Júlia Zaremba - Do Portal
13/11/2012O debate Memória da Ditadura: o desafio ético de resgatar a história clandestina reuniu perseguidos políticos, ex-militantes, parentes de desaparecidos e jornalistas para relembrar a vida de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, personagem principal do livro Seu amigo esteve aqui (Editora Zahar), que a jornalista Cristina Chacel lançou nesta segunda-feira, na Livraria da Travessa do Leblon. O encontro tratou de temas como a Comissão da Verdade e a Casa da Morte, local de tortura mantido pelo Centro de Informações do Exército nos anos 1970, onde Beto teria morrido.
Integrante da VAR-Palmares, Beto foi preso em 1971 no Rio de Janeiro, e nunca mais visto. A certeza de que fora assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis, veio com uma frase dita por um torturador a uma de suas companheiras de militância e amiga, Inês Etienne, também presa no local: “Seu amigo esteve aqui”. Em seu discurso de posse, em fevereiro de 2010, a presidente Dilma Rousseff prestou homenagem àquele que a comandou nos tempos em que militava.
Única sobrevivente da Casa da Morte, onde foi torturada e seviciada, Inês, hoje com 70 anos, compareceu ao lançamento com a irmã, Anitta Etienne. Com a fala e a memória comprometidas por um traumatismo crânio-encefálico em 2004 (quando teve a casa invadida por um homem que a golpeou na cabeça e fugiu), ela assistiu atenta ao debate, e reagia toda vez que o nome do amigo era mencionado. Inês conheceu Beto na faculdade de Sociologia, em Belo Horizonte, onde viviam. Juntos, abriram um barzinho em uma garagem, o Butcheco – junção de boteco com Che Guevara –, palco de muitas trocas de ideias pelos militantes dos grupos que futuramente desafiariam o regime.
– Minha irmã reagiu ao livro com grande alegria. Fomos amigas dele da sua mocidade até ele desaparecer. Era muito querido por todos, bonito, simpático, e se relacionava muito bem com pessoas mais velhas – lembrou Anitta.
Também participaram do debate o jornalista Álvaro Caldas, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, e Sérgio Ferreira, primo de Beto. Responsável pelo prefácio do livro, Caldas, também preso e torturado, lançou na década de 80 o livro Tirando o capuz, que trazia relatos, denúncias e memórias do período. O jornalista acredita que o país vive uma segunda fase na publicação de livros sobre a ditadura militar, em parte estimulada pela Comissão da Verdade.
– Estamos retomando uma fase de reconquista da nossa história. Houve uma primeira fase muito próxima da ditadura, em que foram lançados livros quentes, ainda em pleno regime. Agora, nesta segunda fase, temos uma nova safra, sobre Marighella (O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães), Herzog (O caso Herzog, de Audálio Dantas) e Beto, por exemplo. Agora é hora de uma investigação mais profunda sobre a verdade do país – afirma Caldas, que voltou ao local onde fora torturado, em Recife, 36 anos depois e escreve um livro que tem o período como pano de fundo.
Ainda sobre a Comissão da Verdade, Caldas acredita que tornou pública uma questão ignorada pelos veículos de imprensa por muito tempo:
– Os jornais trataram a questão da repressão, da tortura e dos desaparecidos como se fosse uma questão nossa, da esquerda, dos que lutamos contra a ditadura. Mas é uma questão da sociedade como um todo, e agora eles estão dando alguma atenção – afirmou o ex-professor da PUC.
O jornalista defende que locais como a Casa da Morte e o DOI-Codi sejam tombados pelo Estado, a exemplo do que aconteceu com casas de tortura na Argentina. Para ele, os anos de chumbo devem ser lembrados pelas futuras gerações não apenas pelas tragédias:
– É importante destacar a nossa resistência. A juventude da minha geração se integrou a essa luta, com um desejo de mudança, com uma grande participação. Acho isso muito bonito, um exemplo, que mostra que é possível lutar, e nós lutamos. Tivemos perdas imensas, muitos amigos meus estão mortos, mas é preciso acreditar em alguma utopia e lutar por ela.
Primo de Carlos Alberto, Sérgio Ferreira segue firme no propósito de resgatar a história e a verdade:
– Na agenda de redemocratização da América Latina, houve uma Constituinte, Diretas Já, volta dos sindicatos, liberdade da imprensa e de expressão, uma agenda longa que gerou vitórias espetaculares. Mas tem um patinho feio nessa história, uma pequena luta nessa agenda enorme: a luta dos desaparecidos políticos e seus familiares.
Com a publicação de Seu amigo esteve aqui, a jornalista Cristina Chacel, que já trabalhou em jornais como O Globo e Jornal do Brasil, pretende colorir uma parte das páginas em branco da história do país, mostrando a vida “de um militante político que desapareceu da vida e da história”. Apesar de não ter conhecido Beto, afirma que ele a inspira, e que o momento é oportuno para o lançamento:
– Quando se abre um tampão de algo que ficou muito tempo submerso, jorram informações e contrainformações, é preciso saber selecionar. Pretendo contar, com organização e convicção, que valeu a pena aquele tempo para estarmos aqui agora, e que construímos uma nova história.
Sugestão do antropólogo Alfredo Wagner a Cristina, o livro contém 60 depoimentos de ex-companheiros, e levou três anos para ser concluído. Na noite de lançamento foram vendidos mais de 230 exemplares. A enorme fila para dedicatórias ou parabéns à autora se estendeu por mais de duas horas, e só chegou ao fim às onze e meia da noite.
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