Paula Laureano - aplicativo - Do Portal
27/11/2014No filme Cidade de Deus, de Fernando Meireles e Kátia Lung, o traficante Zé Pequeno já se envolvia com criminosos desde criança. Dadinho, como era conhecido, matou cruelmente pessoas inocentes logo cedo. Decerto existem muitas explicações para o comportamento do menino, mas uma é evidente: a falta de referência familiar o fazia pensar nos bandidos como heróis. O menino Dadinho é um exemplo claro de como a desestruturação familiar pode ter consequências sérias. Segundo o cientista político da PUC-Rio César Romero Jacob, um dos fatores que desestruturam uma família é o abandono dos maridos ou companheiros:
– Quando os maridos ou os companheiros deixam as famílias, as mulheres precisam trabalhar para sustentar a casa. Logo, os filhos ficam sem apoio, sem referência.
A mestre em políticas públicas Yvonne Bezerra de Mello completa ao dizer que, na falta de exemplo familiar, eles ficam expostos a modelos negativos:
– Se não têm o básico em casa, eles vão procurar em outro lugar. Se o modelo que eles têm dentro da favela onde moram é gente armada, esse vai ser o exemplo mais próximo. E eles têm os piores possíveis: a polícia corrupta e o bandido.
Para o sociólogo Marcelo Burgos, o caminho é melhorar a capacidade de atuar preventivamente, aperfeiçoar o sistema que articula escola, família e conselho tutelar. Praticamente, 100% das crianças entram na escola. Muitas vezes, é ali que os problemas começam, como a falta de respaldo familiar e dificuldades de comportamento.
– É nessa hora que o conselho tutelar tem que entrar, como uma instância de mediação que deve acionar outros atores, como o poder público, com a sua Secretaria de Assistência Social e a própria escola para lidar melhor com essa criança – explica Burgos.
Isso inclui mobilizar a sociedade de todas as maneiras: as universidades e as empresas, para que elas também se sintam responsáveis por esse processo de sociabilização das crianças. Outro ponto importante de prevenção tem a ver com a questão juvenil. É preciso fortalecer o sistema escolar. Recentemente, o cientista político Marcelo Burgos lançou o livro A escola e o mundo do aluno – estudos sobre a construção social do aluno e do papel institucional da escola, em que propõe melhorar a inserção desse jovem no mercado de trabalho, ampliar os espaços de acesso à cultura, pôr em prática o que determina o Estatuto da Juventude.
Em fevereiro de 2014, um adolescente foi agredido e preso a um poste no Aterro do Flamengo, na Zona Sul. O jovem já tinha três passagens pela polícia por roubo e por furto. A fundadora do Projeto Uerê, Yvonne de Mello Bezerra, socorreu o menor na ocasião.
Quando um menor comete um delito e é apreendido, a responsabilidade é do Estado. Ele deve ser levado a um sistema de internação socioeducativo. Para o sociólogo Marcelo Burgos, o sistema de internação é um muito severo, e está comprometido:
– Muitos delegados alegam: “Nós prendemos, mas os juízes soltam”. Mas os juízes sabem que as unidades de internação são verdadeiras fábricas de violência. São superlotados e não têm a estrutura necessária. O Sistema de Internação deveria ser um mecanismo de reinserção na sociedade por meio da socioeducação. A sociedade tem que abrir essa caixa-preta. A única resposta que parece surgir é uma imediatista, que é a redução da maioridade, medida cínica e superficial para uma sociedade e poder público que não se preocupa em cumprir o que está no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A maioria dos jovens volta às ruas em cerca de um ano e meio, sem ter passado por medidas efetivas de ressocialização. A cada seis meses esses menores são submetidos a avaliações que permitem evoluir do sistema fechado de internação ao semiaberto, e depois à liberdade assistida. Mas a falta de peritos qualificados faz ser baixa a qualidade dessas avaliações, tornando a progressão quase automática.
Burgos acrescenta que há muita desinformação e confusão a respeito do que é o Conselho Tutelar e como ele deve atuar:
– Deve-se trazer para o debate público o trabalho que está sendo feito, ou não, nos sistemas de internação. Quando o adolescente incorre em alguma infração, não é o Conselho Tutelar que deve atuar, pois é um mecanismo de prevenção.
Yvonne Bezerra de Mello (na foto com crianças assistidas pelo Projeto Uerê de assistência a vítimas da violência), vê uma deterioração dos padrões de comportamento da política brasileira repercutindo em todas as classes sociais, e aponta a escola como um eixo central no debate:
– Não temos uma orientação de conduta ética. A população fica de “saco cheio” de que nada funciona. Aí que está o problema: a naturalidade da violência! A violência está consumindo o Brasil. Eu não vejo uma solução se nós não formos uma sociedade mais ética, se as escolas não voltarem a ensinar.
Nos anos 60, as escolas brasileiras tinham no currículo escolar disciplinas como ética e cidadania. Na época da ditadura, elas viraram Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira, e continuaram até os anos 1990. Para os militares, essa medida foi uma forma de controle social. Mas Yvonne acredita que disciplinas como ética e cidadania deveriam voltar a ser ensinadas aos alunos.
– Nas escolas não se ensinam mais isso. Você tem uma política brasileira completamente corrupta e você quer que as crianças cresçam pensando o que? A escola no Brasil é puramente curricular. Isso é defasado. Temos que formar cidadãos!
Ela ressalta que os países desenvolvidos têm apenas um tipo de escola, a pública, enquanto no Brasil o ensino público é para a população mais pobre. Para Yvonne, este é um sintoma do problema:
– Isso é um erro. Acabamos criando crianças de maneiras diferentes em um mesmo país. Falta vontade política para mudar as escolas. Parece que existe um “projeto de Brasil” onde as pessoas são criadas “mais ou menos”, para que a população seja mal avisada e mal instruída.
Desinformação e violência
A desinformação, além de causar mal-entendidos na sociedade, também possibilita indiretamente a criminalidade. Hoje, muitas adolescentes de 13, 14 anos acabam grávidas sem querer, uma vez que há liberdade sexual, mas não há informação.
– Assim, essas meninas não conseguem continuar a estudar e, por isso, não conseguem empregos de qualidade; geram famílias desestruturadas e muitas vezes se abrem brechas para o caminho do crime – constata o cientista político César Romero Jacob. Para o professor e diretor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, o grau de informação não é uniforme:
– As novelas, por exemplo, deveriam levar informação, uma vez que a liberdade sexual já é praticada na tela. Onde há informação, há possibilidade de consciência.
O governo não é o único responsável por essa desinformação. Existem instituições que exercem um papel importante na conscientização da sociedade. A imprensa, os diferentes canais de comunicação e os partidos políticos deviam ser capazes de vocalizar essas coisas, na opinião de Marcelo Burgos.
– É meio ingênuo falar em cobrar do poder público. Temos que ser capazes de politizar este assunto antes de cobrar do governo – conclama Burgos, que pondera que há momentos de avanço na questão da criminalidade, e em outros há um recuo: – As pessoas não têm paciência de esperar, uma vez que as políticas públicas têm resultados em médio e longo prazo.
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