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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


País

"Jeitinho brasileiro se sobrepõe à ideia do igual valor de todos"

Davi Raposo e Luisa Oliveira - aplicativo - Do Portal

14/09/2015

 Arte: Paula Bastos Araripe

Principal assunto do país no momento, a corrupção seria produto de uma índole tipicamente brasileira, ou um fenômeno universal? Teria um marco inaugural no país? Seria intrinsecamente relacionada à política? Se, por um lado, as descobertas de desvios de recursos por agentes públicos deixam cidadãos indignados, por outro a insatisfação com a prática política não pode servir de desculpa para que se aceitem pequenas corrupções no cotidiano, ou para respaldar a tentativa de levar proveito a qualquer custo – expressa na Lei de Gerson, aquela de “querer levar vantagem em tudo”, abrindo espaço para pequenas práticas que acabam por incentivar uma cultura do corrupto fomentado pelo corruptor.

Os “malfeitos”, como um dia se referiu a presidente Dilma Rousseff, não foram praticados exclusivamente da última década, mas desde o Brasil Colônia, afirma a professora brasileira Denise Aparecida Soares Moura, PhD em História do Brasil Colônia pela Universidade Nova de Lisboa e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp). No período colonial, diz, funcionários do rei que atuavam na colônia também desviavam recursos públicos.

– A colônia pagava tributos ao Império e os recursos serviam para sustentar a Corte e armar os exércitos. O recurso público era gerado por meio de tributos pagos por comerciantes, multas que aplicavam a algum transgressor de lei. Porém, funcionários foram denunciados por desviar estes recursos para uso privado.

A impunidade, da mesma forma, também fazia parte das práticas de suborno no Brasil Colônia. Além de se ter facilidade ao acesso de dinheiro público, a falta de punição foi o principal motivo para as práticas corruptas penetrarem na cultura do país, como explica Denise:

– Naquela época, não havia órgãos do Estado voltados para a fiscalização e denúncia dos descaminhos. Os processos eram engavetados ou os acusados encontravam proteção nas Cortes ou junto a outros funcionários, como governadores, ouvidores, corregedores... As pessoas também lutavam para alcançar os cargos públicos porque sabiam que poderia ser caminho fácil para ter prestígio ou direitos de nomear outros que poderiam lhe garantir regalias e poderes. Ou seja, a cultura do desvio de recurso público foi introduzida na política brasileira graças à impunidade e às redes de relações que os responsáveis por cometer práticas corruptas construíram dentro do próprio Estado.

Os mais de 300 anos de escravidão consolidaram a relação fundiária que influenciou no comportamento da sociedade brasileira, como explica a antropóloga Ângela Paiva, professora da PUC-Rio:

– Nossa formação social, com quase quatro séculos de escravidão e de concentração fundiária, deixou um legado de profunda desigualdade estrutural, com grande poder da oligarquia rural. Mesmo com a Proclamação da República, o caráter de desigualdade não foi modificado, gerando um acordo societário em que grupos restritos detêm grande poder econômico, social e político. Isso significou uma relação promíscua entre o público e o privado.

A identidade nacional

No decorrer do tempo, certos estereótipos sobre os brasileiros foram se enraizando. Estudiosos do começo do século XX defendiam que havíamos herdado, dos indígenas, a preguiça, e dos escravos, resistência ao trabalho. A malandragem nacional seria um contraponto ao exército de trabalhadores imigrantes, dedicados e produtivos que, primeiro a agricultura e depois a indústria, se estabeleceram no país.

 Macunaíma/Divulgação A partir da década de 1920, artistas do movimento modernista como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Heitor Villa-Lobos buscaram com valorizar o nacionalismo, tentando valorizar a cultura brasileira, e combater influências do exterior. Obras como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, criado pelo escritor Mário de Andrade em 1922 e tornado filme por Joaquim Pedro de Andrade em 1969, traz um enredo exemplar deste espírito.

A figura do malandro, astucioso, esperto, é também parte do imaginário coletivo nacional. Ganhava dinheiro de maneira informal, fosse no carteado, nos jogos de bilhar, apostando em cavalos ou como cafetão. Com o tempo, sua personalidade passou de herói a transgressor, mas a cultura do “jeitinho” nunca deixou de ser uma marca nacional. Para Angela, esta prática é fruto de hierarquização:

– O jeitinho brasileiro é o resultado das nossas relações hierárquicas e desiguais, em que os que estão em situações de desigualdade tentam lidar com regras rígidas que não são para todos. Como na máxima: “Aos meus amigos, tudo; aos meus inimigos, a lei”. Assim, não é uma identidade, mas a maneira como se consegue levar diante de regras duras, burocracia emperrada. O jeitinho brasileiro só será coisa do passado quando prevalecer a ideia do igual valor de todos.

A Lei de Gérson

 Divulgação Uma das expressões mais provocadoras do malandro aconteceu na década de 1970 quando o jogador de futebol Gérson, um dos principais responsáveis pelo triunfo na Copa do Mundo no México, estrelou um comercial de cigarros da marca Vila Rica. Nesse contexto, o tricampeão solta, com um sorriso amarelado de cigarro, a frase que ficaria famosa: “Você gosta de levar vantagem em tudo, certo?”. A campanha publicitária, sucesso na época, tornou-se estigma por pregar um desvio de conduta.

Para o advogado e jornalista Raphael Curvo, a “Lei de Gérson” afeta a sociedade brasileira como um todo, especialmente no âmbito da educação e ad desigualdade social:

– A educação é o ponto de partida para todos os acertos ou desacertos de uma vida em sociedade. Existe, nesses grupos sociais, o culto ao respeito, à ética, à moral e à observação das regras que organizam a vida em sociedade. Alguns países sofrem impactos dado as condicionantes de sua atração migratória. Disseminada em todos os escalões da vida brasileira, esta “lei” tem influenciado, pelo lado negativo, a comunidade. Corrompe toda a estrutura social, política e de governo do Brasil que, com seu comportamento, irradia péssimos exemplos a novas gerações, as quais tem sua personalidade formada, dada a influência da comunicação que tem superado a educação familiar, nessa relação social desvirtuada em que levar vantagem é a regra na superação do próximo. 

O Brasil detém a exclusividade da corruptibilidade no mundo?

É comum ouvir brasileiros reclamando sobre a corrupção no país, alegando que é o fator fundamental para o subdesenvolvimento social e econômico. Ao mesmo tempo, o Brasil tem passado por transformações sociais e políticas que evidenciaram as práticas corruptas. No entanto, por que a corrupção é muitas vezes apontada como um problema exclusivo da esfera política, e não como um mal da sociedade em si?

Na opinião do pesquisador Paulo Vaz, professor da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO-UFRJ), a questão do subdesenvolvimento brasileiro não é cultural, nem de formação moral:

– É necessário dar uma visão global dessa estrutura relativamente estereotipada sobre corrupção no Brasil, até mesmo para sair do lugar-comum: há corrupção na Índia, Espanha, Itália, África do Sul e França, por exemplo. Não dá para saber se o mundo virou mais corrupto nos últimos 50 anos. A pergunta é: houve mais corrupção, ou há, atualmente, uma maior atenção social perante o problema?

De acordo com Vaz, existem três motivos primários para que o tema da corrupção tenha se tornado tão recorrente:

– Primeiro, que a vida privada de governantes é relevante – desde que a globalização chegou ao mundo, trouxe consigo uma transformação na forma de agir na política na qual os governantes se tornam importantes. Segundo, a influência dos meios de comunicação; o jornalismo quer ocupar um lugar de vigilância na sociedade, e a corrupção se tornou importante porque aparece na mídia. Por fim, novos atores no cenário político nacional: não são os políticos que passam a ocupar lugar de vigilância. Atualmente os heróis da população são os ministros do Supremo Tribunal Federal, procuradores-gerais, entre outros.

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Colarinho Branco e América Latina

DivulgaçãoEm 1940, o sociólogo norte-americano Edwin Sutherland usou pela primeira vez o termo “white collar criminality” (crime de colarinho branco) em seu livro American Sociological Review. O termo se referia a práticas corruptas cometidas por grandes nomes da economia dos Estados Unidos. Sutherland pesquisou como um conjunto de grandes empresas se posicionava no mercado tentando competir e organizar a concorrência com os seus adversários. O resultado das buscas foi o uso constante de estratégias ilegais nessas práticas econômicas. Desde então, o termo foi adotado pelas Ciências Sociais, como explica o professor do Departamento de História da PUC-Rio Diego Galeano:

– Esse livro teve uma importância enorme ao mostrar algo que era difícil de aceitar para o american way of life: que grandes empresas surgiram por caminhos criminosos. Isso é complicado porque, historicamente, há na identidade nacional norte-americana o empreendedorismo e esforço individual.

Essa reorganização incitou um desafio aos estudos contemporâneos que, segundo Galeano, está relacionado com a ideia de corrupção em países desenvolvidos:

 – Há na América Latina algo muito difundido de que “nos países sérios do Primeiro Mundo não existe corrupção” ou então “por que nós não somos como a Suíça, os Estados Unidos ou a Noruega?”. Isso é mentira. Talvez os Estados Unidos sejam uma dessas referências onde há um capitalismo criminal por excelência. É um território que se impõe como um centro da seriedade, mas que tem um nível de corrupção mais “arrumado” do que em países latinos. Todavia, isso não diminui essa prática criminal.

O professor ainda explica que a corrupção se difere entre os países latinos principalmente por influência do narcotráfico:

– Há uma diferença importante entre os países onde o narcotráfico tem uma força real daqueles onde são produtores de substâncias e outros apenas intermediários, como o Brasil. O caso do México, por exemplo, é quase único na América Latina: organizou-se no país o que alguns autores chamam de “Estado criminal”, onde já não há uma corrupção nas malhas do Estado, mas ele mesmo é delitivo. São cartéis, grandes associações de narcotráfico e que aqui chamamos de “quadrilhas”. Já no Brasil e na Argentina há uma questão em comum que também é significativa: corrupção forte que gera grandes impunidades e desigualdades em relação aos impostos: sonegação e a forma como se sonega nas classes altas desses países.

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Papel democrático

 Divulgação As recentes investigações sobre escândalos de corrupção têm despertado na sociedade a dúvida de dias melhores. Para a doutora em antropologia Alessandra Maia, a política é um reflexo da sociedade. Há uma necessidade que a população reconsidere as ações corruptas do cotidiano. A professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio acredita que se responsabilizar por seus atos é o primeiro passo para desconstruir a ideia de que todos os problemas de corrupção estão na classe política:

– O que está incomodando as pessoas é que esse não é um mal só da classe política, mas, por exemplo, das empreiteiras, que são empresas feitas por pessoas, tal como a política. Isso gera um desconforto ao cidadão que, por acaso, trabalha em uma empresa e sabe que lá acontece algum esquema de desvio de recursos. Mexe também com o imaginário das pessoas, porque se quebra a expectativa de achar que a corrupção está só na política, e não na sociedade.

Para muitos, o voto é a principal ferramenta de integridade eleitoral, Angela considera que os meios de comunicação fortalecem ainda mais o voto: “Vemos políticos cassados que voltam em eleições futuras, mas os meios de informação são cada vez mais eficientes, o que pode fazer do voto uma grande ferramenta”, afirma. No entanto, mesmo com este direito constitucional, muitos se perguntam se as gerações futuras também serão afetadas pela corrupção. A professora acredita que os escândalos expostos resultarão em uma consequência didática:

– Creio que estamos vivendo, desde a redemocratização do país, o desafio de lidar com todos os problemas sociais oriundos da nossa desigualdade estrutural. Mais democracia vai significar cada vez mais instituições autônomas. Que os processos que estamos presenciando hoje tenha um efeito pedagógico para as gerações futuras, no sentido de se pensar que a lei é para todos.