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Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2024


Esporte

Helal: "Brasil é a pátria em chuteiras cada vez menores"

Júlia Cople - aplicativo - Do Portal

05/06/2014

 Viviane Vieira

O Brasil ainda é a pátria de chuteiras, mas cada vez menores. O epíteto eternizado por Nelson Rodrigues – síntese do peso do futebol para a construção do sentimento nacionalista invocado desde o getulismo dos anos 1930 – soa deslocado, por ironia, justamente às vésperas do nosso segundo Mundial. Ao ficar em terceiro na Copa de 1938, na França, a seleção vestia o manequim da miscigenação positiva disseminada por Gilberto Freyre, da qual Mário Filho seria um dos embaixadores, ao defender o Maracanã como a prova contumaz do "Brasil realizador". O futebol mulato era único, irresistivelmente dionisíaco, imbatível, um símbolo da capacidade criativa do povo. Em 1958 e 1962, as conquistas enterravam o complexo de vira-latas e Pelé encarnava um país moderno, empreendedor. No tri em 1970 a seleção, impregnada de espírito cívico, servia de festejada camuflagem à marcação forte da ditadura. Em 1994 e 2002, sob ares democráticos, governos repetiram a tática da carona no sucesso da Canarinho, mas já não se via o mesmo encantamento e a mesma identificação patriótica. Se a selação se mantém forte no campo dos negócios (rendeu à sua proprietária formal, a Condereção Brasilleira de Futebol, quase meio bilhão de reais no ano passado), perdeu espaço no coração e nas mentes dos brasileiros – o que é bom, dizem alguns analistas, como o sociólogo Ronaldo Helal, autor do recém-lançado Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol (EDUERJ).

Com a fragmentação da identidade, a globalização, o declínio do Estado-nação e a desterritorialização do ídolo (dos 23 convocados para esta Copa, 17 jogam no exterior), hoje a torcida brasileira prioriza os times locais ao nacional, observa Helal, que participou do ciclo de cinema A bola, a PUC-Rio. Em entrevista ao Portal, o pesquisador da Uerj argumenta que o futebol-arte é a exceção, não a essência do esporte brasileiro, como propagavam Gilberto Freyre e Mário Filho. Ainda assim, ele reconhece dois tratamentos distintos do torcedor em relação ao futebol: com o time do coração, o qual permte "jogar feio, desde que ganhe", e com a seleção, da qual espera sempre uma atuação mítica, capaz de evidenciar características supostamente alinhadas à genética do país, como a ginga e a malandragem. Helal acredita que, sob a força do imaginário e da cultura do futebol, os protestos dirigidos à Copa tende a arrefecer e, quando a bola rolar, daqui a dez dias, "as pessoas vão se animar".

 Viviane Vieira Portal PUC-Rio: O Brasil da bola representa mesmo a identidade forjada lá nos anos 1930?

Ronaldo Helal: Os anos 1930 foram um momento internacionalista do Brasil, de consolidação do Estado-nação. Havia também, por outro lado, uma correspondência empírica nos jogadores, que eram realmente bons de bola, nas seleções de 1938 a 1970. Os epítetos “país do futebol” e “pátria em chuteiras”, de Nelson Rodrigues, eram muito importantes naquele momento. Mas, hoje em dia, vivemos uma situação de fragmentação da identidade, de globalização, de declínio do Estação-nação. Claro que hoje essa ideia prevalece, porque, em parte, ainda é a pátria em chuteiras. Mas eu diria que as chuteiras cada vez menores. Hoje os torcedores torcem muito mais para seus times do que para a seleção. Talvez um fator que possa recrudescer este nacionalismo é o fato de a Copa do Mundo ser disputada agora no Brasil.

Portal: Gilberto Freyre e Mário Filho foram os craques desta construção identitária do nosso futebol-arte e da seleção?

Helal: Gilberto Freyre escrevia uma coluna semanal no Diário de Pernambuco. Na Copa de 1938, dois dias antes da semifinal, escreveu o artigo “Futebol Mulato”, no qual ele, ainda tragado por “Casa Grande e Senzala”, vai dizer que o nosso futebol é diferente, é mestiço, dionisíaco, dançarino. Seríamos bailarinos da bola. Aí, em 1947, o Mário Filho escreve “O Negro no Futebol Brasileiro”, um livro que fala muito da valorização da cidade do Rio. Como a cidade foi crescendo, se formando, o envolvimento do rádio. O futebol está ali passando, e conta essa história também. Gilberto Freyre e Mário Filho foram os inventores desta simbologia do futebol brasileiro, de nós como inventores do futebol-arte.

Portal: O que mudou, no futebol e na relação do brasileiro com a seleção? Muitos consideram um divisor de águas a inesperada eliminação, na Copa de 1982, do Brasil de Zico, Júnior, Falcão, Sócrates, talvez a melhor seleção depois de 1970... 

Helal: Não sei se mudou por causa de 1982. Aquela geração teria que parar de jogar em algum momento mesmo. Você não ia ter o Zico, nem o Sócrates, ia esperar um tempo para ter o Romário e mais um tempo para ter o Neymar. O que teria mudado se aquela Seleção tivesse ganhado? A história do Zico, dos jogadores daquela seleção e a história do Brasil, porque teríamos mais um título. Só. Mas 1986, 1990, seria a mesma coisa. Tem mais a ver com o que eu falei de declínio de Estado-Nação, globalização e desterritorialização do ídolo. Inclusive, isso não é só brasileiro. Na Argentina, as pessoas também torcem mais para seus times locais.

Portal: Este traço, o futebol-arte, dionisíaco, torna-se mais propaganda, conveniente ao poder e aos negócios?

Helal: Isso de sermos os inventores do futebol-arte faz parte daqueles histórias que gostamos de ouvir sobre nós mesmos. As propagandas sempre vão bater nessa tecla. Quando algum outro time joga assim, dizem que está imitando o nosso estilo. Mas isso não é uma coisa forjada pelos governantes ou pelos poderosos. É uma ideia que vende, é história, é legal. Sei que é muito antipático eu falar isso, estou destruindo os sonhos mais prazerosos dos brasileiros...

Portal: O futebol-arte virou exceção?

Helal: Depois do Zico, quantos jogadores surgiram no nível dele? No consenso do jornalismo esportivo, se chegarmos a dez, é muito. Romário, os dois Ronaldos e Neymar. De boa vontade, Rivaldo e Careca. Um Neymar é nossa essência ou nossa exceção? Quando o Estádio Mané Garrincha, em Brasília, foi inaugurado, o locutor Luís Roberto comentou: “Que nome mais propício, Mané Garrincha, que simboliza o nosso futebol”. Aí eu fiquei pensando quantos jogadores brasileiros atingiram esse nível depois que Garrincha parou. Tem uma questão de inércia e certa soberba brasileira de achar que somos os inventores deste estilo e que todo mundo aqui joga desta maneira. Isso é bastante polêmico. Mas o futebol-arte não é a nossa essência, é a nossa exceção.

Portal: Os cinco títulos mundiais tem pouco a ver com a identidade do futebol dionisíaco construída desde os anos 1930?

Helal: Tem a ver, sim. Se essa fundação simbólica é exitosa, é porque, do lado empírico, a gente teve jogadores excepcionais, de Leônidas da Silva até Pelé e Garrincha. No Brasil, por termos mais jogadores federados, fomos pentacampeões mundiais. Mas, se houvesse a Copa Tabajara, dos pernas de pau, também seríamos campeões. Temos numa ponta os melhores e, na outra, os piores. Os jogadores moldam um estilo. Não há como o técnico do Barcelona fazer o Flamengo jogar como o Barcelona. Não vai fazer. Eles jogam um futebol bem treinado, mas têm qualidade para fazer aquilo. O Flamengo do Zico tinha qualidade para jogar daquela maneira. Durante um tempo, mesmo dez anos depois de aquele Flamengo do Zico não existir mais, os jogadores rubro-negros começavam a tocar a bola e os comentaristas diziam “ah, o Flamengo com seu velho estilo de jogo”. Não, aquele estilo morreu, era o estilo daquele time bem treinado e com jogadores talentosos. Não era uma coisa do Flamengo, era daquele time. Precisamos refletir sobre o imaginário do futebol, sobre as construções simbólicas que o Mário Filho e Gilberto Freyre ajudaram a construir.

Portal: Por que o torcedor admite que o time do coração jogue "feio", desde que vença, mas tradicionalmente cobra da seleção um rendimento quase mítico?

Helal: A própria imprensa esportiva, quando trata dos campeões locais, fala de regularidade, de time mais disciplinado, muda o instrumento de brasilidade para falar da equipe campeã. Quando a seleção está presente, ainda é a pátria de chuteiras nesse sentido. O torcedor quer algo que acha ter a ver com o Brasil. Um pouco de ginga, o que é difícil de definir. Um pouco dessa malandragem que ninguém gosta de definir. A gente acha tipicamente brasileiro um drible do Neymar que deixa o adversário no chão. Quando a seleção foi campeã em 1994, a imprensa criticou e parte da torcida não gostou. Mas qualquer time brasileiro que ganhar Libertadores ou a Copa do Brasil jogando daquela maneira vai ser celebrado. É isso que importa nos torneios locais. Hoje se torce mais para as equipes locais, e os afetos influenciam os nossos julgamentos, o nosso modo de torcer.

Portal: Como assim?

Helal: Vou dar alguns exemplos. Se você me perguntar quem foi o melhor 10 depois que Pelé parou de jogar, claro que eu vou apontar o Zico. Ele fez tudo pelo Flamengo, então ele é meu ídolo. Melhor que Maradona, que não jogou, não fez gol pelo rubro-negro. Mas, se você puder colocar no computador trejeitos do Zico, do Zidane, do Platini e me perguntar qual é o Zico, eu vou ficar confuso, porque todos faziam jogadas maravilhosas. Quem torce para a seleção brasileira é minha esposa, por exemplo, que não gosta de futebol. Em 2006, eu estava na Argentina e vi um jogo entre Brasil e Japão. Não consegui não torcer para o Japão, vendo o Zico e o Edu (ex-jogador, irmão de Zico) do outro lado. O Japão fez 1 a 0, e eu comecei a pular. Meu filho, que na época tinha 7 anos, começou a comemorar também. Minha mulher chegou achando que tinha sido gol do Brasil e brigou comigo por influenciar o menino contra a nossa seleção. Em 2010, idem. A cada gol do Brasil, ela ia para a janela festejar. Ela me cobrou por que havia ficado sentado, mas é como ela fica nos jogos do Flamengo. O que ela sente pela Seleção é o que eu sinto pelo Flamengo. Aí o Brasil fez um gol, eu pulei e ela disse “Até que enfim”. Mas tinha sido gol do Juan, ex-jogador no Flamengo. Os afetos influenciam o nosso modo de torcer.

Portal: Mudando de assunto, a ideia de democracia racial no futebol, que vem desde Leônidas e se cristaliza com Pelé, corresponde à nossa história ou é folclore?

Helal: Curiosamente, em 1947, Mário Filho termina a edição de “O negro no futebol brasileiro” dizendo que o Brasil vivia uma democracia racial. Quando ele escreve a segunda edição, de 1964, ele acrescenta os capítulos “A aprovação do preto” e “A vez do preto”. Para poder dar sentido à saga do negro no futebol brasileiro, ele termina dizendo que a democracia racial era incompleta. Claro que a amizade dele com Freyre ajudou muito, porque aqui, na década de 1950, as Nações Unidas patrocinavam pesquisas para entender as relações raciais, partindo do pressuposto “Por que não havia segregação racial no Brasil como nos Estados Unidos e na África do Sul?” Descobriu-se, na realidade, que existia racismo, sim. Mas era um racismo diferente, não era segregacionista. Claro, Mário Filho, inteligente, tomou ciência dessas pesquisas e corrigiu a próxima edição. Agora, se é fonte histórica ou não... Para mim, a história é sempre filtrada pelo olhar do observador. A gente vive de símbolos. Se a gente vive alguma coisa como sendo real, essa coisa acaba real em suas consequências.

Portal: O futebol é o momento em que a igualdade se manifesta de forma mais plena, pelo sucesso vir do desempenho e não da cor?

Helal: Os esportes e as artes sempre foram campos onde negros e brancos viveram de forma pacífica, mais do que em outras esferas da vida social brasileira e mundial, mesmo, por exemplo, na África do Sul do apartheid (regime de segregação): o time de rugby sul-africano, contemplado pelo filme Invictus, tinha um negro. Mas ninguém nasce preconceituoso, é algo que se aprende. Você aprende a odiar assim como você aprende a amar. A discriminação se combate com lei e o preconceito, com educação. Como os atletas convivem desde garotos com negros e brancos, sempre foi uma área muito mais permeável para essa relação.

Portal: Os casos de racismo, agora com mais evidência, representam a não aceitação dessa igualdade?

Helal: O que está acontecendo agora é que, na Europa, não estavam acostumados com esse contingente imigratório, não só de atletas, mas de cidadãos comuns vindos do norte da África e do Brasil. Aí instala-se esse racismo abominável. Mas temos de saber até que ponto, ainda que seja condenável, a pessoa está fazendo aquilo muito mais para desestabilizar o adversário. Tem que saber diferenciar. Quando uma torcida toda aqui no Rio canta “Ela ela ela, silêncio na favela”, você vê que o rubro-negro não fica necessariamente ofendido. Até que o Flamengo faz um gol e a torcida grita: “Ela ela ela, festa na favela”. Do outro lado, também há pessoas de comunidades cantando essa música. Temos que aprender a contextualizar.

Portal: Na sua opinião, o episódio do Maracanazo, quando o Brasil perdeu a Copa de 1950 em casa para o Uruguai, recrudesceu o racismo, como aponta o documentário Mário Filho, o criador de multidões, de Oscar Maron Filho?

Helal: Isso é muito difícil de afirmar categoricamente, porque geralmente os culpados são os jogadores da defesa. No caso, Bigode, Juvenal, os zagueiros, e Barbosa, o goleiro. A questão do Barbosa é muito curiosa. Ele costumava fazer muito sucesso pelos clubes brasileiros até se aposentar. A culpa do Barbosa é construída quando o Brasil é bicampeão, mesmo porque, até aquele momento, a melhor colocação do Brasil era o vice-campeonato. Quando o Brasil ganha duas Copas e ele se aposenta, como todo jogador quer ser lembrado, ele quer ser esquecido, porque a memória dele é de responsável por uma derrota. Mas a potência futebolística deste continente era de fato o Uruguai, porque ganhou em 1924 as Olimpíadas, ganhou 1928 e ganhou a Copa de 1930.

Portal: Por falar em Maracanã, a pátria em chuteiras cada vez menores, à qual o senhor se referiu mais cedo, tem relação com as reformas do Estádio Mário Filho?

Helal: Eu era favorável a deixar o Maracanã como estava, porque ele já havia sofrido uma reforma, e fazer um estádio com as medidas da Fifa em outro lugar. Até podia ser o Engenhão. Sem saudosismo, o Maracanã perdeu a grandiosidade. Ganhou no aspecto intimista, talvez no aspecto local. O Estádio Mário Filho era grandioso, mas era neutro. As arquibancadas e a geral ficavam longe do campo. Não é que vá ganhar o jogo, mas agora é um caldeirão. Claro que as gerações que estão frequentando o Maracanã agora, que não foram antes e não perceberam essa mudança, vão criar uma relação afetiva com o estádio atual. A sociedade é capaz de sacralizar elementos mundanos, como disse Émile Durkheim. Meu filho de 17 anos não entende a emoção que eu tinha ao entrar no anel do Maracanã. Isso se perdeu. É confortável, é legal, é bacana, mas é outro estádio.

Portal: Como o senhor avalia esse desânimo em relação à Copa? O senhor acredita, como o governo, que, quando a bola rolar, o Brasil será coberto pelo espírito da competição?

Helal: Não tem mais aquelas ruas pintadas como antigamente, realmente. Talvez seja resultado desse declínio do Estado-nação, dos jogadores brasileiros virem de times estrangeiros. Mas acho que, na hora em que a bola começar a rolar, as pessoas vão se animar, vão torcer, vão receber bem os turistas. Claro que manifestações vão ocorrer, mas há as espontâneas e as aparelhadas, até para tentar desestabilizar o governo. Ano eleitoral sempre é assim. Mas o resultado de uma Copa nunca afetou o voto, como todo mundo acha. Ninguém vota pensando na seleção. Nos resultados mais recentes, em 1998 o Brasil perdeu para a França (3 a 0) e Fernando Henrique Cardoso ganhou no primeiro turno. Em 2002, o Brasil foi pentacampeão e quem ganhou foi a oposição, o Lula.  Em 2006 e 2010, o Brasil é eliminado e o governo de situação continua no poder. Um dia isso pode coincidir, mas vai ser só uma coincidência. O que pode afetar uma eleição é a organização, o transporte, a violência durante a competição.