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Rio de Janeiro, 18 de maio de 2024


Opinião do Professor

Terremoto político desmonta ideia de "Brasil paraíso"

Arthur Ituassu*

20/06/2013

 Agência Brasil

Protestos pelo Brasil indicam crise de representação

Foi um terremoto político. De repente, havia mais de um milhão de pessoas nas ruas para protestar em todas as grandes cidades brasileiras. Ao fim, os dias 17 e 20 de junho serão lembrados pelas maiores manifestações políticas no país desde 1992, quando os jovens “caras-pintadas” empurraram para o impeachment o presidente Fernando Collor de Mello.

Apenas no Rio, no dia 17, cerca de 100 mil pessoas foram ao Centro da cidade, caminhando lado a lado e cantando slogans políticos, embora alguns poucos tenham decidido radicalizar e jogar bombas caseiras no prédio da Assembleia Legislativa. O protesto lembrou a última manifestação de igual proporção na Cinelândia, a Marcha dos 100 mil, em 1968, contra a ditadura militar.

No mesmo dia, em São Paulo, 65 mil pessoas foram às ruas. De acordo com o Datafolha, a maioria entre 26 a 35 anos, sem preferência partidária, e mais de 80% disseram estar seguindo o movimento pelo Facebook. Na quinta-feira, 20, mais de 1 milhão de pessoas saíram as ruas em mais de 30 cidades do país.

Entretanto, dados e pesquisas detalhadas não dão conta de explicar o que está por trás de uma manifestação como esta, especialmente quando o país vive quase duas décadas de relativa prosperidade econômica, estabilidade política e inclusão social. Nesse sentido, seria imprudente ter a pretensão de, metafisicamente, explicar “o que realmente está acontecendo no Brasil”. No máximo, o que se tem são fragmentos, pedaços esparsos que, reunidos, podem dar algum sentido à realidade.

Um bom ponto de partida são as ideias e os argumentos expostos nas ruas e nas redes sociais. Trata-se de uma nova voz, hoje sem representação nos meios de comunicação ou nos partidos políticos, e que radicalmente questiona as estruturas centralizadas no país. Essa voz traz novos conceitos de comunidade política sem um caminho institucional disponível. É o choque do Brasil novo com o velho.

Demandas “além dos 20 centavos” expõem descompasso entre população e representação

A história começa em 6 de junho, em São Paulo. Milhares de pessoas foram às ruas alegando protestar contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus da cidade. A polícia do estado e a grande imprensa, pegos de surpresa, imediatamente classificaram o que acontecia como a ação de uma “gangue de vândalos”. Naquele dia, oito manifestantes e dois policiais foram feridos.

Os manifestantes resistiram às críticas e à repressão e seguiram com os protestos. Em 11 de junho, 38 pessoas ficaram feridas, incluindo oito policiais, e 19 foram detidas. Dois dias depois os protestos atingiram um momento crítico, quando 105 manifestantes, 18 policiais e 15 jornalistas saíram feridos dos confrontos. 

À medida que as pessoas foram aderindo ao movimento nesses cinco primeiros dias, também crescia a mobilização pelas redes sociais, com o compartilhamento de milhares de postagens relacionadas à repressão e à cobertura da grande imprensa. Também pelas mídias sociais foram marcados os protestos de 17 de junho, que ocorreram simultaneamente nas maiores cidades do país.

Dessa vez, seria muito mais que vinte centavos. Na verdade, as questões levantadas em todas as manifestações – especialmente no 17 de junho – foram a um só tempo múltiplas e complexas, vagas e dispersas. No entanto, se tomadas em conjunto e vistas num contexto mais amplo, constituído da incapacidade histórica do Estado brasileiro de fornecer serviços públicos com níveis mínimos de qualidade, de uma estrutura midiática amplamente centralizada, dos custos suspeitos com a Copa do Mundo de 2014, dos sucessivos escândalos de corrupção e da forma nababesca com que a elite dos servidores públicos vive no Brasil, os protestos levantam questões legítimas relativas à comunicação política e à representação política no regime democrático brasileiro.

Uma ideia levantada, por exemplo, relaciona a questão do transporte público, surgido em São Paulo, a problemas perenes na área de saúde, educação e segurança pública, uma nova versão de um velho debate sobre o lado da oferta dos benefícios públicos no Brasil. Enraizado na lógica comercial do capitalismo brasileiro, o Estado no Brasil falha, historicamente, na sua obrigação de garantir de modo igualitário, aos seus cidadãos, bens públicos como educação, saúde, justiça, segurança, entre outros, resumindo o país a uma arena feroz de competição de mercado, grandes conglomerados e altíssima movimentação financeira.

Um exemplo dessa situação reside no próprio transporte público. Intimamente ligado à indústria automobilística, incluindo patrões e trabalhadores, o Estado brasileiro encheu as cidades de carros e poluição ao dar incentivos sucessivos para o setor, num esforço de minimizar os efeitos da recessão global. Desde 2002, segundo estudo publicado na Folha de S.Paulo, circulam nas ruas da capital paulista 1,6 milhão de carros novos, 13 mil por mês. Ao adicionar caminhões e motocicletas à conta, foram 2,6 milhões de veículos novos desde então, mais de 20 mil por mês. Locomover-se no Rio, em São Paulo ou Salvador, para citar algumas cidades, tornou-se um drama diário.

Uma nova geração de cidadãos jovens, urbanos e conectados estabeleceu uma conexão entre essas e outras questões como, por exemplo, os sucessivos escândalos de corrupção envolvendo políticos de alto escalão e os custos crescentes da Copa de 2014, para a qual R$ 33 bilhões estão sendo investidos, sendo menos de R$ 4 bilhões da iniciativa privada. Em 2010, o governo estimou em R$ 5,4 bilhões os custos na reforma ou construção de estádios; três anos mais tarde, as obras já consumiram mais de R$ 7 bilhões. Os estádios da África do Sul custaram um terço disso, segundo a BBC.

Novas concepções de comunidade política podem romper com estruturas sociais centralizadas

Os jovens manifestantes ainda concentraram suas críticas nos partidos e na mídia, dois agentes importantes de representação política, vale lembrar, com o papel de mediadores entre a sociedade civil e a esfera política. Os protestos trouxeram palavras de ordem como “Nenhum partido me representa” e “O povo unido não precisa de partidos”, que foram cantadas em conjunto com “Nós não precisamos de Copa do Mundo, precisamos de dinheiro para saúde e educação”, “Quantas escolas cabem no Maracanã?” e “Menos corrupção, mais educação”.

Quanto à mídia, o principal foco dos protestos foi, naturalmente, a Rede Globo, que domina o concentrado sistema de comunicação brasileiro há décadas. Além da crítica nas mídias sociais, manifestantes hostilizaram um repórter e ameaçaram atacar o escritório da emissora em São Paulo no dia 17. Na mesma noite, a Globo exibiu um editorial no Jornal Nacional defendendo sua cobertura, alegando ter acompanhado as manifestações desde o início sem “nada a esconder” e afirmando que os cidadãos têm “o direito de protestar”. O próprio fato de a Globo ter se visto na obrigação de fazer esta defesa – ter sido "responsiva", para lembrar Hanna Pitkin – é um poderoso símbolo dos efeitos dos protestos.

Na verdade, a "responsividade" foi a tônica depois da tempestade. Colunistas, jornalistas e políticos disseram todos “me desculpe”, mas a presidente o fez de maneira perspicaz. Em discurso em 18 de junho, disse que “as vozes nas ruas precisam ser ouvidas e superam os mecanismos tradicionais [de representação] através das instituições, os partidos políticos, as associações e os meios de comunicação”.

É, claro, muito cedo para avaliar as consequências dos protestos, especialmente porque não se sabe até onde e quando as manifestações irão. Mesmo assim, pelo menos três pontos podem ser ressaltados. Em primeiro lugar, acabou a fantasia de que o Brasil se tornou um paraíso. Não é possível esconder mais que as cidades brasileiras são grandes catástrofes urbanas, marcadas por engarrafamentos gigantescos, especulação imobiliária, preços exorbitantes, falta de infraestrutura e serviços públicos. 

Em segundo lugar, contesta-se o quadro de modernização imposto de cima para baixo fortemente calcado no consumo e no aumento da atividade econômica. Há um limite de tolerância com as instituições políticas, que se mostram ineficazes para resolver os problemas históricos nas áreas de saúde, saneamento, educação e segurança. Não à toa, um cartaz no Rio resumia: “Não é por centavos, mas por direitos”.

Em terceiro lugar, os protestos põem em questão a capacidade das instituições políticas de incluir novas vozes, novas lógicas, que desafiam o país a romper com suas estruturas sociais centralizadas, como as estruturas pública, política e midiática.

Muito mais que um sistema, a democracia é um processo. Nesse sentido, os protestos podem ser vistos como um produto político claro das mudanças que o país tem experimentado nas duas últimas décadas, com liberdade, prosperidade, estabilidade e inclusão social. Agora, cabe à própria política, ou à própria democracia, impedir que a violência estrague tudo isso.

* Pesquisador em Comunicação e Política e coordenador do curso de Jornalismo do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site openDemocracy com o título: "Brazil, a crisis of representation".