Paula Laureano* - aplicativo - Do Portal
08/03/2015Augusto é escritor e andarilho. Dia e noite anda pelas ruas do Rio de Janeiro. Olha com atenção fachadas, telhados, portas, janelas, cartazes, letreiros, buracos nas calçadas, o chão que pisa e, principalmente, pessoas. Assim o escritor Rubem Fonseca apresenta o protagonista de seu conto A arte de andar nas Ruas do Rio de Janeiro, que, como ele, decide escrever sobre o Centro, bairro mais antigo, obscuro e plural da cidade. O Centro, para ele(s), é um mistério. Nos 450 anos do Rio, o Portal volta ao Centro, livro a céu aberto, para refazer os percursos do andarilho 23 anos depois da publicação do conto que abre Romance negro e outras histórias. É um convite ao leitor para reconhecer lugares e personagens únicos como os da história por meio de texto, vídeos e áudios (com trechos da obra original).
Augusto – cujo nome verdadeiro é Epifânio – passa pelo Theatro Municipal, que anuncia uma ópera; pela Casa Angrense, ao lado do Cine Palácio; e pela Praça Tiradentes, onde músicos desempregados cantam sob as marquises, próximo à Rua da Carioca. Entra no Campo de Santana e abraça as árvores, buscando também se enraizar. Contempla o prédio do quartel-geral do Corpo de Bombeiros, na Rua Visconde de Rio Branco, assim como o Real Gabinete Português de Leitura (leia mais aqui), próximo à Rua do Teatro; e ouve histórias de como o Cinema Ideal abria o teto nas noites de verão, tornando possível aos espectadores ver estrelas.
Na pequena Ramalho Ortigão, rua de paralelepípedo, estreita, mas com movimento de carros intenso, há uma loja de lingerie, uma joalheria, uma Di Santinni e a Escola de Música Villa-Lobos. Ela desemboca na Rua Sete de Setembro – onde mora Augusto-Epifânio, em um sobrado sobre uma chapelaria feminina. Se olharmos para o alto dos sobrados nos dias de hoje, vemos escrito em um deles “Fábrica de Chapeos de Sol”. O sobrado de três andares está lá e, em vez de chapelaria, funciona no local uma loja de roupas feminina, que vende linho e cetim.
Augusto descobre ao acaso o cinema-templo do pastor Raimundo na Rua Senador Dantas, ao sair de uma farmácia próxima à Rua Alcindo Guanabara. No conto, todas as manhãs, das 8h às 11h, o cinema era ocupado pela Igreja Jesus Salvador das Almas e, a partir das duas da tarde, exibia filmes pornográficos. Hoje no local não há a farmácia, apenas um Bob’s na esquina da Alcindo Guanabara com a Senador Dantas. Quanto ao cinema-templo, também não há mais nem cinema, nem templo. O antigo Cinema Vitória, desativado há mais de duas décadas, cedeu espaço a uma filial da Livraria Cultura, inaugurada em 2012, preservando e modernizando a estrutura do antigo prédio. Ao se olhar para o alto, é possível ver câmeras cercando o edifício. De lá, vemos uma rua movimentada de carros e com muitos hotéis.
Em um beco paralelo a Rua Alcindo Guanabara, dali a dois quarteirões, chega-se à Cinelândia. Augusto cita no conto três Mcdonald’s, um na Senador Dantas, outro na São José e mais um na Rio Branco. No entanto, o único que se manteve foi o da Rio Branco, próximo a Rua da Alfândega. Surgiram quatro novos, na Rua Senhor dos Passos, 117; na Rua Miguel Couto, 6; na Travessa do Ouvidor, 5; na Central do Brasil; e, por último, na Praça Floriano. E lá estávamos nós, em frente ao Mcdonald’s ao lado do Cinema Odeon, clássico cinema que teve seu auge em 1926, época áurea da Cinelândia (leia mais: Cinema de rua deve inovar sem perder essência), então ponto de travestis. O prédio grande e imponente está se fechado para reforma que o transformará em centro cultural.
Na praça, no meio da manhã, pessoas estavam sentadas nos bancos, um deles ocupado por um mendigo que dormia. Mas o movimento estava longe dali, mais a frente, próximo ao Theatro Municipal, que no conto anunciava ópera e tinha pichações. No dia de nossa visita, vimos fachadas limpas e anúncios da montagem de O pequeno príncipe. Nos degraus, uma mulher descansava deitada sobre as pernas de um homem, um casal de turistas olhava o mapa da cidade e um trabalhador tirava um cochilo. Ao pé da escadaria, uma mulher era abordada por outro casal de turistas pedindo informação sobre outro prédio. Ela responde que é a sede do Senado Federal. Depois, continua explicando sobre a Biblioteca Nacional, o bar Amarelinho, o MAM, a Marina da Glória. Gisele Mendonça tem 35 anos e é tradutora. Desde pequena frequenta o Centro da cidade.
– Quando eu era criança, o Centro era mais elegante. Não víamos muitos turistas, era um lugar de trabalho. Agora o Centro perdeu um pouco do charme, está confuso por causa das obras, mas também há mais gente fazendo lazer. Quando eu era jovem, não existia o CCBB, a Caixa Cultural, o Museu de Arte do Rio.
A história da família de Gisele passa pelo Centro. O avô trabalhava no Castelo e a mãe era professora de história. Eles adoravam contar sobre episódios que marcaram a cidade e que eles vivenciaram. Ela acredita que o seu interesse surgiu daí.
– As pessoas viajam para a Europa e dizem que lá conheceram muita coisa, mas esquecem que o Rio é história pura! O Rio tem muita história – diz a tradutora.
Voltando ao Cinema Odeon, em uma banca em frente, está o “negro que mais dirigiu filmes no Brasil”, como se intitula o diretor Afrânio Vital. Famoso nos anos 1970, produziu três longas e sete curtas-metragens, a maioria sobre a arquitetura do Rio de Janeiro:
– É uma arquitetura sem igual. Não se encontra nada parecido em nenhum outro lugar do mundo.
O roteiro segue em direção à Casa Angrense, que ficava ao lado do antigo Cine Palácio, hoje cheio de tapumes e de pedreiros executando a sua restauração. A Casa Angrense, onde Augusto entra para tomar uma água mineral enquanto escolhe a prostituta que ensinará a ler, não existe mais. Em seu lugar, há um prédio branco sobre uma filial da drogaria Pacheco. Em frente aos dois edifícios, trabalha o vendedor ambulante Cristovam Romão dos Santos, que mantém sua barraca há 42 anos e já viu muita coisa mudar. Ele lembra que o Passeio Público foi cercado, o sentido da rua mudou, um estacionamento foi criado e a banca de jornal mudou de lado. Mas o que ele mais viu mudar foi o movimento.
– Antes, eram artistas passando de lá para cá, pessoas que vinham de Copacabana para comprar aqui. Era outro tipo de gente – comenta Cristovam, que hoje vende guarda-chuvas e cintos: – “vender óculos já não dava mais, foi proibido”, lamenta.
Seguimos em direção à Rua das Marrecas, que já teve vários nomes – Rua das Boas Noites, Rua Barão de Ladário, Rua André Rebouças, Rua Pablo Juan Duarte. Nela ficava o hotel que a prostituta Kelly sugere para irem. A rua é estreita, quase sem movimento de pedestres e de carros. Há duas obras, um edifício comercial em uma esquina e uma lanchonete na outra.
Exatamente em frente à Rua das Marrecas, há uma entrada para o Passeio Público, onde Kelly diz que nunca entrou, embora tenha feito a vida ali em frente. É um parque mal cuidado, em que poucos se arriscam a passear. O lago está sujo, cheio de embalagens de comida. Mais à frente, alguns mendigos põem suas roupas para secar na grade do lado oposto ao da Rua do Passeio.
Do Passeio Público subimos para o Largo da Carioca, já não mais “vazio e sinistro” como descrito no conto, e por onde Kelly e Augusto passaram a noite. Estava cheio. Passavam trabalhadores e aposentados. Vimos o “poste de luz de bronze com um relógio no ápice, ornamentado com quatro mulheres também de bronze com os seios de fora”. Dois camelôs competiam para ver quem deixava o som mais alto.
Na Rua da Carioca, Kelly e Augusto tomam café em uma casa de sucos e pastel. Existem três próximas, com características parecidas da descrita no conto, onde as pessoas comem em pé, lado a lado, e há mais salgados do que média com pão com manteiga.
“Antigamente havia botequins espalhados pela cidade, onde você sentava e pedia: seu garçom, faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada, um pão bem quente com manteiga a beça. Eu apenas queria dizer que havia uma infinidade de botequins espalhados pelo centro da cidade. E você sentava num botequim, não ficava em pé, como nós aqui e havia uma mesa de mármore, em que você podia fazer desenhos enquanto esperava alguém. Quando a pessoa chegava você podia ficar olhando para a cara dela enquanto conversava”.
“Nós não estamos conversando? Você não está me olhando? Faz neste guardanapo de papel.”
“Estou te olhando. Mas tenho que virar o pescoço. Não estamos sentados numa cadeira. Esse guardanapo de papel borra quando você escreve nele. Você não entende.”
Comem um hambúrguer com suco de laranja.
Voltando à Rua da Carioca, em meio às lojas de instrumentos musicais, encontramos o Cinema Ideal, coberto por tapumes. O único resquício de que existia é uma pequena placa com o seu nome e um parágrafo de sua história. O símbolo também permaneceu, mas quem não conhece precisa forçar a vista para ler o C e o I juntos.
No conto, o Velho fala do Ideal. Lembra que a cúpula se abria nas noites de verão, dando chance aos frequentadores de olhar as estrelas no céu. “Um deles era o senador Rui Barbosa”, diz o Velho. Esses detalhes estão numa placa colada do lado de fora do cinema hoje. O Velho vive a dizer como tudo era bom antigamente, quando os cinemas do Centro faziam sucesso, as mulheres costumavam usar chapéu e as pessoas moravam em sobrados – como ele, que é dono de uma chapelaria e mora na sobreloja; enquanto Kelly, a prostituta de breves relacionamentos, despreza tudo que é antigo e prefere se distrair com os camelôs por onde passa, encantada pelas bugigangas.
Um pouco mais à frente está o Íris, que chama a atenção pela cor vermelha e a decoração da entrada, lembrando mesmo um teatro. Como no conto sabe-se que exibe filmes pornográficos. O cinema anuncia três shows ao vivo de strip tease e “sessões de pornô com ar-condicionado”. Um dos horários do show era ao meio-dia, hora do almoço.
Na Praça Tiradentes, não existe mais o Café Capital, lugar em que músicos desempregados se reuniam sob a marquise, segundo Augusto. Mas há um bar-restaurante, que até conservou a decoração antiga, mas não era o mesmo e não havia músicos reunidos. O Teatro João Caetano, com sua pintura azul celeste, continua na esquina da Avenida Passos e a Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa também. Na Rua do Teatro, não vemos jogo do bicho como Augusto, mas um grupo de cinco homens fumava cigarros de maconha, próximo ao Real Gabinete Português de Leitura, onde ainda é possível sentir, como Augusto, a presença aconchegante daquela enorme quantidade de livros e o cheiro de papel velho.
Na Rua Visconde de Rio Branco, há o quartel-general do Corpo de Bombeiros. No conto, Augusto contempla o prédio e espera que os carros vermelhos com as sirenes ligadas e a escada Magirus saiam, mas nada acontece. O prédio, do século XIX, é um castelo vermelho com torres e detalhes em cor prata. à frente dele fica uma das entradas do Campo de Santana.
Mais um parque abandonado, nem tanto quanto o Passeio Público. Do lado de fora, muito movimento. Dentro, alguns grupos de mendigos e vendedores ambulantes se misturavam com as cutias, os patos, os pombos e os gatos de rua. A gruta artificial em que Augusto se esconde ainda está lá. Ele espera o Campo de Santana fechar, escondido na gruta, para depois sair e abraçar as árvores: “Sai da gruta junto com os morcegos e os ratos. (...) Abraça e beija as árvores, o que tem vergonha de fazer à luz do dia na frente dos outros; algumas são tão grandes que ele não consegue juntar os dedos das mãos atrás delas. Entre as árvores, Augusto não sente irritação, nem fome, nem dor de cabeça. Imóveis, enfiadas na terra, vivendo em silêncio, indulgentes com o vento e os passarinhos, indiferentes aos próprios inimigos, ali estão elas, as árvores.”
O ato de abraçar as árvores demonstra como Augusto queria se enraizar na cidade, senti-la, entrar em comunhão com ela. Como um flaneur, termo cunhado por Charles Baudelaire para designar aquele que anda pela cidade a fim de experimentá-la.
Em volta do Campo ficam a Casa da Moeda, o Hospital Souza Aguiar e a Faculdade de Direito da UFRJ, antiga Universidade do Brasil. Esta última estava toda pichada. O hospital, com macas empilhadas em seu interior, e a Casa da Moeda, apenas com um segurança na porta.
Para chegar à Rua São José, onde Augusto almoça com o Velho e Kelly no restaurante Timpanas, é preciso voltar à Praça Tiradentes, cruzar o Largo de São Francisco, pegar a Rua do Ouvidor, a Uruguaiana, a Nilo Peçanha, até atravessar a Rio Branco. No conto, eles almoçam no restaurante Timpanas – hoje Alentejano.
Augusto prometeu que vão almoçar no Timpanas, na Rua São José, e o Velho namorou uma moça inesquecível que morava num prédio ao lado do restaurante, construído em mil novecentos e poucos. Ao chegarem em frente ao Timpanas, o Velho contempla os prédios antigos enfileirados até a esquina da Rua Rodrigo Silva. “Vai ser tudo demolido”, ele diz: “Vocês podem entrar, vou em seguida, peçam um arroz de ervilhas para mim”.
Realmente, foi tudo demolido. Quase não há sobrados mais ali. O Buraco do Lume, como é mais conhecida a Praça Mario Lago, em frente a esses sobrados, é movimentada como a rua, com barraquinhas de roupas ou comida. Os poucos que restaram abrigavam um restaurante, um KFC, um Mundo Verde, uma Pacheco.
Seguindo os rastros do andarilho Augusto Epifânio, que no fim do conto caminha em direção à estação das barcas, na Praça XV, é preciso passar pelo Beco dos Barbeiros (que hoje faz sucesso como Beco do Hambúrguer) e pela Igreja Nossa Senhora do Carmo até o Largo do Paço. Na Rua do Mercado, há ainda vários sobrados que contrastam com o antigo prédio da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Para alcançar a estação das barcas, atravessa-se um longo trecho a céu aberto, já sem a sombra do Viaduto da Perimetral, que não existe mais.
O arranha-céu “negro opaco” da Universidade Cândido Mendes está lá, na Rua da Assembleia 10, como descrito no conto. Próximo dali há uma banca de jornal. O atual dono da banca, Luis Henrique, trabalhou no sebo Livraria São José – o maior sebo da América Latina – por 33 anos. No entanto, como o aluguel ficou caro, o sebo se mudou para a Rua da Quitanda e passou a vender apenas livros jurídicos. Mas, como lembra Luis, não foi só a Livraria São José que fechou; muitos outros sebos também deixaram de existir.
– O aluguel é de cerca de R$ 10 mil e, vendendo livro usado, é muito complicado de conseguir esse dinheiro – explica.
A banca, que um dia foi disputada por vender exemplares da revista masculina Playboy, hoje sobrevive de bebidas, alimentos, adesivos, livros e revistas diversas: “Tem que diversificar, né?”.
Mais à frente trabalha o engraxate Jorge José Ávila, de 77 anos. Ele mora em Rio Bonito, a 80 quilômetros do Centro, e levanta às 4h da manhã todos os dias. Já faz 20 anos que tem essa rotina, por gostar dos clientes e amigos com quem trabalha.
– As pessoas me perguntam como é no Rio. Eu falo: É uma maravilha! Isso aqui é bom demais, as pessoas me tratam muito bem. A gente não vê nada aqui. Pode até acontecer assalto, mas aqui a gente não vê nada, é muito bom! – afirma o engraxate que, curiosamente, trabalha sob uma marquise de costas para a rua, tendo a visão da parede do prédio e das pessoas que passam por ali.
O autor e sua relação com o Rio
Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, Rubem Fonseca mudou-se para o Rio ainda criança com a família, e passaram a morar no Centro. Quando menino, brincava nas ruas do bairro e, durante a adolescência, trabalhou como entregador de correspondências – o que contribuiu na familiaridade com que descreve os percursos de Augusto no conto A arte de andar pelas ruas do Rio. Como conta a professora e pesquisadora Vera Lucia Follain de Figueiredo, autora do livro Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea, para escrever com ainda mais minúcia, revisitou as ruas do bairro, e até hoje cultiva andanças pela cidade.
* Colaboraram Leonardo Botelho e Eduarda Casoni.