No alto do morro Santo Amaro, no Catete, entre becos estreitos, minúsculos campos de futebol com o piso irregular e a presença de policiais fortemente armados da Força Nacional, as crianças da comunidade buscam alguma diversão em uma manhã de sábado ensolarada. Inconformados com a situação dos pequenos, um grupo de moradores resolveu aderir ao trabalho da Pastoral da Criança e fazer algo pelas crianças do morro.
Com a supervisão de Maria da Glória M. da Rocha, coordenadora da Pastoral da Criança no Rio, os moradores formaram um grupo de apoio e solidariedade às crianças da comunidade. Todos os sábados os voluntários se unem para um encontro com as crianças, onde brincadeiras e lanches são oferecidos. Mas não é só nisso que consiste o trabalho.
Só no Santo Amaro, 45 crianças são atendidas pelo projeto que foi criado há 29 anos pela CNBB, sob a liderança da médica sanitarista Zilda Arns, morta em 2010 durante uma missão no Haiti, quando o país foi assolado por um terremoto. A Pastoral da Criança nasceu com o intuito de reduzir a mortalidade infantil no Brasil. Eles acompanham as gestantes e as alertam para a necessidade do pré-natal e do aleitamento materno.
O último dado do IBGE mostrou perspectivas positivas sobre a queda no número de crianças recém-nascidas que morrem no Brasil. Segundo a instituição, a mortalidade infantil no Brasil caiu 73% nas duas últimas décadas. Ainda assim, os esforços dos voluntários em reduzir ainda mais este número não param.
A equipe, mesmo com dificuldades como o tempo curto e o desemprego, encontra motivação para tocar o trabalho há cinco anos na comunidade. Os integrantes são capacitados em cursos para acompanhar o desenvolvimento das crianças, que têm os dados registrados por uma ficha de acompanhamento que é enviada trimestralmente para a sede nacional da Pastoral, em Brasília. O grupo recebe uma ajuda de custo do Ministério da Saúde para o lanche das crianças.
Logo pela manhã bem cedo, a coordenadora Maria da Glória saiu do bairro de Santa Cruz e subiu a extensa ladeira que dá acesso ao morro. Ela acompanha o trabalho da líder, a recém-formada Luciana Mendes. As duas visitaram a casa de Maria da Penha Silva, de 45 anos, para passar instruções sobre os cuidados com o bebê e, sobretudo, alertar para amamentação do pequeno e saber se já havia feito o teste do pezinho. O trabalho da Pastoral é ecumênico, atendendo a crianças de todas as religiões. Luciana, que nas horas vagas trabalha como recepcionista, define o trabalho como um exercício de social e espiritual:
– Nós levamos valores de cidadania e de religião. Temos o apoio de uma pediatra que presta serviços para as famílias. Uma de nossas principais preocupações com as crianças é com o lazer, e gostaríamos muito de poder construir uma brinquedoteca.
A falta de voluntários também dificulta o trabalho, segundo a dona de casa Isaura de Castro, cuja família está toda integrada no projeto.
– Somos poucos e os problemas são muitos. Precisamos de mais líderes. Tem muita mãe de crianças da comunidade que não dá o devido valor ao projeto e não estimula seus filhos a participar. Mas seguimos insistindo. As crianças daqui precisam muito – reclama.
O filho de Isaura, Rafael Castro, único homem do grupo, mesmo tendo que trabalhar de segunda a sábado como auxiliar de benefícios, encontra um tempo para colaborar.
– Eu me sinto feliz em dedicar o tempo livre para ajudar as pessoas, principalmente as crianças daqui, que precisam tanto.
Rafael reitera que a falta de espaço é um dos principais problemas que enfrentam.
– A falta de espaço é hoje nosso maior problema. Falta um lugar maior para o nosso trabalho e o lazer das crianças que muitas vezes ficam soltas por aí sem alguma atividade importante para preencher o tempo.
O espírito solidário de Rafael e Isaura Castro está no DNA da família. A mãe de Isaura e avó de Rafael era parteira. O que aprendeu vendo a mãe fazer, Isaura acabou colocando em prática com uma vizinha:
– Certa vez chamaram para socorrer um bebê. A mãe foi ao banheiro e a criança nasceu, caindo dentro do vaso sanitário. Não sei o que me deu, mas, mesmo enferrujada, corri para salvar a criança. Hoje ela tem 6 anos, e participa do projeto com a gente.
Enquanto os líderes comunitários relatam o trabalho à coordenadora Maria da Glória, ela repassa instruções importantes para a equipe. A obesidade infantil é uma questão na pauta da Pastoral da Criança. O IBGE registrou um aumento de 200% na incidência de sobrepeso entre crianças de 5 a 9 anos nas últimas três décadas. A decisão da Pastoral quanto ao lanche oferecido pelos grupos é rigorosamente repassada por Maria da Glória.
– Trabalhamos fortemente contra o problema da obesidade infantil. Alimentos como cachorro-quente, refrigerante e biscoito recheado não podem entrar no cardápio. Frutas, bolos e biscoitos de água e sal e de leite estão liberados. A obesidade hoje é um problema grave que afeta nossas crianças – alerta Maria da Glória.
A trajetória do grupo voluntário, que conta com sete integrantes, nasceu da união. A igreja católica mais próxima do morro que frequentavam ficava no asfalto, alguns quilômetros ladeira abaixo. Um caminho longo e difícil, sobretudo para quem tem a idade mais avançada, como Altina Lopes e Benvinda de Jesus, as duas integrantes da Pastoral com mais de 65 anos. Eles perceberam que era a hora de construírem sua própria paróquia. Num esquema de cooperação e mutirão, construíram com os próprios esforços uma pequena capela no alto do morro. A pequena igreja, que não chega a caber mais de 50 pessoas, é uma espécie de sede do trabalho da pastoral no Morro Santo Amaro. Damiana Cavalcanti, uma das voluntárias, foi a primeira a se casar na capela. Mesmo desempregada, contou com a ajuda dos amigos para a realização do casamento.
Os voluntários reconhecem a importância de continuar tocando o projeto onde ainda há pessoas muito carentes. Em agosto, o Portal mostrou casos de famílias no Rio de Janeiro que, mesmo com todo o investimento que a cidade vem recebendo, ainda vivem em situação de pobreza extrema. Duas dessas famílias retratadas na reportagem vivem no morro Santo Amaro, a de Gorete de Souza e seus cinco filhos; e a de Tereza Ribeiro do Nascimento (leia aqui: Pobreza extrema ainda desafia o Rio dos cartões-postais).
Maria da Glória, que está sempre em contato com esta realidade dura, diz que o trabalho inspirado no legado de Dona Zilda Arns é levar também amor. E ela afirma também que nos locais onde mais se precisa é que a semente deve ser plantada como fez Dona Zilda no Haiti, o país mais pobre do continente americano.
– Nossa mestra morreu no Haiti, onde estavam os mais necessitados. Ela sempre esteve perto dos mais fracos. Nos espelhemos nela.
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