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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Esporte

Seleção ressuscita complexo de vira-lata no ano do centenário

Júlia Zaremba* - aplicativo - Da sala de aula

06/07/2014

 Reprodução

Uma reportagem do Correio da Manhã do dia 22 de julho de 1914 anunciava: “Um grande acontecimento esportivo. Os brasileiros derrotam brilhantemente os afamados profissionaes do Exeter City, marcando dois bellos ‘goals’ a zero”. Foi naquela tarde de inverno, no Estádio das Laranjeiras, que ocorreu o jogo de estreia da seleção brasileira (foto). No time, Marcos de Mendonça, Píndaro, Nery, Lagreca, Rubens Salles, Rolando, Oswaldo Gomes, Abelardo, Friedenreich, Osman, Formiga – todos convocados pela antiga Federação Brasileira de Sports, atual Confederação Brasileira de Futebol. O amistoso foi contra o time inglês do Exeter City, muito importante na época. “Impossível é darmos uma pallida idéa aos nossos bondosos leitores do que foi a enorme multidão, calculada em 6 mil pessoas, a vibrar de emoção ante a estupenda victoria colhida pelo ‘team’ brasileiro contra os profissionaes do Exeter City”, descrevia a reportagem. Hoje, cem anos depois, o futebol brasileiro não é mais o mesmo.

 Reprodução Capitão da célebre seleção de 1970, o ex-jogador Carlos Alberto Torres é considerado um dos maiores artistas do futebol de todos os tempos. O gol que definiu o Mundial daquele ano, de sua autoria, é exemplo do conceito do “jogar bonito”. Modo de jogar que, para o ex-atleta, mudou muito com o tempo: “Houve uma evolução dos esquemas e sistemas, procurando imitar o futebol europeu. O futebol brasileiro, na realidade, não é isso que a seleção está jogando. Antes, tinha mais criatividade, improviso, drible fácil... desmontavam qualquer sistema, mesmo dentro de uma disciplina tática”. Para ele, a ideia do futebol-arte se perdeu, e a apreciação do jogador brasileiro pelos estrangeiros não é mais a mesma.

 Julia Zaremba Outra questão que Torres destaca em relação à seleção atual é o fato de depender apenas de um jogador para decidir a partida, lembrando que, antigamente, havia mais de um craque no time. No entanto, ele acredita que é possível voltar a se fazer um futebol mais artístico, desde que se dê mais liberdade aos jogadores. “Todo mundo tem que ter liberdade para criar e se movimentar durante a posse de bola. Driblar, ir para cima do adversário, e não deixar o time apenas na defensiva. Esse, sim, é o verdadeiro futebol brasileiro”.

O professor de educação física Dante Rocha trabalhou por mais de 40 anos como supervisor técnico de grandes clubes de futebol, como Flamengo e Fluminense. Para ele, a formação dos jogadores é um dos maiores problemas atualmente. “Fico desesperado quando vou assistir a meninos de 10 anos jogando com posições definidas pelo treinador. Isso não existe, o garoto tem que ser livre. Tem que deixá-lo correr atrás da bola, mostrar as suas qualidades”, defende. Além disso, ele lembra que antigamente não havia muitas escolinhas de futebol, e que os locais de treino eram os campinhos de terra. “Os olheiros ficavam nessas áreas, só observando os meninos. Nada contra as escolinhas, mas a coisa era mais livre”.

Segundo Dante, o primeiro grande salto no futebol brasileiro começou na Copa de 1970, pela presença de uma medicina esportiva mais avançada e de uma preparação física de altíssimo nível:

– Antigamente o futebol não era tão comprometido cientificamente. Os jogadores marcavam suas posições e não tinham o que hoje se faz necessário para desenvolver um esporte de alto nível. Então a preparação com o apoio da parte médica foi um salto fora do comum – explica.

A era das comissões técnicas

A criação das comissões técnicas é outra mudança relevante para o professor, que no entanto destaca que o futebol no Brasil não tem dirigentes de nível equivalente ao das comissões técnicas.

Roberto Assaf, por sua vez, destaca que uma das maiores mudanças verificadas ao longo dos anos foi em relação à qualidade do futebol. “Para mim, a seleção tem apenas três craques: Thiago Silva, Neymar e Paulinho. O resto é bom, e pode formar uma boa seleção. Mas o que define um craque é a sua essência. Aquele que, com uma jogada, consegue definir a partida”. Além disso, ele ressalta que os interesses políticos e econômicos em torno do futebol aumentaram muito com o tempo. “Quantas pessoas vêm para cá se a Copa for razoável, por exemplo? Há uma maior pressão por sucesso por conta disso, temos que passar uma boa imagem”, diz. O jornalista também destaca que a melhoria da infraestrutura geral do futebol, desde os estádios até a comissão técnica, foi outro fator importante.

Maurício Murad definiu três principais mudanças no futebol brasileiro ao longo desses cem anos: a popularização da seleção; sua democratização; e as suas conquistas internacionais. “É a única pentacampeã e que participou de todas as Copas. Isso deu uma grande projeção internacional ao nosso futebol”.

O “jogar bonito”

O modo de jogar dos brasileiros sempre foi uma das maiores virtudes da seleção. Jogadas soltas, criativas e elegantes, dribles, improvisação... uma arte popular. Espontaneidade que, com o tempo, acabou ficando mais engessada, principalmente devido ao excesso de planejamento tático nos treinos. Para Maurício Murad, o futebol da Copa de 1958 é muito diferente do que é visto hoje em dia, que considera um futebol mais “pesado”. “Hoje, vemos muita organização tática. Há muito mais suporte técnico-científico ao atleta. Ela pode existir, claro, desde que funcione a serviço do talento”, diz. Assaf, por sua vez, questiona a prioridade dada ao preparo físico nos clubes:

– Acabou se tornando mais importante do que a técnica. O ideal seria casar os dois. Assistimos a um futebol muito mais veloz do que antigamente. No entanto, o craque na essência continua fazendo a diferença – diz.

Ele ressalta que o aprimoramento do preparo físico começou com os europeus na Copa de 1966, para impedir o Brasil de conquistar o tricampeonato. E conseguiram. No entanto, em 1970, o Brasil se preparou melhor fisicamente, sem deixar de lado a técnica, e venceu o Mundial.

Na origem, um esporte para brancos e ricos

 Reprodução O sociólogo Maurício Murad, especializado na História Cultural do Esporte, explica que, na década de 1910, o futebol era extremamente elitista e racista, com a prática restrita aos clubes de brancos e ricos. Pobres, mestiços e analfabetos não podiam nem chegar perto dos campos. Quando a seleção brasileira surgiu, em 1914, o esporte ainda não era popular entre os brasileiros. Muito pelo contrário: até mesmo os intelectuais desaprovavam.

– Lima Barreto dizia que o futebol era um esporte animalesco, violento, e que não iria cair no gosto do povo. Monteiro Lobato também não era a favor, defendendo que se tratava de mais um estrangeirismo, assim como Graciliano Ramos – explica Murad.

Autor do livro Seleção Brasileira – 90 anos, o jornalista Roberto Assaf descreve o futebol em 1914 como amador na essência. Lembra que os meios de comunicação praticamente não existiam na época, o que dificultava a difusão do esporte pelo país.

– O primeiro título do Brasil, quando ganhou de dois a zero da Argentina na Copa Roca, em setembro de 1914, não teve a repercussão que deveria ter. Não existia rádio ou televisão, só jornal impresso. As notícias chegavam ao interior do país muitos dias depois de terem acontecido – lembra o jornalista, acrescentando que não havia interesses políticos associados ao futebol naquela época como hoje em dia.

A popularização do esporte

A popularização do futebol viria alguns anos depois, na década de 1920. Para Assaf, o fato está diretamente relacionado ao progresso dos meios de comunicação, principalmente ao surgimento do rádio. Maurício Murad destaca que, lentamente, o futebol foi conquistando as ruas, praças e periferias, deixando de ser um jogo exclusivo dos clubes elitistas. A política de inclusão do Vasco, um dos maiores clubes do Rio na época, também foi outro fato marcante na história do futebol. “O Vasco foi campeão do Rio em 1923 com um time de pretos e pobres. Teve um impacto simbólico muito grande na época”, conta o sociólogo. 

A primeira Copa do Mundo foi em 1930, no Uruguai. Na mesma década, no ano de 1933, o futebol brasileiro começa a se profissionalizar. Quanto às seleções brasileiras de 1930 e 1934, Murad explica que eram a “expressão de um futebol elitista”. O sociólogo afirma que foi somente em 1938, na Copa da França, que surgiu uma seleção plural, representando a diversidade brasileira.  

Estado Novo 

O período do Estado Novo (1937 a 1945) foi muito importante para o desenvolvimento do futebol no Brasil. “Getúlio Vargas viu que o esporte poderia ajudá-lo a se manter no cargo. Dessa forma, passou a explorá-lo como instrumento político”, explica Assaf. Para isso, Vargas possibilitou a transmissão da Copa de 1938 pelo rádio, que acabou se tornando uma “histeria coletiva”. Foi nesse ano que o Brasil ganhou projeção internacional, depois de ficar em terceiro lugar no Mundial. “Foi o ano em que o exterior descobriu o Brasil”, define o jornalista. Em 1941, Vargas criou o Conselho Nacional de Desportos, com o objetivo de normatizar a prática de esportes no Brasil. Ou mais do que isso. “O grande objetivo era ter controle absoluto sobre todos os esportes do Brasil, evitando que o país fosse mal visto no exterior”, defende Assaf. Com o fim do Estado Novo, seria a participação da seleção nos Campeonatos Sul-Americanos responsável por dar uma projeção maior para o futebol no Brasil.

Um esporte democrático

Maurício Murad ressalta que foi entre as décadas de 1940 e 1950 que o futebol se tornou oficialmente um esporte no Brasil. “Foi quando a seleção brasileira se tornou a expressão da vida nacional. Em vez de selecionar jogadores por raça ou classe social, o que passou a valer foi o critério da meritocracia”, explica.

Reprodução Em 1950, o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo – a primeira depois de um intervalo de 12 anos, por causa da Segunda Guerra Mundial. Este foi, inclusive, um dos motivos que impediram a Europa de receber os jogos, já que estava completamente devastada. A seleção chegou até a final daquele Mundial, mas acabou perdendo para o Uruguai no Maracanã.

– O nosso time era considerado a melhor da Copa. Era a expressão de um futebol popular, democrático, com dribles, ginga. No entanto, perdemos. Foi depois dessa traumática derrota que Nelson Rodrigues criou a expressão do “complexo de vira-lata – lembra Murad.

Para Assaf, a frase define bem o sentimento dos brasileiros na época: “Será que nem aquilo que sabemos fazer de melhor nós conseguimos fazer?”. Maurício Murad faz coro ao jornalista: “Perdemos porque a gente treme na final, porque somos fracos. A Copa de 1950 serviu para reforçar preconceitos, que existem até hoje”.

A seleção brasileira só voltou a jogar em 1952, no Campeonato Pan-Americano, no Chile, e perdendo. A partir daí, começou a sofrer uma sucessão de derrotas: em 1953, perdeu para o Paraguai no Campeonato Sul-Americano; na Copa de 1954, a Hungria eliminou o Brasil nas quartas de final; perdemos também os Sul-Americanos de 1956 e 1957.

Uma nova era

 Reprodução Foi no ano de 1958 que a seleção brasileira deu a volta por cima. Surge uma geração de ouro do futebol brasileiro, formada por craques como Garrincha, Pelé, Didi e Djalma. No mesmo período surgiam o Cinema Novo e a Bossa Nova, que contribuiriam para que o mundo descobrisse o Brasil. “Vimos que éramos capazes de produzir coisas boas para exportar, inclusive jogadores”, destaca Assaf, lembrando que foi nesse período que os craques brasileiros começaram a jogar bola no exterior. No começo do Mundial de 1958, o único titular negro era Didi. Enquanto isso, Pelé e Garrincha mofavam no banco de reserva. “No primeiro jogo o Brasil não foi bem. No segundo, os jogadores pressionaram o técnico Vicente Feola para colocar os dois no jogo. A partir daí, com Pelé e Garrincha em campo, o Brasil não perderia mais uma partida sequer”, conta Murad.

Na final contra a Suécia, na capital do país, o Brasil venceu por 5 a 2, com direito a uma onda de aplausos dos suecos. Foi a partir daí que, segundo Murad, o futebol se popularizou de vez no Brasil, projetando o país também mundialmente. Quatro anos depois, o time conquistou o bicampeonato. E, assim, pouco a pouco, o futebol foi se tornando um dos maiores patrimônios da cultura popular brasileira, levando a seleção a conquistar outros três títulos – em 1970, 1994 e 2002.

* Reportagem produzida para o Laboratório de Jornalismo em junho de 2014.