João Pedroso de Campos - Do Portal
05/03/2013Os avanços da medicina e as consequentes mudanças demográficas no país tendem, paradoxalmente, a virar um calcanhar-de-aquiles do sistema de saúde. O progressivo aumento da expectativa de vida – de 45 para 74 anos ao longo do século passado, segundo o IBGE – ameaça esgotar os modelos de formação e atuação dos profissionais da área de saúde. Especialistas alertam para a necessidade de adaptação de prevenções e tratamentos à maior incidência de doenças associdadas à longevidade. Cresce, por exemplo, a perspectiva de adoção de terapias celulares para demandas regenerativas e uma série de distúrbios, desde lesões articulares até diabetes e problemas cardíacos.
Outro ajuste remete ao atendimento adequado à expansão da quantidade de idosos (40 milhões de brasileiros terão mais de 60 até 2030). Uma das propostas de pesquisadores do setor é a "ponderação", como dizem, da atuação de técnicos em saúde – enfermeiros e optometristas, entre outros. O aumento da participação desses profissionais em casos menos complexos ajudaria a descentralizar o atendimento ainda muito centralizado no médico, o que supostamente contribuiria para aliviar a sobrecarga do sistema de saúde.
O diretor da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio, David Rubem Azulay (foto), lembra que, descontadas as diferenças socioeconômicas e políticas, a China emprega, como estratégia para atender à acentuada demanda por atendimento médico, sobretudo nas áreas rurais, um modelo baseado na combinação técnico-profissional. Os “médicos de pés descalços”, sem formação clássica, foram uma proposta do governo socialista para assistir a grande população camponesa do país:
– Os “pés descalços” corresponderiam, no Brasil, aos profissionais de nível médio, com o ciclo básico completo e mais um ano de curso técnico. O resultado foi satisfatório, considerando a situação sanitária do país anteriormente – avalia, considerando indicadores como a queda da mortalidade infantil e o significativo aumento da expectativa de vida no país asiático.
Um exemplo desse tipo de integração é a fonoaudiologia, cujos profissionais ganharam autonomia e espaço com as demandas crescentes por bem-estar. O caso mostra, segundo Azulay, como técnicos podem assumir uma participação efetiva para o aperfeiçoamento da prestação de serviços de saúde, o que se revela ainda mais estratégico diante do avanço da expectativa de vida. O especialista faz, no entanto, uma ressalva:
– A implantação de modelos do gênero depende das leis, que variam de país para país. Mas acredito que, embora a formação do médico seja obviamente superior, os técnicos possam suprir certos tipos de atendimento. O optometrista, quando se trata de exames oftálmicos e receita de óculos, é uma figura consolidada em mercados como o dos Estados Unidos – compara.
Azulay reconhece, por outro lado, diversas áreas e práticas nas quais o médico é indispensável, como a obstetrícia:
– Até partos com menos potencial de risco podem ficar carregados de complexidade no seu decorrer. Um enfermeiro, provavelmente, não conseguiria contornar a situação. Aumentaria-se muito o risco para mães e bebês – exemplifica.
Chefe do Ambulatório do Hospital Universitário Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense (UFF), o professor João Ormonde contextualiza a “reserva de mercado” atribuída à medicina e o possível descontentamento da classe médica quanto ao uso em maior escala da mão de obra técnica:
– A teoria de que os riscos aos pacientes aumentariam muito é um trunfo dos médicos contra essa proposta. Mas, na prática e na maioria das vezes, traduz o interesse do médico em proteger a si e ao mercado. Primeiro, porque é muito difícil entrar nas faculdades de medicina. Depois, porque a graduação leva muito tempo e a profissão envolve complexidade e responsabilidades acima da média – pondera.
Além das complexidades teóricas, práticas e legais a se considerar na discussão em torno da ampliação dos técnicos nos serviços de saúde, a proposta esbarra em aspectos culturais. Ormonde observa que, em geral, os pacientes se sentem mais tranquilos quando consultam um profissional. “Chegam a ficar frustrados quando saem do consultório médico sem algum papel na mão, receituários de remédios ou indicações a exames”, acrescenta.
Se a descentralização do atendimento ainda exige um cuidadoso debate e mostra-se distante de ganhar o sistema de saúde, novas tecnologias aceleram ao encontro do envelhecimento da população mundial, acompanhado pelo Brasil. Segundo Azulay, a mudança demográfica já se traduz em um novo perfil na indústria farmacêutica:
– O setor não investe mais tantos recursos em antibióticos, e sim em tratamentos contra doenças crônicas. A oncologia é a grande campeã. Basta observar a margem de cura e a sobrevida dos pacientes de câncer, que apresentaram aumento na última década. Chegam a 60% – destaca.
Governo investe R$ 15 milhões em medicina celular
Embora ainda não seja formalmente reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina Brasileiro e enfrente resistências culturais, a medicina celular insinua tornar-se uma aliada para transformar os anos a mais em qualidade de vida. O potencial para o tratamento de uma centena de doenças, revelado por estudos mundo afora, amplia a perspectiva de técnicas do gênero migrarem dos laboratórios para consultórios e hospitais. Por enquanto, o uso em pacientes só é permitido no âmbito das pesquisas clínicas, exceto das células-tronco derivadas da medula óssea humana (não embrionárias), que já vêm sendo usadas.
– Ainda é um sonho, mas um sonho possível – diz Azulay – Infelizmente, não basta que as pesquisas sejam boas. Elas têm de ser numerosas, complementares – explica o médico.
A professora do Departamento de Genética e Biologia Molecular da UniRio Ana Nogueira esclarece que há diferenças entre as células-tronco adultas, mais pesquisadas até agora, e as células-tronco embrionárias, epicentro de polêmicas morais e religiosas. As embrionárias, por possuírem alto potencial de diferenciação, isto é, poderem se transformar em qualquer tecido do corpo, são consideradas potencialmente importantes para a cura de doenças complexas, como as medulares.
– Células-tronco de medulas adultas têm menor poder de regeneração, mas, por não suscitarem polêmica e serem consideravelmente eficientes, são mais pesquisadas e já usadas no tratamento de algumas lesões de medula espinhal, além das doenças hematológicas – observa
Apesar de potencialmente eficaz, o tratamento com células-tronco pode deflagrar efeitos colaterais. O alto poder de regeneração que representa é inversamente proporcional ao controle, e a multiplicação descontrolada pode causar tumores. Assim, o uso em tratamentos, reforçam os especialistas, exige parcimônia.
– Na dermatologia, elas já são usadas no rejuvenescimento. Olhando mais à frente, a comunidade científica consegue enxergar a fabricação de órgãos para finalizar as imensas filas de espera para transplantes – projeta Azulay.
O potencial apontado por pesquisas e ensaios clínicos desperta volume crescente de investimentos públicos e privados na área. O Ministério da Saúde investiu, no ano passado, R$ 15 milhões em terapia celular. A maior parte – R$ 8 milhões – foi destinada à conclusão e estruturação de oito Centros de Terapia Celular, responsáveis pela produção nacional de pesquisas com células-tronco. Atualmente, grande parte dos insumos utilizados nas pesquisas com células-tronco realizadas no Brasil é importada. Os outros R$ 7 milhões foram aplicados em editais de pesquisa. Com esta ação, o governo quer ampliar o uso da medicina regenerativa na recuperação de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), em tratamentos como regeneração do coração, movimento das articulações, tratamento da esclerose múltipla.
– O know-how de produção vai baratear as pesquisas na área e possibilitar a produção em escala para uso comercial. A intenção é tornar esses centros aptos a subsidiar hospitais públicos e privados na recuperação de órgãos de pacientes – explica o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha.
Caminhos da medicina celular passam pelo SUS Um exemplo da evolução no uso das células-tronco é o caso de Renata Souza. Há dois anos, ela sofreu uma fratura exposta na perna direita, num acidente de moto, e, mesmo depois de passar por três cirurgias, os ossos da sua perna não se recuperaram. Renata havia perdido a esperança em voltar a andar, até que foi indicada a participar de um tratamento experimental, custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS): a injeção de células-tronco no local da fratura, para ajudar na consolidação dos ossos. A técnica se utiliza de células do próprio paciente. Com uma agulha especial, o médico retira as células-tronco da medula óssea e as injeta no local da fratura. A cirurgia dura cerca de uma hora, e o paciente volta para casa no dia seguinte. A evolução total do osso ocorre de seis meses a um ano depois da intervenção. – A surpresa positiva é que praticamente todos os pacientes evoluíram bem. Não tivemos nenhuma complicação. Estabelecemos a segurança do método, que é minimamente invasivo. – afirma Vinícius Garneiro, médico responsável pelos tratamentos ortopédicos com células-tronco no Rio, pelo SUS. Depois de seis meses, com a ajuda da fisioterapia, os ossos de Renata se consolidaram e ela voltou a andar. O caso abriu precedente para o aprofundamento das pesquisas: o procedimento está em fase de estudo no Instituto Nacional de Traumato-ortopedia, onde já há 800 pessoas na espera. Ele é realizado apenas em ossos longos, como das pernas e braços. – Era uma novidade, mas, como eu e o doutor Vinícius conversamos, não havia nada a perder. Mesmo sem conhecer muito sobre células-tronco, isso renovou minhas esperanças. Hoje sou a prova de que o tratamento realmente é viável – conta Renata. |