Evandro Lima Rodrigues - Do Portal
17/12/2010Rayana Rubinsztajn, estudante, 20 anos. Usa internet diariamente desde 2002. Chega a 18 horas por dia. Está no nível 50 no jogo Colheita feliz e confia chegar ao último (121). Tem um celular só para acessar a internet. Mesmo na aula fica conectada. Almoça na mesa do computador. Acorda de madrugada para ver recado. “Não me acho viciada, mas não paro de acessar”.
Piedade Peixoto, telefonista, 60 anos. Passa dez horas por dia na internet desde 2009. Tem 12 perfis no Orkut, para 12 jogos Colheita feliz (só é permitido um perfil por jogo). Tenta ajustar os horários de acordo com a “colheita”. Planeja comprar uma mansão virtual de 250 mil moedas. Tem quatro computadores em casa. Come com colher para ter uma mão livre para usar o mouse.
“Meu amigo é o jogo, mas não sou viciada”.
Juliana Facci, estudante, 18 anos. Usa a internet desde 2003, oito horas por dia. Participa de cinco sites de relacionamento. Esquece de estudar quando está na internet. Sonha que recebe mensagens o tempo todo. Passa o domingo “conectada”. Vai comprar "urgente" um celular com internet.
“Sou viciada, mas quero me controlar”.
Segundo o Ibope/Nielsen, o Brasil contava, em dezembro do ano passado, 67,5 milhões de internautas, dos quais 87% acessavam, no mínimo, três vezes por semana. Embora comprovem o mergulho crescente no mundo digital, os números são insuficientes para distinguir o usuário ativo do viciado digital. O limite é tênue. Poucos admitem ultrapassá-lo, e assim dificultam pesquisas, diagnósticos, tratamentos. Segundo a psicóloga e professora de Cotidiano Digital da PUC-Rio Daniela Romão, o caráter nocivo "passa a existir quando atividades como trabalho e lazer deixam de ser prioridade". Em palestra organizada pela Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio, como parte do Programa de Promoção da Saúde, a psicóloga esclareceu: não há como determinar a quantidade de horas na internet que caracterizaria riscos à saúde. No entanto, a exclusão de "outras possibilidades de vivência" é um sintoma de dependência.
– Nesse caso, a internet torna-se um problema, pois pode levar, por exemplo, à exclusão social – observa a professora – Mas o uso recorrente da internet não é uma doença. É uma marca da sociedade atual. Gera benefícios, ao potencializar a socialização pela rede – ressalva.
Para o psicólogo Alberto Filgueiras, consultor de neurociência do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, quem desenvolve a dependência já apresenta alguma carência. Torna-se indiferente ao convívio social e familiar. Busca no isolamento a solução de suas carências. Filgueira explica que o vício nasce do acolhimento encontrado no universo “imaginário” do outro lado da tela. A satisfação pessoal estaria ligada, assim, a partes do cérebro responsáveis por qualquer tipo de dependência:
– As pessoas têm um circuito cerebral poderoso responsável por gerar a dependência a partir do que normalmente chama-se sistema de recompensa. Um aspecto determinante seria a sensação de aprovação no mundo digital.
Este reconhecimento move a estudante Rayanna. Ela é integrante do jogo Colheita feliz. Na venda virtual dos produtos "colhidos", a estudante orgulha-se de aparecer no topo entre os amigos de disputa. Tornou-se a “mais rica”, graças a rotina de plantações e colheitas que lhe ocupam entre seis e oito horas diárias. O esforço se multiplica no caso da telefonista Piedade. Ela criou uma dúzia de colheitas, uma para cada perfil no Orkut. Planeje atingir a marca de 250 mil moedas, para comprar uma mansão (também virtual, naturalmente).
Piedade e Rayana fazem da internet a estrada principal para a satisfação. Não se acham dependentes, mas admitem o transtorno causado por uma eventual ausência:
– Quando eu esqueço o celular em casa é como se tirassem meu ar – diz Rayana, enquanto digita uma mensagem no telefone.
Nem o indispensável réveillon com a família,
– Meus dedos coçavam na praia. Não consegui ficar tranquila momento algum.
Segundo Filgueiras, esse tipo de comportamento está relacionado com o princípio do desafio, contido nos jogos de redes sociais. A autoprovação, explica o psicólogo, torna-se um círculo vicioso:
– O jogo aumenta o nível de dificuldade e o tempo nessa mesma atividade. Nós ocidentais temos a cultura do desejo. É a recompensa que conta.
Filgueiras ressalta que, nesse cenário, atividades essenciais do dia a dia perdem valor para o ambiente virtual. Ir ao banheiro, tomar banho, alimentar-se, por exemplo, deixam de ser prioridades ou são anuladas.
Algumas necessidades básicas Rayana conseguiu adequar por meio do celular. Nem no banheiro ela desgruda do aparelho. A mesa do computador vira também a da refeição. Já Piedade tenta conciliar as tarefas de dona de casa com o jogo virtual. Quase sempre não consegue.
– Meu marido reclama que a comida está ruim. Diz que é culpa do jogo. Ele tem razão. Faço tudo muito rápido para ter tempo de voltar à “colheita” – conta.
Filgueiras alerta: quando a rotina diária deixa de ser suficiente para atividades básicas, inclusive repouso, é sinal de dependência. Para tratá-la, o psicólogo recomenda um trabalho "multidisciplinar", com intervenções de profissionais da área de psicologia e o suporte familiar.
A estudante Juliana Facci não faz parte dos adeptos aos jogos das redes sociais. Sua motivação para usar a internet são os recados. A estudante conta que frequentemente vai ao computador de madrugada, depois de sonhar ter recebido alguma mensagem por e-mail. Se o sonho não se confirma, ela aproveita: "Abro todas as janelas dos sites de que participo e fico monitorando".
Juliana admite-se viciada. Participa de redes sociais, passa longas horas diante do computador e está em contagem regressiva para comprar um celular com internet. Ela reconhece a dependência e faz tentativas para diminuir o acesso. Um esforço dificultado pela cumplicidade do namorado, igualmente compulsivo.
Filgueiras reforça que família e amigos são fundamentais para a cura da dependência. Segundo ele, a conivência dos pais, a falta de limites, dificultam o tratamento. Em determinados casos, diz ele, é necessário tomar atitudes mais firmes, como proibir definitivamente o uso do computador. O psicólogo explica que é comum, durante um período de abstinência, o descontrole emocional do viciado, que pode ficar
Embora a participação familiar seja importante tanto na prevenção quanto no tratamento, o diagnóstico caseiro é insuficiente para confirmar a dependência. Daniela esclarece que só um especialista pode determinar o grau de compulsão.
A Santa Casa de Misericórdia do Rio montou, no início do ano, o primeiro serviço do país voltado para crianças e adolescentes viciados em jogos de internet. A dificuldade maior ainda está no autoreconhecimento: poucos admitem a dependência, pois, como afirma Filgueiras, "o problema de saúde vai ser no futuro e o prazer é agora, o amanhã pouco importa".
Sou dependente digital?
A psicóloga americana Kimberly Young, especialista em dependência da web, criou uma lista de comportamentos relacionados ao dependente.
1. Você se sente preocupado com a internet: pensa sobre as suas conexões anteriores ou antecipa as suas próximas conexões?
2. Você sente a necessidade de usar a internet por períodos de tempo cada vez maiores para poder se sentir satisfeito?
3. Você já fez tentativas repetidas, sem sucesso, para controlar, diminuir ou parar de usar a internet?
4. Você se sente inquieto, mal-humorado, depressivo ou irritado quando tenta diminuir o tempo ou suspender o uso da Internet?
5. Você fica on-line por mais tempo do que tinha planejado?
6. Você desafiou ou colocou em risco a perda de relacionamentos significativos, escola ou chances de carreira por causa da internet?
7. Você já mentiu para membros da família, terapeuta, ou outros, para esconder a extensão de seu envolvimento com a internet?
8. Você usa a internet como uma forma de escapar de problemas ou para se aliviar de mau humor (exemplos: sentimento de solidão, culpa, ansiedade ou depressão)?
Resultado
Se a resposta foi “sim” a pelo menos cinco questões, recomenda-se procurar um especialista.
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