No livro ''Cidade cerzida - A costura da cidadania no Morro Santa Marta'', o filósofo, teólogo, mestre em educação e doutor em comunicação Adair Rocha, professor de Mídias Locais do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, apresenta a relação asfalto-favela como formadora de uma sociedade integrada. Lançado em 2000 e reeditado em 2005, o livro foi produzido a partir de pesquisas do autor na comunidade, convivendo de perto com moradores, detalhando as relações entre o morro e a cidade. A terceira edição, cujo lançamento será nesta quarta, 13 de junho, na quadra da comunidade de Botafogo, às 19h, traz um capítulo extra, sobre a implantação da primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O relançamento, parceria das editoras PUC e Pallas, ocorre justamente por conta das mudanças no Santa Marta desde então. Além de discutir as implicações da chamada pacificação, o autor convida o leitor a ultrapassar o conceito de favela já estabelecido e integrá-lo ao seu cotidiano, com uma nova visão.
– Esse relançamento é uma edição revista e ampliada. Um dos últimos acontecimentos foi a UPP, então atualizar o livro com a discussão, inclusive com a participação dos moradores, o deixaria mais completo.
Adair questiona a maneira como as UPPs são vistas pela sociedade, o tratamento e a importância que "o asfalto" dá à novidade. Lembrando que a instalação das unidades em pontos estratégicos da cidade não acaba por si só com a criminalidade, que migrou para outros territórios, e que se discute a eficácia desta política em longo prazo, Adair ressalta que não se pode associar insegurança a favelas:
– A tomada do território não garante o fim do tráfico de drogas. Ele vai existir enquanto houver demanda. Não se pode reduzir favela ao tráfico, porque é um percentual mínimo. A maior parte do tráfico está no asfalto. Segurança não é questão da favela, mas da cidade. UPP só vai ser um sucesso se funcionar como uma política pública mais ampla, questionadora. Segurança tem que fazer o cidadão se sentir protegido e que seus direitos prevaleçam.
De acordo com o autor, a favela ainda é vista como um local à margem da sociedade, que tem sua existência por vezes ignorada, quando na verdade é fundamental para o funcionamento da cidade.
– É importante trabalhar alguns pressupostos. Há um que coloca a favela como algo separado da cidade. O conjunto da cidade tem o funcionamento integral. Existe o medo de a favela descer, mas o medo maior é se não descer. Aí, a cidade não funciona. Isso é importante para a conceituação da cidade.
Sobre os pontos que o levaram a estudar a favela há 30 anos, a mostrar uma vida semelhante a do asfalto, onde há espaço para cultura, educação e lazer, Adair explica:
– O livro começou a ser escrito nos anos 80. Eu frequento o Santa Marta há mais de 30 anos. Um dos motivos que me levaram até lá foi a Folia de Reis, porque eu sou folião lá de Minas Gerais. A participação política dos moradores, com os quais eu sempre tive identidade, e os grupos de pesquisas que foram ampliados que me chamavam para trabalhar junto também contribuiu. Além da comunidade eclesial de base, que sempre me convidou para participar. Essa relação não é só de pesquisador, mas de convivência.
Cidade cerzida não nega fatos que contribuíram para rotular negativamente as favelas, como pobreza e violência. Mas dá a possibilidade ao leitor de conhecer mais sobre o local, realçando características peculiares do Santa Marta, como as iniciativas de movimentos sociais e de expressão artística, que o destacaram no cenário das comunidades do Rio e serviram de inspiração a outras comunidades.
– O Santa Marta era um aglutinador importante para que um novo movimento social a partir das favelas pudesse se constituir. A partir dos anos 1970, criou o grupo Eco. Isso fez com que a cultura fosse o viés fundamental como o Nós do Morro, a Central Única de Favelas (Cufa), Raízes Culturais no Complexo do Alemão, com razões extraordinárias desempenhando papéis importantes. No início dos anos 1980, veio a associação de moradores. O Santa Marta é o mais crítico nessa relação com o conjunto de moradores que tem uma leitura e uma visão da questão ser de natureza política. A favela é um lugar da cidade que tem autonomia, visão de mundo, que sabe se dirigir e se direcionar.
Adair aborda temas como a igualdade de direitos para todos os cidadãos, a participação dos moradores da favela nos processos da cidade e o debate em torno da política pública de segurança. Ao falar sobre a relação com o livro Cidade partida, de Zuenir Ventura, alerta para uma contradição:
– A mídia trabalha esse pressuposto de cidade partida. Ela tem que trabalhar com a fragilidade, mostrar uma parte da cidade que é inferior. Mas, como tem que vender essa imagem para fora, para ser comprada pelo mundo por causa dos eventos internacionais, ela mesma trabalha para mostrar a favela como algo não perigoso, uma cidade não perigosa.
Com as mudanças da cidade, o autor pretende dar continuidade ao seu trabalho com um novo projeto, a partir de sua experiência como gestor de cultura do Ministério da Cultura no governo Lula.
– Ampliando um pouco essa leitura, estou me concentrando em torno do papel da cultura e das políticas públicas. Quero demonstrar a cultura como significação, e não como evento.