Tiago Coelho e Rodrigo Serpellone - Do Portal
19/06/2012Uma profusão de línguas, sotaques e culturas formam uma Babel na Cúpula dos Povos, no Aterro do Flamengo. Visitantes de outros estados e países circulam pelos fóruns espalhados no maior parque urbano do mundo, no qual estão montadas 50 tendas. Até a próxima sexta, quanto termina a reunião paralela às discussões oficiais da Rio+20, 30 mil pessoas terão circulado pela área de 1 milhão de metros quadrados onde organizações civis discutem ideologias e propostas para o tão sonhado "mundo sustentável" e trocam experiências culturais.
Na manhã de sábado, dia mais concorrido da Cúpula, todos os olhos estavam voltados para a tenda em se reuniram comunidades indígenas, de Roraima ao Rio Grande do Sul, que integram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Os nativos brasileiros estavam acompanhados por grupos vindos de países latino-americanos. Antes de exporem suas reivindicações, os índios saudaram uns aos outros como “parentes”, enquanto nas tendas vizinhas hare krishnas cantavam em coro e um pai de santo mandava axé para os “facefriends” que acompanhavam a apresentação pela rede social Facebook. Na mesa de debates, as lideranças reivindicavam as terras que, segundo eles, são tomadas por grileiros e agricultores "à custa de muito sangue". Os índios pediam também uma participação maior nas decisões ambientais do país:
– O modelo econômico que o governo brasileiro tem como meta é contrário aos povos indígenas. Nós temos direitos constitucionais e internacionais. O governo precisa ouvir os índios, pois nós sabemos como usar os recursos da natureza sem destruí-la – argumentou Cretan Kaingang, líder da articulação dos povos indígenas do Sul.
Os “parentes” latino-americanos reclamavam dos mesmos problemas. Edwin Vasquez Campos, líder indígena peruano, reforçou as reivindicações dos "hermanos" brasileiros.
– A disputa de terras no Peru derramou muito sangue de índio, assim como acontece no Brasil e na Colômbia e muitos outros países latinos. Estamos cansados de diálogos e conversas. A economia verde que os Estados do mundo inteiro querem nos empurrar são os dólares que querem acumular – disse o líder andino.
Questões básicas como saúde e educação também eram reivindicadas, conforme protestou o professor da tribo Manchineri, no Acre, enquanto conferia as notícias do dia em seu notebook:
– Além da compensação ambiental dos nossos povos, pedimos também benefícios básicos como educação, saúde e saneamento, esquecidos pelos governos.
No momento em que os índios discursavam, uma música do lado de fora chamou a atenção dos espectadores e da imprensa. Era entoada pelo cacique Raoni, líder caiapó que ficou internacionalmente nos anos 80 graças ao apoio do roqueiro Sting. Com o indefectível alargador de boca (botoque), Raoni virou o centro dos olhares e câmeras. O líder indígena de 82 anos aproveitou os holofotes para fazer um apelo:
– Temos que ser fortes e nos unir para brigar contra as coisas que o homem branco faz contra nós desde que chegou aqui. Eu ainda estou vivo para lutar.
Belo Monte era um alvos preferidos dos índios e ativistas. No mesmo dia em que cerca de 300 pessoas promoveram a ocupação simbólica na usina, um grupo de moradores de Altamira, no Pará, eram vozes destoantes na Cúpula dos Povos. Eles usavam uma camisa com os dizeres “Sou do Xingu, apoio Belo Monte”. Um deles, o assessor de comunicação Rafael Acácio, explica que aprova a construção da hidrelétrica pelo desenvolvimento que supostamente leva à região:
– Minha cidade tem mais oportunidades na área de emprego. Os hospitais agora têm condições mínimas de atendimento, cobertor para o paciente, coisa que não tinha há pouco tempo. Também foi implantado saneamento básico, temos água limpa e uma melhoria de renda.
Outra integrante do grupo paraense, a técnica de computador Cláudia Medeiros diz que os impactos da usina estão sendo divulgados de forma distorcida:
– Grande parte do que será destruído por Belo Monte já é área desmatada, usada como pasto para gado. O novo projeto não vai alagar cidades ou tribos. O Ibama está redistribuindo sementes e filhotes de animais para evitar a extinção de qualquer espécie.
Enquanto opiniões divergentes dividiam o caldeirão ideológico, do lado de fora outros índios tentavam lucrar com a movimentação. Colares, cocares, chocalhos impressionavam os turistas, que levavam os badulaques e pediam para tirar fotos. Um cocar foi vendido por R$ 200 reais.
O vaivém era registrado por índios munidos de modernas máquinas digitais e câmeras de vídeo profissionais. Índios tatuados, carregando colares de sementes no pescoço, braceletes de palha e brincos de madeira completavam o visual com calças jeans descoladas e tênis de marca.
Outros buscavam se integrar à economia dos "homens brancos". Joaquim Tashika Yauanawa, morador de uma aldeia no Mato Grosso do Sul, levou quatro dias para chegar ao Rio. Caminhou mais de dois quilômetros, pegou canoa, barco e ônibus para participar do fórum no qual parte da comunidade indígena iria reivindicar a participação nos lucros de empresas como Natura e Chanel, que utilizam o "conhecimento da tradição indígena" na produção de perfumes e cosméticos.
Na tenda do Green Peace, cuja energia era gerada por painéis solares e hélices para captar a energia eólica, era lançado o programa Desmatamento Zero, com o apoio de Marina Santos, representante do Movimento Sem Terra, Dom Guilherme Werlang, representante da CNBB e o deputado Sarney Filho (PV-MA). O congressista afirmou ter votado contra as propostas do Código Florestal que supostamente facilitam o desmatamento:
– A proposta como está para ser votada é um marco regulatório que possibilita o desmatamento indiscriminado. É um triste retrocesso.
Na área externa eram distribuídos papéis para serem assinados por quem quisesse contribuir com a petição. O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) afirmou que "o Congresso não está representando o povo brasileiro, mas sim os grandes proprietários rurais":
– Os ruralistas são maioria no poder e criaram um Código Florestal visando aos interesses deles, que não preserva as margens e as encostas. Isso sujeita a população a riscos de vida. O único jeito de combatê-los é com mobilização popular.
Acompanhando atentamente o debate estava o austríaco Klaus Nowotny, radicado há 20 anos no Rio. Especialista em economia agrícola, ele acredita que seja uma estratégia equivocada "um país como o Brasil ficar preso a produtos primários que provocam um alto impacto ambiental".
– Estamos exportando commodities (produtos de origem primária comercializado nas Bolsas), como no século XIX. A agroindústria não é uma coisa ruim, mas precisa ser dinamizada e respeitar os limites ambientais. Os produtos agrícolas não podem ser negociados de maneira especulatória como se faz hoje – opina.
Estudantes também reforçam o caldeirão ambiental e cultural montado no Aterro. Participante de um programa de intercâmbio, Juan Medina, de 20 anos, tem esperança quanto aos resultados das negociações da Rio+20, mas pondera que as discussões devem passar pela sociedade. Por isso, resolveu comparecer à Cúpula dos Povos:
– Transformar as discussões em realidade vai depender não apenas dos governos, mas também das pessoas. Este é um bom espaço para as organizações conversarem. Mas é difícil falar em defesa do meio ambiente sem pensar nos problemas sociais e econômicos. Dá para entender que neste momento os Estados Unidos e a Alemanha, por exemplo, não estejam muito preocupados com este assunto...
Vivendo no Brasil há seis meses, Medina se prepara para voltar à Cidade do México, onde vive. Ele compara os problemas sociais observados na metrópole mexicana e no Rio:
– A desigualdade social no México é tão forte quanto no Brasil. A maneira como o governo trata os conflitos entre índios e proprietários de terra é desigual e paternalista. O déficit habitacional também é um problema grave que os dois governos precisam resolver. A diferença é que no México as favelas estão na periferia e no rio elas estão no centro. De resto, são realidades muito parecidas.
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