As raízes da desigualdade social no Brasil são velhas conhecidas. Remontam ao período colonial, apontam historiadores. Da concentração de terras nas capitanias hereditárias e da força de trabalho escravo baseado na violência até um processo abolicionista conveniente a proprietários escravocratas, o Brasil legava um terreno fértil ao avanço do desequilíbrio na distribuição de renda – a quarta pior da América Latina, segundo levantamento da ONU divulgado há 15 dias. Embora a estabilidade e o crescimento econômico da última década, somados a programas como Bolsa Escola e Bolsa Família, tenham reduzido os déficits sociais e promovido a badalada ascensão da Classe C, o vigor de sexta economia mundial revela-se ainda insuficiente para extinguir a miséria que assombra 16,2 milhões de brasileiros, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como as famílias de Gorete e Antônia, moradoras do Rio, apresentadas nas duas primeiras reportagens desta série. Com menos de R$ 70 per capita mensais, confiam no assistencialismo, na criatividade e na educação dos filhos para superar a pobreza extrema que contrasta com os cartões-postais e a projeção internacional impulsionada por Copa e Olimpíadas.
No combate à pobreza, algumas das armas que têm se mostrado mais efetivas são os programas de distribuição de renda idealizados e aperfeiçoados por governos de diferentes colorações políticas. Do tucano Fernando Henrique Cardoso ao petista Luiz Inácio Lula da Silva e à sucessora Dilma Rousseff, o poder central vem recorrendo àquele tipo de inciativa para dirimir uma das maiores desigualdades do continente. Apesar dos avanços, o desequilíbrio mostra-se inferior apenas às de Guatemala, Honduras e Colômbia, segundo o relatório das Nações Unidas sobre a região. Um atraso que destoa, por exemplo, dos investimentos estrangeiros no país – quase US$ 66,7 bilhões no ano passado – e das ambições de figurar entre cinco primeiras economias do planeta e de conquistar uma cadeira cativa no Conselho de Segurança da ONU.
O Estado do Rio é um dos emblemas desse paradoxo verde-amarelo. Por um lado, comemora a volta dos investimentos e da autoestima capitaneados pelos grandes eventos internacionais. Por outro, estampa, longe dos holofotes, casos de pobreza extrema. Em 2010, o Rio foi o estado brasileiro que mais recebeu investimento nacional e internacional, conforme apontou o Relatório de Anúncios de Projetos de Investimentos (Renai), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Até 2013, receberá US$ 18,45 bilhões, projeta a Receita.
Os números generosos ainda não alcançam os 586 mil habitantes que, segundo o Censo 2010 do IBGE, batalham contra o nível mais rasteiro de pobreza no Rio, no qual são enquadradas as famílias cuja renda per capita mensal fica abaixo de R$ 70. Indiferentes a classificações, Gorete e Antônia, e outros tantos Brasil afora, renovam a esperança de que parte dos investimentos mude suas vidas. Sonham com o básico: emprego, casa e educação para que os filhos possam "progredir e se manter afastados do caminho das drogas". No dia a dia assombrado pela memória e pelo medo da fome, eles encontram sabedoria para buscar trilhos menos efêmeros do que as fontes assistencialistas. Confirmam, instintivamente, o consenso acadêmico de que a solução vai além do aumento de renda. Nesta reportagem, que fecha a série Feições da Miséria, gestores públicos e especialistas discutem os caminhos para superação da pobreza e da desigualdade crônicas no país.
Educação precária contribui para a permanência na pobreza, observam especialistas
As famílias visitadas pelo Portal apresentam traços sociais comuns, que ajudam a explicar o estágio de "pobreza extrema", de acordo com classificação do IBGE: baixa escolaridade, acesso deficiente à saúde, à educação, ao lazer e ao mercado de trabalho. O baixo nível educacional os empurra para o emprego informal e mal remunerado, como bicos de pedreiro e serviços domésticos sem qualificação.
O secretário de Assistência Social do Rio, Rodrigo Neves, reconhece a necessidade de as políticas de transferência de renda caminharem juntas de iniciativas "compensatórias" ou complementares. Um dos responsáveis pela implementação do programa Renda Melhor no estado, o sociólogo de formação ressalta que é importante "enxergar a pobreza em seus diversos ângulos":
– Sabemos que a pobreza é um fenômeno multidimensional. Não adianta resolver só o problema de distribuição de renda. Uma trajetória de inclusão social passa pela educação.
Embora o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) divulgado no mês passado tenha apontado um (pequeno) avanço em relação à avaliação anterior e escolas do Rio tenham obtido a segunda, a terceira e a quarta melhores médias do ranking nacional, o estado também conta com uma escola entre as cinco piores da avaliação. Mais um retrato da desigualdade no estado, e a confirmação do longo caminho para a educação pública tornar-se compatível, por exemplo, com as aspirações econômicas e com a carga tributária em torno de 40% do Produto Interno Bruto (PIB), a soma das riquezas produzidas no país.
Baixa escolaridade, lembram os acadêmicos, admitem os gestores, é um obstáculo, entre outros dramas, ao emprego, ou ao melhor emprego, à inclusão social, ao aumento da renda. Irriga uma ciranda difícil de ser quebrada até pelos planos de transferência de renda, observa Francisco Menezes, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundada em 1981 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
– Trabalhar e ter uma renda são o que permite uma família sair da pobreza extrema. A falta de serviços é a principal barreira a ser vencida. Uma família no fundo do poço não tem condição de o pai e mãe procurar um emprego e nem de mandar um filho para a escola. Uma mãe que não consegue vaga em uma creche não encontra condições de entrar no mercado de trabalho – exemplifica Menezes.
O cientista político e coordenador do Instituto Mais Democracia (IMD) João Roberto Lopes Pinto, concorda com esta lógica e acrescenta que a baixa renda não é o único ponto a ser combatido pelo estado:
– A pobreza não tem a ver apenas com a renda, mas também com a falta de acesso a direitos básicos como transporte público de qualidade, saúde pública e educação pública de qualidade. O programa de transferência de renda é positivo, porém a política publica está mais focada nesta coisa de gerenciar a pobreza e não de pensar soluções mais estruturantes para a desigualdade no país.
Falta de qualificação prejudica aproveitamento de recorde de empregos
Deficiência na qualificação prejudicam o aproveitamento do recorde de geração de empregos registrado em abril desta ano na Região Metropolitana. Foram abertos 14.235 postos de trabalho, informa o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Em todo o estado, as novas vagas chegaram a 18.541. No entanto, parte delas se manterá ociosa por falta de profissionais qualificados.
Pesquisa feita, no ano passado, pela Federação das Indústrias do Rio (Fierj), constatou que 60% das fábricas instaladas no país pretendiam aumentar o número de funcionários. No entanto, a maioria delas (53%) encontrou dificuldades para preencher os novos postos de trabalho justamente por causa da escassez de mão-de-obra capacitada.
Especializada em pesquisas referentes a pobreza e desigualdade social, a socióloga Maria Sarah da Silva Telles, do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, avalia que a solução demanda um "trabalho estrutural":
– Se não for acompanhado de uma política de geração de empregos bem remunerados, de qualificação dos jovens da rede pública, a situação continuará precária: os cidadãos mais fragilizados precisam da ajuda do Estado para poder se sustentar, viver dignamente, pagar suas contas, acompanhar os estudos de seus filhos etc. Só assim teremos uma sociedade justa e menos desigual.
Alto custo de vida deixa os mais pobres ainda mais vulneráveis
Os altos investimentos aportados no Estado são acompanhados de um dos maiores custos de vida do continente. Os grandes eventos programados para a cidade aquecem a economia, mas também a inflação. De acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a Região Metropolitana do tem a maior inflação entre as 11 regiões pesquisadas pelo IBGE. Enquanto no país a inflação média ficou em 2,32% até junho, na região fluminense fechou em 3,16% no mesmo período. A carestia deixa as famílias mais pobres ainda mais vulneráveis, afirma Francisco Menezes:
– O Rio está caro demais. Os grandes eventos trouxeram uma explosão nos preços. A população mais pobre fica mais suscetível diante da alta dos preços, agravando a miséria no estado. Há politicas emergenciais, como cozinhas populares, mas não são suficientes.
O mar de investimento que cobre o Rio é visto com desconfiança por João Roberto Lopes, autor do livro Economia solidária: de volta à arte da associação (Editora Empório do Livro). Para ele, a lógica dos investimentos na cidade serve, sobretudo, para reforçar a concentração nas mãos de um grupo e não para beneficio "de quem realmente precisa":
– Estes investimentos estão voltados para os ganhos e negócios de poucos, uma lógica de concentração, de elitização da cidade, muito mais do que investimentos mais distributivos e descentralizados pela cidade. Não geram uma distribuição, pelo contrário, deslocam recursos que deveriam ser utilizados em políticas sociais efetivas em termos estruturantes. A ausência de recursos em políticas sociais mais efetivas acaba reproduzindo este quadro de pobreza não só no Rio mas no pais inteiro – opina.
Se no país o limite da renda per capita para uma família ser classificada em pobreza extrema é de R$ 70, no Estado do Rio este valor aumenta por causa do alto custo de vida. Para tornar mais justos os "parâmetros da miséria" no estado, Rodrigo Neves subiu o teto para R$ 100 per capita.
– Adotamos uma linha de miséria de R$ 100 por mês para cada integrante da família. Essa linha é maior que a linha do Brasil sem miséria, de R$ 70/mês. Nós consideramos que a pobreza no Rio, por ser um estado metropolitano, o custo de vida é mais alto e o limite para a linha da pobreza deveria refletir isto. Por isso uma linha mais generosa – justifica.
Menezes ressalta que o direito ao alimento, garantido pela Constituição, não deve ser barganhando como mero produto de mercado:
– O alimento é um direito. Está na Constituição. Tem que ser garantido, caso contrário há uma grave violação do direito constitucional. O alimento não pode ser tratado como mais um produto comercial a ser negociado na bolsa.
Bolsa Família apresenta resultados positivos mas insuficientes, ressalvam analistas.
Quase 20 anos depois de o Bolsa Escola ser implantado, em 1994, no governo Fernando Henrique, e perto de o Bolsa Escola, implantado no governo Lula, completar dez anos, os programas de transferência de renda apresentam resultados positivos. Entre 2002 e 2006, a miséria no país caiu 27%, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Órgãos internacionais como o Bird e a Organização Internacional do Trabalho elogiaram publicamente o projeto e ressaltaram a necessidade de se ampliar seu uso.
Rodrigo Neves rebate as críticas aos programas do gênero nesses anos. Lembra que os planos de distribuição de renda contam, atualmente, com um cadastro único utilizado pelas três esferas de governo no país. Enfatiza que são "republicanos alheios a manipulações eleitorais".
– Pela forma como [o Bolsa Família] foi implantado, sua gestão blindou o programa para fins eleitorais. Porque ninguém é dono do cadastro único ou do beneficio. A porta de entrada é absolutamente republicana. Além disso, um conselho de controle social formado pela sociedade civil pode receber denúncias de não-cadastramento. A seleção é feita por critérios técnicos do governo federal. O caráter técnico do trabalho diminuiu o clientelismo. Algumas auditorias foram feitas via TCU e ficou demonstrado que, independente da filiação partidária de prefeito ou governador, não houve privilégio a qualquer município – assegura.
O "republicano" Bolsa Família não deixa de ser uma importante máquina eleitoral. Em 2010, ano de eleição presidencial, uma pesquisa do Ibope constatou que 22% dos eleitores nordestinos recebiam o Bolsa Família. Na região, para cada voto em José Serra, a presidente Dilma, que representava a continuidade de Lula, logo a permanência do projeto, teve o dobro.
Neves acrescenta que o programa tem "forte controle" de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU). Ele diz também que o "efeito preguiça”, apontado como uma das principais ameaças, "não foi observado" e o Bolsa Família, assim como o Renda Melhor e o Renda Jovem no Rio, ajuda a aquecer a economia:
– Esses programas têm um peso pequeno quando se compara com o PIB. O Bolsa Família beneficia 13 milhões de famílias e custa meio por cento do PIB. Prova de que não pesa tanto nas contas nacionais. E tem um efeito multiplicador nas economias locais, gera mais negócios, mais empregos e mais impostos. Em certo sentido, se autofinancia e ajuda o país a crescer, quebrando aquele dilema que diz é preciso crescer primeiro para depois distribuir. O efeito preguiça não foi comprovado. Observa-se um discreto aumento dos beneficiados no mercado de trabalho.
Embora reconheça os resultados positivos de programas do gênero, Francisco Menezes pondera que algumas cidades do interior do país ainda estão sujeitas ao clientelismo e a desvios de dinheiro público destinado a ações de distribuição de renda:
– O Bolsa Família é um ótimo projeto no plano federal. Mas, em alguns municípios, ainda se vê clientelismo e desvio do erário público. É um desafio grande. Sem contar que há moradores de rua que não estão no cadastro do governo federal. Nos rincões do país, onde não se tem informação, a pobreza persiste.
João Roberto Lopes diz que o programa é "importante, mas limitado para dar conta da complexa realidade social dos que vivem na miséria". Ele propõe a inclusão de outras políticas que ajudem a melhor garantir os direitos sociais:
– É uma proposta positiva (o Bolsa Família) e contribui para reduzir a pobreza, mas como se vê pelas últimas pesquisas a desigualdade é persistente e marca a estrutura social brasileira. Contudo, é um programa com potencial limitado para responder à desigualdade estrutural, e me parece que hoje a lógica do governo federal, mas também em outros níveis, é focar muito nesses programas em detrimentos de outras políticas que possam assegurar uma promoção efetiva de direitos sociais.
Maria Sarah estende a responsabilidade à sociedade civil. Com a experiência da pesquisa na favela Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio, para a sua tese de doutorado, a professora avalia que nos acostumamos com a pobreza urbana:
– A sociedade brasileira não conseguiu, até hoje, fazer uma opção cidadã. Nossa opção tem sido a de nos habituarmos a conviver com a pobreza, como parte de nossa paisagem urbana, e com um salário mínimo de R$ 622 para uma grande massa de brasileiros.
Perto do Corcovado e da bela vista para a Baía de Guanabara, Gorete e seus cinco filhos esperam por condições que possibilitem a mudança do casebre mal iluminado, quase em ruínas, e a entrada no mercado de trabalho. Em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Antônia, o marido e os filhos confiam nos sacolés no freezer de segunda-mão para esticar a renda decorrente da assistência dos governos estadual e federal. Pertencem ao meio milhão de moradores do Rio que se equilibram no fio da "pobreza extrema" e torcem para que investimentos como o novo Maracanã e o novo Porto se convertam em perspectivas de melhor emprego, educação e serviços públicos.
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