André Santos* - Da sala de aula
24/02/2014Quando a arquiteta e urbanista Lotta de Macedo Soares convenceu o amigo Carlos Lacerda, então prefeito do Rio de Janeiro, a mudar o projeto do Aterro do Flamengo – que inicialmente seria apenas um espaço voltado para o trânsito entre o Centro e a Zona Sul – para a construção de uma área inspirada no Central Park de Nova York, marcou-se o nascimento do Parque do Flamengo. Inaugurado há 48 anos, tendo Lotta, Roberto Burle Marx e Affonso Reidy como principais responsáveis pelo projeto, o parque, referência de espaço para lazer dos cariocas, passa por uma série de desafios, evidenciados pela rotina de assaltos e pela ação de grupos de “justiceiros” como o que, no início do mês, atacou um adolescente acusado de roubo na Avenida Rui Barbosa. O jovem foi espancado, esfaqueado na orelha e preso nu a um poste por uma trava de bicicleta por três homens. (Leia também: Justiceiros refletem herança conservadora do país e descrédito nas instituições, observam analistas)
Durante a semana, o parque costuma receber mais pessoas nas primeiras horas da manhã e esvazia no horário comercial, quando a maioria está trabalhando ou estudando. No fim do dia, já está às moscas. Devido à falta de manutenção dos postes de luz, a iluminação precária atrai assaltantes. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio, a média mensal de assaltos a pedestres nos bairros do Flamengo, Glória, Catete, Laranjeiras e Cosme Velho mais que dobrou entre outubro de 2012 para a mesma época de 2013, de 82 para 186 casos.
– A falta de segurança no Aterro não é novidade; o problema é que ela vem crescendo muito. Gosto muito de caminhar, me exercitar e levar meu filho de 10 anos para brincar no parque. Mas a insegurança limita isso. De dia é tranquilo, mas a partir das 16h, 17h, quando começa a escurecer, não tem a menor condição: a área fica deserta. Já fui assaltada, e quase fui uma segunda vez. É perigoso – diz Luciana Kufinnu, de 38 anos, moradora do Flamengo há 20.
O problema também atinge as pessoas que usam o Aterro para trabalhar. Antônio Costa, personal trainer de uma academia de ginástica do Catete, costumava fazer acompanhamento particular no Parque do Flamengo para complementar a renda mensal. Desistiu por causa do clima hostil que o cercava:
– O Aterro é ótimo para fazer trabalhos físicos ao ar livre. Tem uma ciclovia grande e durante a semana não é tão cheio. Porém, às vezes vinham mendigos, menores de rua... Isso tirava a minha concentração e a dos meus clientes. É triste essa realidade, e pior ainda é sentir que as autoridades não se mexem para mudar isso. No máximo armam as famosas maquiagens. Durante a Rio+20 e a Copa das Confederações, com a imprensa mundial voltada para cá, o Parque estava cheio de policiais. Depois que esses eventos acabam, só de vez em quando vejo uma viatura fazendo ronda.
No caso específico do Aterro, a Polícia Militar afirma que aumentará o contingente na área, triplicando o número de policiais que fazem a ronda no fim da tarde e à noite. Já a Rio Luz informou que já trabalha na manutenção dos postes de iluminação.
Complexo de lazer venceu projeto de via expressa
Além da violência, lamenta-se o abandono estrutural e a descaracterização paisagística. Originalmente, a construção do Aterro do Flamengo era parte de uma série de iniciativas com o objetivo de melhorar o fluxo de veículos na cidade, que sofria com a expansão demográfica na década de 1950. O projeto era constituído por quatro pistas para desafogar o trânsito e um muro para impedir que o mar invadisse a área urbana em caso de ressaca. Lotta percebeu que a área poderia receber um imenso jardim que servisse como ponto de lazer e turismo para os cariocas. Conseguiu a permissão de Carlos Lacerda e comandou o plano junto do paisagista Burle Marx e do urbanista Affonso Reidy.
Graças à ideia da arquiteta, o Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, seu nome oficial, é um espaço onde os automóveis são coadjuvantes em meio à área verde de 1,2 milhão de metros quadrados, que engloba quadras poliesportivas, campos de futebol, ciclovia, pista de skate, restaurante, marina, além de mais de 10 mil árvores de 190 espécies diferentes.
Território de skatistas e “peladeiros” satisfeitos
Nem tudo, porém, é motivo de reclamação. As instalações esportivas, como a pista de skate e os campos de futebol, fazem muito sucesso. A primeira, que dificilmente fica vazia, está passando por reformas e será reinaugurada ainda no início deste ano. Ela terá um novo formato projetado pela Rio Ramp Design, empresa que vem trabalhando na construção de rampas de skate no Rio de Janeiro.
Os campos de futebol, ideia de Affonso Reidy, caíram nas graças dos cariocas que não tinham espaço público desse porte para jogar uma “pelada” na cidade antes da inauguração do Parque do Flamengo. Originalmente de terra batida, os campos passaram a ser de grama sintética na década de 1990, o que tornou maior a responsabilidade da Prefeitura em cuidar da manutenção. Nos anos 2000, andaram abandonados, mas desde 2010 eles vêm sendo constantemente reformados, um deles em parceria com a Nike. À noite é que eles são mais utilizados, em contraste com o resto do Aterro.
– Como são públicos, gratuitos, os campos do Aterro são muito frequentados por pessoas das classes mais baixas. Tem muito porteiro, garçom e cozinheiro que sai do trabalho à noite e mesmo de madrugada para jogar bola. Essa parte do parque, mesmo com alguns mendigos dormindo nos cantos das arquibancadas, é muito tranquila. Nunca vi roubo nem assalto aqui. A volta para casa é que é mais complicada, porque saindo dessa área não tem ninguém na rua, é muito escuro, pela falta de luz e de policiamento – diz Renato Rodrigues, engenheiro civil que joga futebol no Aterro toda terça-feira à noite.
Sediar grandes eventos também ajuda o parque a se manter valorizado como ambiente de lazer. O local é o ponto final da Meia Maratona do Rio, entre outras dezenas de eventos esportivos. A Nike e a Adidas também promovem corridas de asfalto no local.
Ao mesmo tempo, eventos que atraiam público muito grande se tornaram raros no Aterro, a pedido de moradores do entorno do Aterro, a fim de não danificar o parque.
Mudanças na paisagem natural
Outro aspecto a constituição paisagística dos jardins. Ao longo dos 48 anos de vida do parque, mais de mil árvores morreram, e o replantio não foi feito de acordo com o projeto original de Roberto Burle Marx. Segundo o arquiteto e urbanista Mauro César de Oliveira, doutor e professor da UFRJ, a manutenção integral de uma área tão grande é complicada, mas os órgãos responsáveis precisam se empenhar ao máximo.
– O Aterro tem uma área de 1,2 milhão de metros quadrados e quase 50 anos de existência. É quase impossível manter o jardim da mesma forma de quando foi inaugurado, caso da cor da grama e de algumas plantações em mosaico. Porém, há questões que pedem atenção. No lugar das árvores que morreram, não se pode replantar qualquer outra. Há um estudo para isso, as árvores são adequadas a determinados solos.
Mauro destaca que zelar pela natureza não é atribuição apenas do poder público:
– Não adianta as pessoas jogarem lixo em qualquer lugar, maltratar os jardins e depois reclamar que está tudo danificado. Quem usufrui do espaço também tem que ajudar a conservá-lo.
* Reportagem produzida para o Laboratório de Jornalismo.