Gabriel Picanço - Do Portal
05/08/2011Diretor de filmes como A hora marcada, de 2001, um dos mais importantes do período do cinema brasileiro que ficou conhecido como a retomada, Marcelo Taranto exibe seu mais recente trabalho neste sábado no 39º Festival de Cinema de Gramado, que começa hoje e vai até o próximo dia 13. Ponto final é uma das sete produções nacionais selecionadas para o festival. O filme, que entra em cartaz em todo o Brasil em setembro, conta a história de Davi, interpretado por Roberto Bomtempo, e tem um ônibus como elemento principal e cenário de grande parte das cenas. Dentro do coletivo, Davi e outros personagens expõem as suas lições de vida, incertezas e angústias. Em entrevista ao Portal, o cineasta, que é professor do curso de cinema da PUC-Rio, falou a respeito do filme e dos desafios de se fazer cinema no Brasil.
Portal PUC-Rio Digital: Como recebeu a notícia da indicação para o festival?
Marcelo Taranto: Com bastante satisfação. Ser um dos sete selecionados entre 180 filmes é uma vitória, um reconhecimento.
Portal: O filme vai participar de mais algum festival em breve?
Taranto: Pode ser que ele venha a participar do Brafft (Festival Brasileiro de Filmes em Toronto). Mas não está nada certo ainda.
Portal: Quais foram as principais dificuldades na realização do filme?
Taranto: Sempre existem dificuldades no processo de se fazer um filme. Ainda mais quando se trata de um filme com baixo orçamento. Sempre tem algum elemento de limitação. Mas, diante de todas essas questões, o filme foi super fluido em sua realização. Em função dos recursos disponíveis, definimos bem o que queríamos rodar. E tudo o que rodamos era o essencial para o filme.
Portal: E a escolha das cenas a serem filmadas também foi influenciada por essa limitação no orçamento?
Taranto: Não, foram baseadas a partir da importância dos elementos do roteiro. O filme tinha uma programação para ser feito em cinco ou seis semanas, e a gente só tinha recursos para rodar quatro semanas. Então, definimos as cenas fundamentais para o filme. E isso acabou me mostrando que o que não foi filmado não era realmente fundamental. O primeiro corte do filme já foi de duas horas e 15 minutos. Se fôssemos rodar as outras duas semanas, talvez eu tivesse uma primeiro corte de três horas. Hoje eu vejo que é inviável exibir um filme com mais de 100 minutos. Ainda mais um filme com uma contextualização tão forte, com tanto texto, tanta poética. O filme até aparenta ser um pouco mais longo do que realmente é, porque tem muita informação. Seria extremamente exaustivo, mesmo para o público que tem interesse por esse tipo de cinema.
Portal: De onde veio esse dinheiro? O filme participou de algum programa de financiamento do governo?
Taranto: Sempre tem as leis de incentivo. Mas é evidente que, além desse recurso, foi fundamental o apoio da empresa Marcopolo de ônibus, que me disponibilizou uma série de elementos que dizem respeito ao visual do filme. Elementos como um ônibus todo pintado de prateado, um esqueleto de um ônibus, placas de metal que são utilizadas no chão dos ônibus... Isso realmente elevou o filme a um nível de valor agregado que não dá nem para estabelecer quanto custa.
Portal: Esses elementos já haviam sido pensados antes?
Taranto: Já tinham sido, mas eu dei sorte. Eu já estava desistindo deles, por causa do valor. Não tinha condições de se construir isso tudo. Estava tentando reduzir meu olhar em termos de elementos visuais do filme, para simplesmente não perder esses recursos, que eu levei quase quatro anos para levantar. A partir do momento da primeira busca do ônibus, dei sorte de logo contatar a Marcopolo. Eles tiveram uma visão bastante positiva em relação ao projeto. E aqui no Rio de Janeiro, a Ciferal, subsidiária do grupo Marcopolo, que fica em Xerém, tinha tudo. Eu encontrei uma pessoa profundamente generosa, o Alberto Calcanhoto, diretor da fábrica naquela época, que foi extremamente dedicado, sem nunca me pedir nada em troco.
Portal: A visibilidade da marca no filme não foi exigida?
Taranto: Eu fiz porque estava naturalmente ali, não tinha como tirar. Está sutil, que é como eu entendo que deve ser o product placement, totalmente subliminar e natural.
Portal: Como o senhor avalia a situação de quem faz cinema do Brasil? Existe muita dependência do governo para quem deseja produzir?
Taranto: Eu não consigo ver hoje outra alternativa, em função da configuração do mercado. Hoje o mercado consumidor quer um produto de fácil consumo, que pode ser a comédia romântica, a ação. Esse mercado está muito dominado pelos filmes estrangeiros, fundamentalmente americanos. Quando a pretensa indústria brasileira realiza esses filmes, isso é benéfico. De alguma forma faz com que o público comece a assistir ao filme nacional. Eu vejo com bons olhos esses blockbusters que elevam a presença do público na produção nacional. Um filme, para se autofinanciar, precisa ser um Tropa de elite 2. Este é um filme que, mesmo usando alguns incentivos fiscais, tinha uma proposta muito comercial. Já se sabia que seria um filme com boa bilheteria. Todo exibidor quer um produto desse. O cinema é como uma lojinha, que está vendendo um produto. Mas, no caso de uma linha de cinema de autor, como a minha, a visão é profundamente autoral. Eu acredito que José Padilha também tenha uma visão autoral sobre a questão da violência, da corrupção, etc. Mas, quando se faz um filme profundamente autoral, se tem uma reflexão muito profunda da sociedade, das coisas, sobre uma ótica muito pessoal. E isso nem sempre tem um atrativo comercial. De alguma maneira, é uma opção. Filmes com essa proposta têm que ter certo subsídio. Não tem como competir com filmes estrangeiros, em que só o recurso investido em promotion and advertising já daria para fazer um ou dois independentes. É uma concorrência desleal. Mas, sem nenhum sentimento xenófobo, são as leis do mercado, e é preciso saber lidar com elas.
Portal: O seu filme se encaixa nisso que o senhor mesmo chamou de cinema autoral. Qual são as expectativas em relação ao público quando ele chegar aos cinemas, em setembro?
Taranto: Eu estou consciente do potencial do filme. Se ele conseguir chegar a 100 mil espectadores, eu considero com se tivesse chegado a um milhão. Minha expectativa é pequena em relação a público, mas eu tenho consciência de que eu fiz um filme de importância social.
Portal: Nos últimos anos vem ocorrendo um fenômeno interessante no cinema nacional: filmes feitos aqui alcançam grandes bilheterias, chegando a ficar à frente de produções hollywoodianas. Isso pode ser benéfico para o cinema brasileiro em geral?
Taranto: Com certeza, cada vez mais está havendo um amadurecimento de uma consolidação de uma indústria. O movimento de Paulínia, o Rio de Janeiro, como sendo um centro de produção. Grande parte das produções é do Rio. Sinto que é uma tendência. Eu, que fiz parte da retomada do cinema brasileiro com A hora marcada, vejo que é uma evolução, e fico feliz com isso, por mim e pelos meus parceiros. O que eu acho mais importante é haver diversificação dos filmes. Cilada.com tem o papel dele, Assalto ao Banco Central tem o papel dele. Cada um vai cumprir o seu papel. E o meu filme tem o papel dele bem definido.
Portal: E essa indústria já está consolidada ou perto disso? Está em qual fase de sua formação?
Taranto: É meio contraditório, porque a indústria de filmes comerciais de TV é muito forte em São Paulo. Evidentemente, aqui no Rio, esse parque está muito mais voltado para longa-metragem. Mas a gente tem que entender que muitos dessses profissionais participam do mercado publicitário também. E não podemos esquecer a televisão como um elemento de indústria audiovisual. É tudo muito irregular. Se você pensar na Record e na Globo, em termos de produção audiovisual, elas são exemplos de constituição de uma indústria. O número de funcionários empregados, o parque de equipamentos. O cinema, de alguma maneira, está tentando estabelecer um patamar que se aproxime disso. Enquanto esse parque não refletir mais o número de produções, de espectadores, de bilheteria, e isso de alguma forma se refeitir nos profissionais, que eles tenham emprego, tenham estabilidade, não se pode dizer que esta é uma indústria consolidada. Eu tentei aqui na PUC, na Semana ABC, encontrar números mais precisos sobre em que estágio está a formação dessa possível indústria audiovisual. Existem números significativos, em termos de envolvimento de recursos, pelo que a Ancine apresentou. Mas eu não saberia informar o quanto disso é economia formal ou informal. É muito difícil levantar recursos para produzir filmes. E os números são concentrados, ainda não há uma ramificação desse volume de recursos. Mas eu arriscaria dizer que, numa escala, estamos entre 30% e 40% da nossa força.
Portal: Como você compara o trabalho de quem faz cinema no país hoje em relação a 20 anos atrás?
Taranto: Eu fiz um filme emblemático nessa época, que é o Ressurreição Brasil, que ganhou o Margarida de Prata, da CNBB, participou do Festival de Cuba. Era um momento em que o Collor tinha acabado com a Embrafilme, a única distribuidora de filmes brasileiros. Eu resolvi unir vários profissionais da época em um filme. Tínhamos gente muito competente, uma estrutura grande, tudo doado. Em um momento em que tinha acontecido a Chacina de Vigário Geral, o massacre na Candelária, momentos históricos que de alguma forma se relacionaram com o conteúdo do filme e com o momento do cinema. Foi feito totalmente sem recursos. Todas as pessoas da indústria deram a sua colaboração a custo zero.
Portal: Então, o senhor considera este o melhor momento para se fazer cinema, desde que começou?
Taranto: Em 1998 aconteceu um bom boom de captação de recursos. Mas houve problemas em alguns filmes, como o Chatô. Aquilo prejudicou muito, um projeto único contaminou uma proposta bacana de cinema. Foi o risco de uma fruta podre quase contaminar toda uma cesta. Mas graças a Deus tem muita gente séria no cinema, como o professor Walter Lima Junior. Pessoas que são guerreiras, que "passam pelo calvário", como o próprio Walter fala, no processo de realização de um filme.
Portal: O senhor acha que ainda existe preconceito do público brasileiro em relação aos filmes nacionais? Qual é a origem disso?
Taranto: É um processo histórico meio conturbado. O cinema brasileiro teve a Vera Cruz, as chanchadas, um cinema que dialogava bem com o público. E aí foi necessária uma quebra radical, pela questão da ditadura. O movimento do cinema foi importante como uma forma de sustentar uma dignidade diante de ato tão violento e cerceador. Às vezes eram filmes muito herméticos, com mensagem que tinha que ser decodificada quase. Mas temos verdadeiras obras-primas, como Terra em transe, do Glauber Rocha, Fuzis, do Rui Guerra, São Bernardo, do Leon Hirszman. Tinha a questão política, que criou um rótulo prejudicial ao cinema brasileiro, de que ele seria um gênero em si. Isso aconteceu em um momento. Mas o Cinema Novo foi fundamental, inspirou várias outras cinematografias, como o cinema alemão novo, do Herzog. Talvez agora a aproximação tenha um pouco a ver com o que foi a Atlântida, a Vera Cruz. Isto é, filmes que talvez tenham uma linguagem mais acessível ao público em geral. Apesar de que você nunca pode subestimar o público. Tenho bastante esperança de que o público consiga vivenciar o meu filme.
Portal: O momento de estabilidade econômica e política que o país vive pode ser positiva para o cinema nacional?
Taranto: Tudo acaba refletindo de certa forma. Não é uma bilheteria barata. Se o ingresso fosse R$ 5, as salas com filmes brasileiros estariam lotadas. Mas ainda não se encontrou uma fórmula de reduzir o ingresso do filme nacional como uma resposta. Isso seria como se subsidiasse o ingresso. E com isso os caras vão ficar loucos. Porque você vai desviar um rio de dinheiro para outros filmes. Não ia agradar muita gente, com certeza.
Portal: Sobre a recepção dos filmes brasileiros no exterior, o nosso cinema é relevante? O que falta para a produção nacional conquistar mais prêmios em festivais estrangeiros, ou até mesmo um Oscar?
Taranto: A gente até esteve próximo do Oscar, com O quatrilho, com Cidade de Deus, com o próprio Meirelles sendo indicado como melhor diretor. Acho que é um momento, um filme específico, que vai ter uma leitura universal, diferenciada. É uma conjunção de elementos que pode fazer com que um filme ganhe um Oscar de filme estrangeiro. Isso é muito subjetivo. Para nós, não falta nada. E acho que a gente não deve focar isso como um ponto a ser alcançado. Temos que continuar buscando a nossa linguagem, a nossa proposta. Se vier, vai ser ótimo, porque vai fortalecer mais. Não acho que nós, como um país continental, devemos achar que isso é fundamental. O que é fundamental pra nós é fortalecermos o nosso mercado interno. Fazer com que o público brasileiro consiga reconhecer essa diversificação de filmes e aproveitar isso. Ganhar um Oscar não vai sustentar uma indústria, um atividade. Vai dar prestígio, mas não vai sustentar. Acho que é importante a participação de filmes brasileiros em festivais internacionais, que está sendo pequena. Não estamos conseguindo estar presentes na competitiva de Cannes, ou de Veneza. Mas ganhamos com Tropa de Elite em Berlim.
Portal: Por que isso acontece? Como um filme nacional é selecionado para festivais como esses?
Taranto: Sempre há um lobby. São cerca de 3.500 filmes para serem selecionados. É muito complicado. Como é a escolha disso? Qual é o critério dessa escolha? É uma conjunção de fatores naquele momento que vai fazer com que certo filme seja selecionado. Um pouco de sorte e um pouco de política.