*Alexandre Carauta - aplicativo - Do Portal
07/07/2014Terminado o banquete de jogos, alguns com epílogos eletrizantes, e interações globalizadas, convém aproveitar o capital simbólico da Copa para pavimentar a modernização do nosso futebol. Uma tarefa bem mais complexa do que recuperar o apreço ao talento na formação de jogadores, times, seleções e a autoestima destroçada no banho da competência e do planejamento sobre a autossuficiência. Pitangas choradas, é hora de converter os dividendos do Mundial numa arrancada de estrutura e governança rumo não a reaver uma majestade ilusória, e sim revestir de qualidade o que se oferece por aqui ao torcedor – desde o espetáculo em si até conforto, segurança, mobilidade. Caso contrário, o fastio de partidas sofríveis e arquibancadas vazias se revelará um contraste inexorável à fartura da Copa. Significará, sobretudo, uma conivência com o atraso em relação às potências tradicionais e emergentes da bola. A Alemanha, cujo campeonato 2013/14 atraiu em torno de 43 mil espectadores por jogo (média três vezes superior à do Brasileirão) e faturou R$ 1,6 bilhão, guarda ensinamentos menos óbvios do que a compatibilidade, especialmente no meio-campo, entre marcação, virtuosismo e organização. “No campo dos negócios, ainda estamos abaixo do sofrível”, reconhece o ministro do Esporte, Aldo Rebelo.
Diferentemente de boa parte dos avanços prometidos para o Mundial, que patina entre o atraso e a bravata, o saneamento do futebol brasileiro pode redimir o “legado” do caminho subvertido por incompetências administrativas, caneladas políticas e brados oportunistas. Esperar da Copa ganhos em educação e saúde equivaleria a atribuir ao governo a propriedade de fazer a seleção canarinho reencontrar o viço. Os nossos R$ 26 bilhões consumidos na competição representam, por exemplo, menos de 10% do orçamento anual da educação; e, apesar dos R$ 300 bilhões destinados ao setor, só 27,5% das escolas públicas têm biblioteca. Sintoma de que o problema não está propriamente na grana, mas na gestão. O diagnóstico aplica-se ao futebol verde-amarelo. Impõe-se modernizá-lo. “O futebol hoje movimenta R$ 11 bilhões por ano e gera 370 mil empregos no Brasil. Mas movimentaria R$ 62 bilhões por ano e geraria 2 milhões de empregos, com a modernização dos estádios e ajustes no calendário e na governança dos clubes", projeta o consultor da ONU para a Copa Pedro Tengrouse, da FGV.
Em que pesem superfaturamentos, obras inacabadas, mal uso de dinheiro público, pode-se extrair da Copa desdobramentos proporcionais à natureza e ao apelo de uma mobilização capaz de mudar a rotina da Casa Branca. A oportunidade de melhorar a governança é um legado, mais que possível, obrigatório. Soma-se a desafios como garantir a sobrevivência dos estádios de Cuiabá, Manaus, Natal; sustentar os ganhos na economia e no turismo, que gerou 50 mil novos empregos, segundo a Confederação Nacional do Comércio; e fiscalizar o cumprimento dos benefícios atrelados aos desembolsos em infraestrutura, serviços, segurança e formação de mão de obra: 70% do gasto total de R$ 26 bilhões.
“As médias de público das ligas americana e chinesa já são maiores que a do nosso campeonato”, surpreende-se o ministro. Para virar esse jogo, é necessária uma coordenação de esforços públicos e privados alinhados à profissionalização integral do futebol. Salto esboçado nos anos 1990, quando novas safras de leis e gestores começaram a espanar o pó do amadorismo, e embalado pelo Estatuto do Torcedor, de 2003. Falta completar o processo, tradicionalmente abafado por táticas protecionistas, retrancas políticas e visões de negócio nanicas. A atmosfera, a estrutura e os aprendizados deixados pela Copa podem dar o empurrão que faltava.
Não há uma Costa Rica no conjunto de propostas para tornar o futebol verde-amarelo mais atraente a espectadores, clubes, investidores. A maior parte delas é prescrita há pelo menos uma década por craques na matéria: aperfeiçoar o calendário e o formato de competições; oferecer mais conveniência e segurança ao torcedor, o que, teoricamente, é favorecido pelos novos estádios; concluir a renegociação das dividas dos clubes com a Receita mediante a contrapartida da responsabilidade fiscal e da transparência; diversificar a receita dos clubes, da qual 65% vêm da verba de TV (R$ 1,6 bilhão da Globo neste ano) – uma concentração talvez comparável ao peso das commodities na balança comercial.
Nem o Neymar do marketing esportivo consegue empreender uma dessas ações sem equiparar a governança do futebol brasileiro à das grandes referências globais. Assim fez a Alemanha, na esteira da Copa de 2006. A faxina impulsionou o campeonato nacional e os principais clubes a um protagonismo internacional, extrapolado para os mercados asiático e latino-americano. Estratégia adotada também pelas grandes grifes de Espanha, Inglaterra e Itália. Consideradas as diferenças socioeconômicas e culturais, seria equivocado imaginar procedimentos e resultados siameses por aqui. Mas o princípio ativo da modernização é o mesmo: governança.
Neste rumo, a Lei de Responsabilidade Fiscal para o Esporte insinua-se um passo decisivo. Será votada no Congresso em agosto. Para os clubes, o projeto do deputado Otávio Leite (PSDB-RJ) representa a alforria da maratona judicial e financeira decorrente das dívidas milionárias com a Viúva, na casa de R$ 2,5 bilhões. Serão escalonadas, com a contrapartida de os dirigentes manterem as contas transparentes, honrarem os direitos trabalhistas e não gastarem mais do que têm. Para o governo, o acordo representa o pássaro de R$ 140 milhões anuais na mão. Para o futebol brasileiro, a chance de encaminhar o sonhado pulo do gato, tornar-se poderoso também fora do gramado. “Não é anistia”, frisa o secretário do Futebol e dos Direitos do Torcedor, Antonio Nascimento. “É o marco zero para a nova fase do nosso futebol”, anima-se.
Embora a construção de uma governança exemplar exija muitos outros tijolos, a responsabilidade fiscal é um cimento fundamental, indispensável a qualquer administração séria, profissional, no esporte e fora dele. Indispensável para produzir melhores espetáculos e investimentos. Torçamos para que, como acredita o secretário, a iniciativa se mantenha imune a concessões retrógadas e inaugure a passagem ao pódio da gestão responsável e inventiva – sem a qual se perpetuará o marasmo de torneios locais esvaziados e o sorriso do torcedor será não mais do que uma lembrança dos flagrantes incorporados ao show midiático da Copa. – ASD
* Mestre em Gestão Empresarial pela FGV-RJ, professor de Comunicação da PUC-Rio e apresentador do programa O Negócio é Esporte.
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