"Se for independente, não sobreviverá três meses". A provocação de Millôr Fernandes no lançamento do Pasquim, há 40 anos, indicava o tom irrerevente e ferino daquele que se tornaria um dos tablóides mais badalados do país. Reunião de bambas dispostos a transformar o humor numa arma sistemática contra o regime militar e a censura - Ziraldo, Ivan Lessa, Claudius, Henfil, o próprio Millôr -, o semanário saiu das bancas e entrou para a história 22 anos após chegar às bancas, em 26 de junho de 1969. Transportou-se para o imaginário, as edições comemorativas, as aulas de jornalismo, os botequins. Por onde anda seu legado subversivo? Sua capacidade contestadora ainda inspira corações e mentes na luta contra outros inimigos (como os "atos secretos" dos senadores ou a condescendência judicial com os "clientes" da prostituição infantil)? Vestido com uma calça jeans surrada, sapato preto sem meias, camisa azul claro e um colete cinza, Ziraldo foi igualmente simples quando decidiu se sentar em um banco de madeira no corredor do Edifício Kennedy para responder estas e outras perguntas sobre a perspectiva de renovação do exercício crítico no jornalismo.
Portal PUC-Rio Digital: Por onde anda o legado do Pasquim?
Ziraldo: O legado do Pasquim é baseado no humor, que é uma forma usada para informar de maneira criativa, sobretudo quando se quer mostrar que algo não está certo na sociedade e chamar a atenção do povo para isto. Para que funcione, é preciso que um interlocutor pense de maneira semelhante ao seu público. Caso contrário, não terá efeito. Então, quando se vive uma ditadura militar e há um grupo contra o regime, o humor funciona mais rapidamente e com mais eficiência. Hoje, o humor está mais diluído, não tem o mesmo impacto que tinha na época do Pasquim. Naquele tempo, eu fazia uma charge sobre algo que nem era uma grande descoberta, por exemplo, e, ao acordar de manhã, eu recebia uns dez telefonemas de pessoas dizendo "Ziraldo, você fez o que eu estava pensando". Era uma época em que o rádio e os jornais agiam com muito humor, uma forma de desmoralizar o regime duro em que vivíamos. Atualmente, as pessoas não querem desmoralizar o governo do Lula, por exemplo. Tem várias coisas acontecendo que não estão certas e ninguém faz nada. Então, neste sentido, o legado está na imprensa que voltou a ter chargistas, um ou dois, pelo menos. E, na época, não tínhamos. Nós que fazíamos isto. Porém, não temos mais uma rede de humor consistente. O Casseta e Planeta parece aquelas revistinhas de colégio com piadinhas bobas. Fazer trocadilhos e ofender homossexuais é uma bobeira. Mas os chargistas continuam produzindo coisas muito boas. Nos jornais, por exemplo, o Chico (Caruso, de O Globo) ainda difunde a ideia do Pasquim.
Portal: O semanário ainda inspira a busca de justiça pela imprensa?
Ziraldo: Sim, mas vivemos outro tempo. Eu vejo as melhores charges, piadas e anedotas circulando pela internet. Mas ainda há espaço para uma revista de humor. Só que ninguém se anima a fazer. Os meninos talentosos ficam desenhando suas charges na internet e eu, que faço revistas, não tenho mais disposição para fazer. Mas como tem muitos cartunistas no Brasil que só aparecem no salão de humor, toda hora me sinto tentado a fazer uma revista, só de cartun, piada. Vou ver. Se arrumar um patrocinador, eu faço.
Portal: É impossível, como na histórica provocação de Millôr, conciliar independência e sucesso comercial?
Ziraldo: Esse é um humor filosófico do Millôr. Ele tem uma frase em consequência dessa, que diz "Sou livre, livre como um táxi". Mas, é claro, sabemos que não existe liberdade total e que ninguém ou nada é totalmente independente. Todo mundo depende do outro, de alguma forma. Fazer sucesso no mercado editorial sendo independente é muito difícil. É preciso que haja uma boa distribuição, uma série de recursos para beneficiar a sociedade. Quer dizer, se você não coloca um jornal na banca todos os dias, se ele não é bem impresso, se não há dinheiro para pagar os funcionários, fica complicado. Tem que dançar conforme a música.
Portal: A imprensa carece de veículos alternativos?
Ziraldo: Sim, mas a internet estabeleceu uma nova forma de relação do homem com a informação. Então, as próprias circunstâncias não permitem que haja esses veículos, porque não há uma luta nítida, uma vontade. A revista Veja, por exemplo, só falta chamar o presidente de retardado. Outras publicações já têm mais cuidado ao se referir a ele. Mas falta uma causa. Não vejo isso ainda como algo concreto.
Portal: Qual o futuro do jornalismo na era dos blogs?
Ziraldo: Essa é uma grande pergunta. E é sensacional falar sobre o assunto. O jornal como nós conhecemos hoje vai acabar. Por enquanto, há blogs muito lidos e importantes na internet. Mas o que acontece é que, na internet, tudo se torna palavras ao vento, soltas. A palavra que fica mesmo é a gravada. Então, isso é o que pode permitir que o jornal permaneça, mas não no seu formato atual. O papel vai acabar. Imagino que, no futuro, as pessoas vão se sentar no ônibus com uma telinha onde vão conectar o jornal em forma de um chip e ali aparecerão todas as informações escritas. E insisto em dizer que tem que estar escrito, senão vira palavra ao vento, não tem o mesmo impacto, apesar de a internet ser o maior arquivo do mundo. Uma opinião tem que ser assinada embaixo. Na internet ela pode ser apagada. No impresso, fica gravada.
Portal: A revogação da exigência de diploma é um empecilho para se fazer um jornalismo comprometido com o interesse social?
Ziraldo: Não. É possível fazer um jornalismo sério e comprometido mesmo sem o diploma. Mas, o melhor caminho para exercê-lo com qualidade, o mais curto, continua sendo por meio do curso de jornalismo. Para tudo na vida é necessário um curso. E, no caso da informação, considero importante um curso especializado. Se você faz medicina, por exemplo, tem que arrumar um estágio em um hospital e não em um jornal (risos).
Portal: Como foi sair do humor do Pasquim e começar a escrever para crianças?
Ziraldo: Eu já tinha feito história em quadrinhos antes de começar a escrever literatura infantil. Quando os militares voltaram para os quartéis e o Pasquim perdeu todo seu sentido, eu pensei: O que vou fazer agora? Eu vivia de fazer publicidade, anúncio. Foi então que decidi escrever o livro O Menino Maluquinho, em 1980. A obra teve uma boa repercussão, vendeu 100 mil exemplares em menos de quatro anos, descobri que era isto o que eu queria fazer. E gosto muito (risos).