Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, A grande beleza, de Paolo Sorrentino continua em cartaz e encantando o público. Em grande parte, o charme do filme está na sua forma estética sustentada nas belas paisagens e obras de arte da Roma clássica. A trajetória de seu personagem central, Jep Gambardella, magnificamente interpretado por Toni Servillo, faz lembrar o Marcello (Mastroiani) de La dolce vita, de Federico Fellini. O esquema narrativo é mais ou menos o mesmo. Um jornalista famoso da crônica mundana perambula pelas festas e lugares da moda de uma Roma efervescente no período da reconstrução do pós-guerra. O ambiente agora é outro e é dado logo nas primeiras cenas do filme. De um lado a invasão do turismo oriental apresentado sob um fundo musical polifônico e de outro as festas psicodélicas pós-modernas com suas luzes, batidas, ritmos, danças, sensualidades e consumo de drogas. Sorrentino entra de cabeça nesse ambiente contemporâneo e busca extrair dele um sentimento que o configura como algo transitório e de um vazio existencial evidente. Nisto se aproxima de Fellini. No entanto, ao percorrer os espaços urbanos e os interiores dos palácios e museus acentua o legado de um tempo que está fadado ao museu imaginário, como André Malreaux definiu a herança cultural.
Sorrentino sublinha, como uma espécie de leitmotiv, os restos de um mundo que está para ser admirado, contemplado e repensado num contexto humano de inovações tecnológicas que não apagam os vestígios da beleza clássica. Deste ponto de vista, o seu filme respeita o passado e questiona o presente. Seus valores apontam ainda para uma certa esperança, como aconteceu com o filme de Fellini na sua cena final. Sorrentino, numa perspectiva da estética contemporânea, praticamente termina como La dolce Vita. A jovem donzela, num ato de entrega não consumado, por algo que impede o encontro, deixa no ar a possibilidade da criação: o livro que o jornalista estava escrevendo.
Há ainda um capítulo importante do filme que marca a critica ao mundo católico conservador. Os rituais e o modo como se desenrolam as ações em que estão presentes figuras do campo religioso são tratados por Sorrentino com ironia. Exceção à figura da santa, uma alusão à Madre Teresa da Calcutá, que é apresentada com dignidade e respeito. A grande beleza conjuga passado e presente sem eliminações. Mostra que o particular está no geral e vice e versa. O vazio será sempre preenchido. Os espaços se reciclam assim como os valores que nos impelem a viver. É sutil e ao mesmo tempo esclarecedor dos novos tempos a cena em que o representante da alta moda, vizinho de Gambardella, é preso e lhe diz que é ele que move a economia do país. Sorrentino faz questão de colocar no seu filme esse micro recado de que a globalização mistura valores financeiros, sem definir a sua origem, como um sinal dos tempos. Entre a ironia, a forma direta de expressão e um rigor estético impressionante, A grande beleza marca um momento significativo do cinema contemporâneo.
* Miguel Pereira – Professor da PUC-Rio e crítico de cinema
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