deitado outro Marcelo. No início arredio com a equipe de reportagem, não quis revelar o sobrenome nem a idade. Pelos fios de pelo branco que despontam na barba, as marcas de expressão na pele negra e as experiências de vida que aceitou compartilhar, aparenta ter entre 40 e 50 anos. Do tempo em que vive na rua ele diz ter perdido a conta, mas o motivo ele lembra: briga familiar.
– Moro aqui desde que me separei da minha mulher. Tinha problemas com minha sogra. Vivíamos brigando, e minha mulher acabou ficando do lado da mãe. Não aguentei aquela situação, peguei minhas coisas e fui viver na rua. Estou acostumado a viver na pista.
Com esperança de conseguir um trabalho formal, Marcelo estava ansioso para ser chamado pela empresa de prestação de serviços onde fizera entrevista para uma vaga de jardineiro. O telefone de contato que usa é do bar a poucos metros dali. A falta de um comprovante de residência é que reduz suas expectativas. Outra preocupação é que roubem seus documentos. Por isso, dorme com carteira de trabalho, identidade e CPF debaixo da trouxinha de roupas que usa como travesseiro. A medida serve para protegê-los de outros moradores de rua e punguistas que praticam furtos enquanto dormem. A falta de comprovantes que garantam, perante a polícia e a órgãos públicos, que são cidadãos causam transtornos e humilhações a eles.
– Eles assaltam para pegar algum dinheiro, e acabam levando junto os documentos. Da última vez, fui ao Ministério do Trabalho tirar outra carteira. Lá me deram bronca por ter perdido os documentos e me mandaram ir dar queixa. Na delegacia, me humilharam e disseram que perdi meus documentos porque estava bêbado.
Pai de oito filhos, alguns levados para abrigos pelo Conselho Tutelar, Marcelo diz querer o emprego para poder resgatar a prole. Diz ter procurado o Conselho para ver as crianças, sem ser atendido.
– A Justiça nesse país não é para todos. Só funciona para quem é rico – lamenta.
Levado à rua pelas drogas, Pedro quer ser internado em clínica
Somado a falta de emprego, a pobreza e brigas com a família está o uso de drogas. Das 5 mil pessoas vivendo nas ruas do Rio, 3 mil usam substâncias psicoativas, segundo a SMAS. O pedreiro Edgar Pedro dos Santos Filho, 45 anos, é um dos que vivem esta realidade. Usuário de drogas desde a juventude, ele largou a família e foi viver nas ruas. Com idas e vindas em casas de recuperação, ele ainda mantém contato com os familiares. Vivendo de bicos, Edgar Pedro, viciado em álcool e cocaína, toma remédios comprados pela própria família para inibir a dependência. Mas, sem um acompanhamento médico e psicológico, os remédios funcionam apenas como paliativo, e o vício volta a assombrá-lo.
– Às vezes chego a ficar 15 dias sem usar, mas depois a vontade volta ainda maior. De vez em quando volto para casa, mas por causa do vício tenho que voltar para a rua, onde às vezes consigo uns bicos com obras.
Edgar está à espera de que o levem para uma clínica de recuperação de dependência química.
– Gostaria muito de ir para uma clínica para me livrar do vício. Ainda tenho esperanças de me recuperar, mas preciso de ajuda, pois estes remédios não estão me ajudando em nada.
A Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio afirmou que não faz internação compulsória de adultos, mas presta encaminhamento aos usuários de rua que gostariam de se tratar por vontade própria.
Na rua entre os ratos
A última integrante do grupo é uma mulher que aparenta ter cerca de 50 anos e algum distúrbio mental. Deitada no chão sujo, sem sequer a proteção de um pedaço de papelão, ela se revira de um lado para o outro num sono intranquilo. Marcas escuras na pele denunciam a falta de banho por muito tempo. Ela acorda, levanta, olha o Largo da Carioca vazio e resmunga palavras sem sentido.
Após sair por alguns minutos, Juliana volta com pacotes de biscoito e divide entre seu grupo, ou família já que alguns dicionários definem como tal, também o grupo de agregados que dividem o mesmo teto.
Juliana, mesmo acostumada às durezas da vida, não perde o medo e as manhas que caracterizam mulheres de qualquer classe social quando se veem diante de um rato. E eles são muitos, entrando e saindo dos ralos e bueiros do centro da cidade, e chegam a medir alguns, cerca de 30 centímetros do focinho à calda pelada. Aos vê-los, Juliana solta gritinhos nervosos.
Diante da histeria de Juliana, Marcelo, o que quer manter o sobrenome resguardado, soltou uma risada e disparou:
– Pra que tanto medo? Esta é a casa deles também. De dia, somos nós que perambulamos por aí. À noite é a vez deles.
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Quando viver na rua é uma escolha “A sociedade deve deixar de ignorar as pessoas de rua e começar a vê-las como seres humanos”, afirma Jorge Eduardo Guisa, coordenador do projeto mexicano Ponte em Mi Lugar, que ajuda pessoas de rua. A frase resume a ideia do documentário Quando a casa é a rua, de Thereza Jessouroun, lançado no dia 7 de novembro, no auditório B8 da PUC-Rio. O filme mostra a vida de jovens mendigos na cidade do México e no Rio. Todos os entrevistados concordam em um aspecto: as crianças precisam de um lar com amor e carinho para não escolherem a rua como refúgio. Este é o caso de Javier, cujo pai bebia e batia na mulher, que trabalhava das 6h à 1h da manhã, e descontava suas frustrações no filho. Aos 9 anos, ele começou a fumar e escolheu a rua como nova casa. Viciado, precisou se prostituir para conseguir mais drogas. Decidiu mudar de vida quando conheceu o projeto de Guisa. A cineasta ouviu o coordenador do projeto carioca Amar, que ajuda famílias e comunidades no combate a pobreza. Sebastião de Andrade, o Tião, ressalta que seu trabalho é diferente do realizado pela prefeitura do Rio: – A prefeitura faz recolhimento obrigatório. Eu crio um laço com a pessoa, falo, ouço, alimento, e então a convido para conhecer uma vida diferente. Se ela quiser, vai comigo até o projeto. Fábio “Mossca”, que já não é mais morador de rua, conta que sua mãe viveu e morreu nas ruas. Ele explica que não é fácil abandonar a vida desregrada: – Escolhemos a rua para ficarmos quietos no canto, sem ninguém falando. Às vezes, a pessoa sai da rua, mas a rua não sai dela. |
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