Yasmim Rosa - Do Portal
05/04/2010
Escritos de Euclides da Cunha: política, ecopolítica, etnopolítica, org. Mauro Rosso
Escritor, jornalista, geógrafo, geólogo, filósofo etc. Euclides da Cunha era um homem à frente de seu tempo e conhecido como um multipensador. Em memória aos 100 anos de sua morte, a editora PUC-Rio, em parceria com as Edições Loyola, publicou o livro Escritos de Euclides da Cunha: política, ecopolítica, etnopolítica, organizado pelo escritor e pesquisador Mauro Rosso. A obra reúne textos do autor de Os sertões, escritos ao longo de sua vida e comentados por Rosso. No livro, o organizador apresenta um outro Euclides, um escritor que, mesmo no século XIX, já se mostra preocupado com questões ecológicas e étnicas, presentes na sociedade brasileira da época.
Mauro Rosso é professor e pesquisador de literatura brasileira, ensaísta e escritor. Já publicou livros sobre Arthur Azevedo, Machado de Assis e planeja escrever sobre Lima Barreto. Sempre com projetos em vista, Rosso busca apresentar o que há de menos conhecido em autores importantes da literatura brasileira.
Para falar sobre o novo livro e os escritos de Euclides, o Portal PUC-Rio Digital conversou com Mauro Rosso. Ele acredita que o jornalista foi importante na reformulação do pensamento elitista e predatório da época.
Portal PUC-Rio Digital: Por que fazer um livro com escritos, alguns inéditos, de Euclides da Cunha?
Mauro Rosso: Eu procuro desvelar a faceta ou as manifestações menos ou até totalmente desconhecidas de determinados autores. O que faço é a recuperação de um conto inédito, o resgate e reedição de um texto que ficou perdido, esquecido. No caso do Euclides, o livro teve um foco diferente porque, na verdade, não existe nenhum texto que seja desconhecido. Pouca coisa da produção intelectual dele, e é importante lembrar que ele escreveu muito, é inédito ou pouco conhecido. O que é pouco conhecido são os dois aspectos sobre os quais ele se debruçou e refletiu. Sempre sob a égide da política, ele tratou de questões ecológicas e étnicas. Foi sempre um ser político e escreveu muito sobre isso em jornais e em alguns artigos específicos. Dedicou-se à política internacional, não só sobre a Europa, mas principalmente sobre a América do Sul. Adiantou inclusive algumas reflexões sobre a política sul-americana que eram pouco comuns na época. Minha ideia inicial era trabalhar em cima desses escritos e da atuação política de Euclides. Mas à medida que fui conhecendo um pouco mais os escritos, vi o quanto ele se debruçou sobre questões de ecologia e raça. Tudo, como eu disse, sob o espírito da política. Pensei nessa divisão e organizei o livro a partir disso.
P: E como Euclides da Cunha trabalhou a questão ecológica em seus escritos?
MR: Euclides pode ser considerado o primeiro ecologista brasileiro. No livro, há uma publicação de quando ele ainda era um estudante de 18 anos. Ele fez um verdadeiro libelo em defesa do meio ambiente depois de observar o quanto a natureza do Rio de Janeiro estava sendo prejudicada. Na medida em que foi desenvolvendo sua atividade, foi se munindo cada vez mais de informações sobre questões da natureza. O Euclides é um multipensador. Além de ter essa atuação política e esse embasamento filosófico, ele foi matemático, engenheiro, se tornou autodidata em geologia, geografia. Seus estudos na área geológica e geográfica deram a ele algumas informações sobre questões do meio ambiente. Quando ele foi para Canudos cobrir a guerra como repórter do Estado de São Paulo, deparou-se com as questões ambientais do sertão, com a seca e as adversidades climáticas. Formulou uma teoria fantástica sobre a formação do clima do Nordeste a partir de uma corrente de ventos que vinha dos Andes. Como geólogo, estudou a formação das rochas e o conjunto de elementos que caracterizava o clima árido do Nordeste. Ele conheceu a seca de perto e denunciou que o fenômeno era utilizado demagogicamente pela retórica vazia dos políticos. A seca só servia para preservar ou colaborar para a manutenção das condições sociais do sertanejo na medida em que não havia interesse em combatê-la. Nessa denúncia foi mais uma vez antecipador e afirmou que a seca era um problema fácil de resolver a partir do sistema de irrigação. Já nessa época era um crítico da República e também denunciava a questão da implantação das ferrovias e como as estradas de ferro colaboravam para a devastação do meio ambiente. Anos mais tarde, quando foi para a Amazônia, também se deparou com atentados ao meio ambiente.
P: E a questão etnológica? Como Euclides aborda o tema?
MR: Esse outro aspecto a ser destacado na atuação de Euclides da Cunha é a reflexão dele sobre a raça brasileira. Ele, como todos na época, via as questões étnicas à luz do positivismo e de uma filosofia de pensamento baseado num polonês chamado Ludwick Gumplowicz, que é considerado uma das maiores autoridades do mundo em questões étnicas. Anos mais tarde chegou-se a conclusão que se costumava, no Brasil, fazer uma leitura distorcida e equivocada dos conceitos desse pesquisador. Acreditavam que havia uma superioridade de uma raça sobre outra determinada pela cor da pele, o que não era verdade. Para Gumplowicz, o processo de prevalecência de superioridade de um grupo étnico sobre outro era gerado por questões circunstanciais do próprio processo histórico, ou de outros fatores. Euclides, assim como os demais, interpretou que existia uma superioridade da raça branca sobre a raça não-branca. Ele, inclusive, dizia que a mestiçagem exagerada e excessiva causava um retrocesso e que no Brasil não havia homogeneidade de raça. É lógico que não havia e ainda não há. Foi então que Euclides viajou para Canudos. No sertão, descobriu o sertanejo, ou melhor, conheceu-o mais de perto e viu nesse homem o elemento que seria homogeneizador da raça brasileira. Por isso, ele reformulou completamente os seus conceitos e também ajudou a reformular os conceitos da época. A partir de uma nova leitura sobre essa falta de homogeneidade da raça brasileira e das perspectivas que se abriram para a heterogeneidade da raça através do sertanejo, ele passou a defender a mestiçagem, mesmo que ainda sob controle, de forma comedida.
P: Teria alguma outra divisão que não fosse política, etnopolítica e ecopolítica?
MR: Eu creio que não porque isso esgota tudo o que ele escreveu e falou. Os escritos podem ser vistos sobre essas três pilastras básicas do pensamento dele, que é a política, a ecopolítica e a etnopolítica. Na verdade, é uma pilastra só, que é a política. Ele foi um ser politico em sua essência. Dos cabelos aos pés e em toda a vida dele, tudo o que viu ou praticou foi sob a égide da política. Então, o principal Euclides da Cunha é o político. Em torno disso é que circulam o pensamento social, ecológico e étnico. Ele foi um multipensador e publicou aquilo que formulou em termos de pensamento. E até que ele publicou poucos livros. Acredito que teria escrito mais se não tivesse morrido prematuramente em 1909, daquela forma dramática.
P: O que você ressaltaria na obra de Euclides?
MR: Euclides foi, em todas as instâncias, um pioneiro. Mesmo na política, formulou algumas considerações de ordem filosóficas muito inovadoras para a época e antecipadoras do que viria depois. Um exemplo foi a sua posição de militante republicano. Ele foi formado pelo positivismo e pelo cientificismo, o que não o diferenciava muito da ideologia predominante na época. No entanto, avançou e se tornou diferente dos seus pares porque formulou alguns conceitos sobre liberalismo social. Esse foi um dos elementos chaves de um modelo político que ele queria ver efetivamente posto em prática pela República. Já havia algumas formulações e práticas em torno do liberalismo social na história brasileira no século XVIII e mesmo no século XIX. Porém, ele levou isso mais adiante porque fez um liberalismo social baseado no industrialismo e, sobretudo, no desenvolvimento econômico intenso, mas acoplado à justiça social. Em outras palavras, ele antecipou o que hoje entendemos por social-democracia. Outro ponto a destacar é que ele defendia, com base nessa formação positivista, que só uma elite esclarecida e privilegiada deveria governar o país. Isso poderia ser encarado como uma posição elitista, extremante conservadora e até reacionária. No entanto, forçava as pessoas a serem formadas pelo positivismo, pela escola militar, que estava preparada para a formação desse pensamento. Por isso, só a República seria o tipo de governo compatível com esse pensamento. Euclides defendia o poder exercido por uma elite mais esclarecida, porém acoplado à justiça social. Ele teve um percurso que não foi tão comum na época. Partiu de uma posição que poderia ser considerada, numa análise simplista, conversadora e reacionária de direita, para uma posição socialista.
P: Qual a contribuição do pensador para a história brasileira?
MR: Foi principalmente a parte política. Ele formulou alguns conceitos antecipadores na esfera política. O liberalismo social, a justiça social, elementos que geraram a social democracia. E ele também escreveu sobre política internacional. Na época, escreveu sobre os litígios entre a Alemanha e a Rússia, questões sobre a Alemanha, o Kaiser, etc. Mas ele escreveu principalmente sobre política sul-americana. Nesses escritos, podemos encontrar muitas informações históricas. Ao ler os textos, principalmente os da coletânea Contraste e Confrontos, percebemos que ele narra e dá informações preciosas sobre a história sul-americana. Sobre a história do Brasil, tem um documento muito emblemático chamado O Brasil do século XIX no qual ele faz um retrato do país desde os tempos da colônia até aquele momento. Então, também é fato que ele produziu documentos históricos.
P: O que você espera com a publicação do livro?
MR: Eu espero, para o bem de Euclides da Cunha, para o bem do pensamento político social brasileiro, para o bem do pensamento histórico brasileiro, para o bem da literatura brasileira, que o livro produza o efeito de propagar as ideias de Euclides. É esse o meu objetivo, difundir a obra de determinado autor e tornar seu trabalho cada vez mais conhecido e estudado. Ainda mais o Euclides da Cunha, um dos maiores pensadores do país. Ele foi um dos grandes intérpretes do Brasil e escreveu o livro que foi o primeiro best-seller do país. Os Sertões teve uma vendagem estupenda quando foi lançado em 1902 e até hoje é considerado, quase que unanimemente, como a maior obra não ficcional, ensaísta, da literatura brasileira e uma das maiores da literatura universal. É um livro absolutamente primoroso e pode-se dizer que é um livro sem igual porque é abrangente. Reúne considerações sobre geologia, geografia, história, etnia, ecologia, política, literatura, romance. É uma obra magnífica.
P: Quais outras obras de Euclides você destacaria?
MR: Fora Os Sertões, eu também destacaria a coletânea Contrastes e Confrontos, que é o livro que reúne a maior parte dos escritos dele sobre política européia e sul-americana. E tem também o À margem da história, que é uma coletânea póstuma. Esse foi publicado logo depois que ele morreu em 1909 e reúne textos sobre a Amazônia, que foi outra etapa muito importante da vida dele. A Amazônia também influenciou seu pensamento político, suas denúncias políticas e de ordem ecológica e também gerou reflexões de ordem étnica. Na Amazônia, Euclides levou adiante algumas observações sobre a raça brasileira. Observou o homem amazônico, que na verdade, não diferia muito do homem nordestino. Até porque a região amazônica foi originalmente povoada, claro que primeiro pelos índios, mas em termos de outras raças, por nordestinos que foram para lá para trabalhar nos seringais. Então, o homem amazônico deriva do homem nordestino, é uma extensão do sertanejo, quando não o próprio sertanejo que se deslocou para lá.