Monique Rangel e Tiago Coelho * - Do Portal
02/07/2012Ao oficializar como Patrimônio da Humanidade a paisagem do Rio, a Unesco confirmou, neste fim de semana, o óbvio: poucas cidades no mundo vivem um casamento tão feliz entre os colírios naturais e o concreto. Enquanto autoridades municipais, estaduais e federais prometem políticas conjuntas para, como disse a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, cumprir a responsabilidade de melhor preservar e aperfeiçoar a integração da natureza com as "intervenções humanas" – e assim convertê-la em dividendos culturais e econômicos – , uma parcela dos cariocas já transforma o cenário premiado em salário indireto. Garis, executivos, garçons, professores de escalada, pescadores, historiadores, adminstradores públicos incorporam à rotina cartões-postais como o Pão de Açúcar, a Lagoa, a mureta da Urca. (Veja galeria com fotos de alguns dos pontos que contribuíram para o título internacional.)
Do encontro diário com essas dádivas, eles extraem inspiração e até lucro. Mas reconhecem é insuficiente para compensar atrasos incompatíveis com as ambições e os deveres de metrópole olímpica e ex-capital da República. "Sabemos que o Centro do Rio precisa de mais atenção, especialmente em relação aos prédios históricos, a exemplo da orla de Copacabana, onde a ordenação ainda não é ideal, e do paisagismo no Aterro, onde a manutenção dos jardins e da vegetação deve ser impecável", reconhece o urbanista Washington Fajardo, subsecretário municipal de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design.
Íntimo das belezas espalhadas pelas calçadas da Cidade Maravilhosa, o gari Renato Sorriso tornou-se um embaixador informal dos predicados cariocas. Na próxima semana, ele embarca para Suíça, onde representará o Brasil num intercâmbio sobre limpeza pública. Por força do ofício, ele reforça a importância de se preservar o conjunto de beldades visuais:
– O carioca não tem só que curtir o visual. Tem que assumir a responsabilidade de deixar a cidade cada vez mais limpa e bonita.
Sorriso lembra também que a beleza do Rio vai além dos cartões-postais da Zona Sul. Estende-se, por exemplo, às rodas de samba de Madureira, "berço das mulatas e dos grandes malandros":
– Para conhecer os encantos do Rio, é preciso ver também Madureira, o Maracanã (em obra, será reaberto no próximo ano, para a Copa das Confederações), a Sapucaí.
Assim como o gari alçado a garoto-propaganda, o vendedor João Antônio Soares, transformou as belezas cariocas em receita. Há 21 anos à frente de uma barraca na praia do Leblon, ele aposta no crescimento de turistas:
– O título de Patrimônio da Humanidade não é suficiente para atrair mais turistas. Precisamos manter alta a qualidade de serviços e aumentar os investimentos na Zona Oeste e no subúrbio. – opina João.
Sinônimo de contemplação no Leblon, na Lagoa, no Jardim Botânico, no Centro, a admirada estampa carioca também significa produtividade. Wellington Alves, gerente de projetos da WeDo Technologies, conta que a paisagem do Pão de Açúcar, da Baía e do Aterro ajuda a se produzir melhor. Com esses "companheiros" no escritório instalado no alto da torre do Rio Sul, o executivo mantém a "cabeça arejada" para tocar os projetos da multinacional especializada em revenue assurance.
– O entardecer é especialmente lindo. Assim, temos que produzir bem. Ajuda também o lugar onde eu moro, na Barra, cuja integração com a natureza é igualmente um prêmio.
Na Urca, a integração é reforçada com atrativos ao paladar. Há cinco anos, o cearense Nilton Abreu, copeiro do bar que leva o nome do bairro, acompanha a legião de cariocas e visitantes decididos a saborear uma empada, um pastel, um cerveja gelada, por exemplo, de frente para uma das paisagens mais emblemáticas do Rio.
– O visual encanta cariocas e turistas. Com o reconhecimento internacional, a tendência é o número de visitantes aumentar ainda mais – espera Nilton.
A fama da orla carioca atraiu o baiano Leonidas da Silva, que há 10 anos troca Ilhéus pela capital fluminense durante o verão. Vende mate nas areias do Leme ao Leblon, uma maratona atenuada pela paisagem de folhinha. Neste ano, Leonidas aumentou a estada no Rio, pois "o calor não vai embora". Ótimo para os negócios, os dias ensolorados ganham, na moldura carioca, uma dimensão até filosófica:
– Lá do Cristo a gente tem a verdadeira dimensão das coisas, e a gente percebe o quão a cidade é maravilhosa.
Não menos maravilhosa é a Lagoa, diz a remadora catarinense Fabiana Beltrame, campeã mundial no ano passado, na Eslovênia. Atleta do Flamengo, ela madruga ao sair de sua casa, em Botafogo, para treinar em um dos espelhos d'água urbanos mais bonitos do mundo. "É um privilégio ver o dia nascer da Lagoa", delumbra-se. Ela considera um trunfo da cidade a integração entre os moradores, os atletas e a natureza:
– O Rio é um lugar inspirador para os atletas. Ver os amadores treinando me dá mais vontade de competir. E sinto que eles vêem nos profissionais um modelo.
Com a rotina oxigenada pelos encantos naturais, Fabiana, Leonidas, Wellington, Sorriso, e outros tantos, consideram-se "privilegiados" por trabalharem ou treinarem em cartões-postais cujos encantos independem de reconhecimentos externos. No entanto, as paisagens preferidas não são necessariamente aquelas que fazem parte do dia a dia deles:
Washington Fajardo, urbanista e subsecretário municipal de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design: "O título concedido pela Unesco representa o reconhecimento do mundo para aquilo que o carioca conhece bem. Resultado da criatividade e inteligência de nossa cultura. O Aterro e a orla são importantes exemplos de como a intervenção urbana e natural podem ser aliadas de forma harmônica. É uma ação da inteligência carioca, e um sinal para o mundo da possibilidade de as grandes cidades equilibrarem urbanismo e natureza. O meu recanto preferido é o Passeio Público. É ali que a cidade começa, inclusive como exemplo da harmonia entre intervenção humana e natureza".
Renato Sorriso, gari: "Madureira e Sapucaí, todos que vierem para cá têm que conhecer. Se vierem e não conhecerem esses lugares, não estiveram no Rio."
João Antônio Soares, vendedor de barraca na praia do Leblon: "Gosto muito de trabalhar na praia do Leblon. Essa é a melhor vista do mundo".
Wellington Alves, executivo: "O ponto turístico mais bonito do Rio é o Pão de Açúcar. Seu visual faz parte do dia a dia do nosso trabalho. A Barra, onde moro, também é especial por sua integração com a natureza. Andando cinco, dez minutos, já consigo observar a beleza da Pedra da Gávea".
Leonidas da Silva, vendedor de mate: "O meu lugar favorito é o Cristo. Lá é a melhor vista da cidade, porque eu estou do alto. Lá de cima, a gente tem a verdadeira dimensão de o quanto a cidade é maravilhosa".
Fabiana Beltrame, remadora do Flamengo: "Não me canso da Lagoa. Mesmo sendo meu local de trabalho, é o meu cartão-postal preferido do Rio".
Cíntia Adriane, instrutora de escalada: "Não acredito que o título dado pela Unesco melhore o negócio (de escalada), porque a maioria dos clientes é brasileira. Mas o Rio é um ótimo lugar para essa área, por conta da exuberância natural".
Nilton Abreu, copeiro do Bar Urca: "Essa vista aqui (na Urca) sempre foi um espetáculo, um atrativo que deixa a mureta lotada. Com o título da Unesco, acredito que a quantidade de visitantes vai aumentar ainda mais.
* Colaboraram Caio Cidrini, Caroline Hülle, João Pedroso de Campos, Matheus Vasconcelos, Renan Rodrigues, Rodrigo Serpellone e Vitor Afonso.