No gabinete da reitoria da Universidade Cândido Mendes, a arquitetura e a mobília clássicas servem de cenário à entrevista. Retratos dividem o espaço com os livros – e com uma bandeira do Império. As fotos são muitas: algumas da família, outras com personalidades, como o papa João Paulo II. À imensa mesa de madeira que corta a sala, está sentado o professor Cândido Mendes. Membro da quarta geração de uma família que se tornou sinônimo de conhecimento acadêmico no país, ele começa a viagem aos tempos de estudante de direito e filosofia na PUC-Rio com uma frase sugestiva:
– Pode me perguntar, sou o seu aluno aplicado – brinca.
Ingresso na PUC em 1945, ainda na época em que o campus reduzia-se ao palacete da rua São Clemente, em Botafogo, ele cursou primeiro direito, depois filosofia. Explica a segunda graduação como “uma visão global do conhecimento necessária para o referencial daquele tempo”:
– Éramos uma geração marcada pela razão crítica – orgulha-se.
De fato, sua geração fez história. Nas salas de aula e nas mesas do bar na esquina da São Clemente, onde costumavam trocar ideias sobre “a conjuntura daqueles tempos”, Cândido conviveu com vários expoentes culturais e políticos do país. Entre eles, o economista João Paulo de Almeida Magalhães, o filósofo Tarcísio Padilha e o cientista político Hélio Jaguaribe. Foi justamente sob a liderança de Jaguaribe que Cândido e os amigos fundaram o Clube Pégaso. O grupo de discussões e estudos evoluiu para o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).
– Isso dá uma ideia das motivações de um universitário de ciências sociais daquela época. Minha turma mostrou muito essa vocação interdisciplinar – conta.
A vocação interdisciplinar de Cândido Mendes e seus colegas era tão grande quanto o envolvimento com as questões políticas. Ou, como ele prefere, com a “cultura aplicada à política, em termos da formulação de uma ideologia de mudança.” Um exemplo disso foi a participação do Iseb na elaboração das diretrizes do governo Juscelino Kubitscheck. Tanto que o instituto tornou-se o primeiro declarado "ilegal" pelo regime militar.
– A fertilidade da troca de ideias era um resultado natural de uma geração que saiu do emparedamento do pós-guerra e começava a viver a carga ideológica e as mudanças da Guerra Fria – recorda o reitor, que presidiu os diretórios acadêmicos da PUC e foi secretário-geral da União Nacional dos Estudantes (Une).
Se nos diretórios a atividade cultural era fruto da mobilização dos alunos, que levavam pensadores internacionais para o debate universitário, dentro de sala o envolvimento mostrava-se igualmente intenso. Cândido lembra, porém, que os métodos didáticos eram "bem diferentes" dos atuais – em certo ponto, até melhores para os que, como ele, abominam o “power point”. As aulas, principalmente em cursos de ciências humanas, eram baseadas mais na oratória, no discurso, dos que nos debates e nas pesquisas.
– Ainda estávamos em uma fase de começo de ensino superior, onde praticamente o conhecimento ficava na preleção, e algumas vezes no debate. Pesquisa era marca de uma maturidade do conhecimento do terceiro grau – observa Cândido, que criou o Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro, quando assumiu a universidade que leva o nome de sua família.
Os métodos conservadores não impediam que ele admirasse alguns de seus professores. "Um deles, um polonês exilado da Segunda Guerra Mundial", lembra. Outros eram Francisco Clementino Santiago Dantas, de Direito Romano, e Romeu Silva, da área economômica – na qual a PUC já começava a se destacar.
Com a indefectível sobriedade, Cândido Mendes recorda que, no início da faculdade, não havia trote, tradição considerada por ele “subcultura”. Também naquele início, o professor e reitor lembra que entrara no curso de direito para corresponder às expectativas de uma família de juristas. A própria cultura brasileira, acrescenta, apontava a faculdade de direito como uma incubadora de líderes. Ele ainda não pensava, contudo, em dedicar-se à área acadêmica. Preocupava-se mais com a atuação política.
No pequeno campus daquela PUC de Botafogo, Cândido experimentou incursões por outras áreas. Chegou a criar uma companhia de teatro popular e gratuito, para "democratizar a cultura".
– Fizemos a peça “Hipólito de Sófocles” junto à escadaria do Ministério da Educação – conta.
Cândido Mendes sonhava em democratizar não só a “praça e a ágora”. Era preciso tornar o ensino algo não só restrito às elites. No começo da República, observa o professor, havia apenas faculdades de direito, engenharia e medicina, "cursos impraticáveis para classes menos abastadas":
– Como é que a classe média, ainda saindo da miserabilidade, podia estudar? A partir dessa ideia, foram criados cursos práticos de comércio. E o nome consagrado foi Academia de Comércio, a origem da Cândido Mendes, em 1902.
Embora reconheça a importância da formação interdisciplinar recebida na PUC, “na época a melhor faculdade de Ciências Sociais do Brasil, junto com a USP”, ele esclarece que a universidade que cursou no passado e a que hoje comanda tinha "uma grande diferença de público e proposta pedagógica".
– A Universidade Cândido Mendes e os seus cursos estavam em uma função social distinta da PUC – avalia.
Do avô, que foi a Harvard, mas considerava um absurdo “um cidadão pagar para beber água”, Cândido Mendes herdou o desejo de democracia e de conhecimento. Não é à toa que a suntuosa estante de livros antigos divide lugar em sua sala com o porta-lápis de canetas Bic. Diante dessa característica, Cândido faz uma crítica ao argumento de que simplesmente a educação pode acabar com as desigualdades do país. Trata-se, segundo ele, de um pensamento “reacionário”:
– Ela tende a ser prisioneira do status quo e das classes dominantes. E geralmente, as pessoas que acham que a salvação do Brasil é a educação dizem isso com um idealismo ingênuo para, no fundo, mudar muito pouco.
É nessa hora que o homem que classificou power point como “subliteratura” mais uma vez surpreende e propõe que a educação, para tornar-se um real instrumento de mudança, integre-se aos novos sistemas de acesso ao conhecimento e incorpore a internet:
– Acho que a educação no Brasil, sobretudo no terceiro grau, está voltando a ter um problema de conhecimento. É preciso reavaliar o que é relevante o suficiente para ser comunicado.
Discussões como essa, sobre a educação, ainda costumam ecoar, 65 anos depois, nas conversas que Cândido Mendes tem com seus antigos colegas de PUC. Hoje, porém, os meninos que costumavam frequentar o bar da esquina para trocar ideias, e detestavam falar sobre futebol, tem um novo assunto recorrente: as memórias.
– Nó rememoramos sem nostalgia nem convencionalismo. Isso nos deu um começo de identidade que a vida depois não demoliu, mas enriqueceu de tantas experiências diferentes.
O orgulho estampado nas lembranças vem acompanhado de um comentário que resume a intensidade com que "o aluno aplicado" sempre mergulhou na vida acadêmica:
– Na aventura universitária, a gente só se arrepende daquilo que não fez.
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