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28/05/2015A naturalização do comportamento violento no cotidiano do Rio, reproduzido pela grande mídia de forma banalizada, pode trazer graves consequências para a saúde do carioca, da favela ao asfalto. Essas foram as conclusões da antropóloga americana Erika Robb Larkins que resultaram no livro The Spetacular Favela, lançado este ano no dia 15 de maio pela University of California Press. A pesquisadora defende a existência de uma “narrativa da violência” que busca dar uma explicação racional para o perigo nas favelas, o que, segundo ela, permite a disseminação natural e a perpetuação de um cenário de insegurança entre os moradores. A professora da Universidade de Oklahoma acredita que a relação Estado-polícia-tráfico se dá através de um espetáculo da violência, que é reproduzido pela mídia e promove a manutenção de um sistema de ilegalidades e de incertezas.
Durante quase dois anos, a antropóloga morou na Rocinha, uma das maiores comunidades da América Latina, e estudou a complexidade das relações entre o crime e a segurança pública também no Complexo da Maré. Na última quarta-feira (27), a antropóloga participou da Conferência Internacional Violência e seus Impactos na Saúde, promovida pelo Curso de Educação em Saúde e Saneamento Ambiental (ESSA), realizado pelo Sesc-Rio em parceria com a PUC-Rio. Formada em História e Estudos Religiosos pela Universidade de Indiana, atentou para o tratamento diferenciado entre as mídias sobre o tema da violência e como isso pode auxiliar na construção de uma representação social equivocada do fenômeno:
– A grande mídia gosta de expor a favela como um Estado paralelo, do tráfico, o que eu acho muito errado. A maioria dos traficantes e dos consumidores de drogas não está concentrada nas favelas. Essa ideia divulgada pela grande mídia esconde as reais ligações entre Estado e tráfico. Há apenas um Estado. Políticos, traficantes, policiais, consumidores e financiadores internacionais estão interligados em um único sistema de crime organizado que ultrapassa as fronteiras do país.
A rotina violenta pode acabar tornando o ambiente de insegurança algo normal e aceitável. No entanto, Erika afirma que há uma tensão constante que impacta diretamente na saúde do morador de comunidade:
– Há um dia a dia estressante para o morador de favela, que eles dizem ser normal. Há toda uma forma de explicar a violência de modo a racionalizá-la para que eles possam continuar vivendo, cria-se uma estrutura, uma narrativa que ajuda a sobreviver. Muitos tentam agir de forma correta para não sofrerem o impacto da violência, ou seja, não chamam a polícia, não consomem droga, e acreditam que se você “fica na sua”, eles “não mexem com você” e nada acontece. Isso não é verdade. Saúde e violência têm uma relação direta: pressão alta, diabetes e síndrome de estresse são, muitas vezes, agravados ou desencadeados pela violência - explica
A repressão como marca
Durante sua pesquisa de campo, a professora notou um preconceito velado existente na atuação do Estado e do tráfico na favela. Para Erika, a violência parece ter se tornado uma marca vendável e disseminada através da mídia e das redes sociais:
– A violência do Estado é espetacular, é televisionada, é impactante. Os oficiais do BOPE tiram selfies enquanto estão invadindo comunidades – afirma surpresa – é uma espécie de relação moderna que compreende a exposição do treinamento especializado, profissional com uma dimensão idealizada dos policias, simbólica, quase mágica. Não é só matar, é matar e postar no Facebook, no Twitter e, ao fazer isso, cria-se uma marca. O Estado repressivo produz uma violência midiática, que circula para todos, não só para quem está dentro da comunidade. Muitas pessoas gostam dessa polícia que é uma marca vendável, que se consolida influenciada pelo cinema e pela televisão. O Tropa de Elite faz sucesso na Europa também e o quartel do Bope, por exemplo, virou um local e turismo onde as pessoas podem jogar paintball em times divididos em “polícia” e “traficante”– argumenta.
“A violência simbólica esconde as causas reais da violência estrutural e da violência armada”, afirma antropóloga
Em The Spectacular Favela, Erika expõe sua tese sobre os diferentes tipos de violência e como elas se relacionam e se retroalimentam. Na ótica da pesquisadora, a violência que mais agride é a que se promove através do preconceito já instituído na linguagem do cotidiano da favela e do asfalto:
– A ideia de violência física mata menos que outros tipos de violência. Não é apenas o tiro que mata as pessoas na comunidade, é a falta de saúde, saneamento. A violência estrutural tem raiz nas bases desiguais entre as pessoas, o que insere é esse tipo de violência em uma escala global, porque os países de poder influenciam e mexem com a vida em países mais pobres. Já a violência simbólica é formada por ideias e rótulos existentes na sociedade e que permitem a permanência de toda desigualdade. Esses julgamentos são de cor, gênero, lugar de origem e sobre a ideia de pobreza. É preciso perceber que as palavras “favela” e “comunidade” carregam significados e preconceitos, mas as pessoas não gostam de falar deles. Por isso que é preciso envolver antropólogos, pesquisadores, pessoas de fora das comunidades, e principalmente moradores das favelas para que eles entendam que têm direito a ter paz – defende.
O estudo de Erika aponta uma escassez de programas governamentais que contemplem tanto os vendedores quanto os consumidores de droga, além de denunciar uma política precária de educação, saúde e saneamento:
– O Brasil é o segundo país no mundo para o consumo de cocaína. Mas não há nenhuma intervenção sobre os consumidores, mas apenas para quem está vendendo. O dinheiro aplicado na guerra contra as drogas é direcionado apenas para um lado da história. A ideia de que um tiro na favela não é igual a um tiro em Copacabana – frase dita pelo Secretário e Segurança José Mariano Beltrame sobre a implantação das UPPs nas favelas da Zona Sul – representa o fato de que a sociedade não tem problema com o sofrimento de alguns grupos, mas se importa com o de outros. Isso é preconceito.
Em seus próximos trabalhos, Erika conta que começará uma pesquisa sobre segurança privada no Rio de Janeiro, e que pretende acompanhar os profissionais que atuam nessa área.