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Rio de Janeiro, 3 de novembro de 2024


País

Justiceiros refletem herança conservadora, dizem analistas

Júlia Cople - aplicativo - Do Portal

21/02/2014

 Arte: Viviane Vieira

Quando a filóloga Yvonne Bezerra de Mello – de atuação destacada na denúncia da chacina da Candelária, em 1993 – publicou a foto do jovem negro de 15 anos desnudo, espancado e acorrentado ao poste por um grupo autodenominado Justiceiros do Flamengo, na noite de 31 de janeiro, esquentaria-se o debate sobre segurança pública, direitos humanos e democracia social nos jornais e nas redes sociais. Indicador de retóricas e atos radicais que, sob verniz ideológico ou político-partidário, não raramente têm se infiltrado em protestos legítimos, o episódio decorre, segundo analistas, da herança escravocrata e conservadora brasileira e do descrédito nas instituições, bradado nas ruas desde junho passado. O recrudescimento da “justiça com as próprias mãos” expõe, para grande parte dos especialistas, as marcas de uma radicalização dos discursos, tendência congruente à desconexão observada entre sociedade e representação política. Descrente de um Estado que deveria proteger, o cidadão recorre ao medo e à raiva – sentimentos que despontam para manifestações de intolerância e alertam para a gestação do fascismo, afirmam alguns.

Para o professor João Ricardo Dornelles, coordenador-geral do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio, "a realidade contemporânea apresenta sinais bem definidos de conservadorismo e regressão em relação às conquistas históricas de direitos e cidadania". No caso brasileiro, diz ele, o cenário apresenta um legado histórico de autoritarismo, elitismo, exclusão e apartação social:

– As práticas de “justiça com as próprias mãos”, do “pelourinho”, dos castigos públicos sempre estiveram presentes, especialmente em relação às classes pobres. O discurso e a prática dos chamados justiceiros são expressões de setores cada vez mais conservadores, setores de classes média e alta que identificam perigo, não querem conviver com gente da periferia.

 Arquivo Portal Convém notar notar, acrescenta o professor de Ciências Sociais da PUC-Rio Paulo Duran (foto), a existência de autoridades públicas com discursos conservadores contrários a mendigos e assaltantes, por exemplo. Chama a atenção do especialista a retórica dessas figuras políticas, que ganha espectro maior por serem representantes de uma parcela dos votantes brasileiros.

A psicanalista e professora de Psicologia da PUC-Rio Júnia Vilhena observa a perpetuação da tradição escravocrata em uma sociedade “tragicamente conservadora” que usa máscaras de liberalismo. Nessa cultura que desacredita o outro, argumenta a especialista, faz-se “justiça” com o rapaz vulnerável – o pobre, o negro –, visto como inferior, desqualificado, como não-sujeito, no termo da psicanálise. O historiador Leonardo Pereira, também da PUC-Rio, não vê, assim como Júnia, uma guinada conservadora, mas sim a "progressiva visibilidade das contradições sociais":

– As concepções que fazem negros e pobres, especialmente negros pobres, serem vistos como “classes perigosas” estão presentes na sociedade brasileira desde o início da República. São herança da escravização ainda recente, em termos históricos – explica – Mas, se acompanhamos a força da velha voz do preconceito, hoje também vemos indignação crescente contra esses atos. Antes amparada silenciosamente pelas elites brasileiras, essa barbárie encontra reação de parcelas amplas da sociedade.

 Arquivo Portal A questão racial acaba presente mesmo que não esteja no plano da consciência. Assim reflete o professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Marcelo Burgos (foto). Os justiceiros não dirão que têm problemas com os negros, não no plano da motivação individual consciente, diz, mas no plano da situação:

– No Brasil, é difícil falar da questão racial porque está sempre presente, mesmo que o impulso não seja deliberadamente racista. Não acho que esses rapazes estejam saindo para bater em negros porque são negros. Mas, na medida em que se colocam no papel de justiceiros, na hora da interação, percebem a ameaça nesse segmento marginalizado, porque a sociedade tem dificuldade de se livrar desse preconceito. É inevitável associar a imagem do jovem negro acorrentado com os escravos castigados.

Para o professor de Ciências Sociais da UFRJ Bruno Cardoso, a ligação dos atos dos justiceiros com o racismo advém da desigualdade não apenas socioeconômica, mas que se estende às oportunidades. A essa disparidade, soma-se a vitimização constante das classes média e alta, decorrente da "visão equivocada" de que o criminoso tem a vida fácil no Brasil:

– As parcelas mais favorecidas da sociedade pensam que o criminoso não sofre o suficiente e, por isso, continua cometendo crimes, o que é falso. Sabemos, na verdade, que, quando está nas mãos da polícia, ele é agredido, e, quando vai para o presídio, fica em condições desumanas.  Essa própria ideia de que a classe média vive no inferno e os bandidos na vida boa já é uma situação que pressupõe completo desconhecimento sobre o que está acontecendo.

Rolezinhos são traços da polarização social, avalia professor

A conquista de direitos das parcelas desprivilegiadas leva a uma polarização da sociedade, explica Dornelles, e, quando esses segmentos sociais obtêm avanços, há reação contrária daqueles que temem perda de privilégios, de mudança do status quo. Quando resolveram fazer estação do metrô no bairro de Higienópolis, versão paulista do Leblon, exemplifica o professor, os moradores locais se revoltaram, porque, segundo eles, traria “gente estranha” e perigo para a região. Cardoso põe os rolezinhos como expressão da mesma contradição:

– Os rolezinhos criaram pavor pela possibilidade de os shoppings serem invadidos por jovens de classe baixa, independente se qualquer crime fosse cometido ou não – observa – Esse medo desestabilizou o sistema já claudicante de segurança pública no Rio. Como o policial trabalha 24 horas e folga 72, quando o colocaram na manifestação ou no shopping sem que ele estivesse destacado para isso, desestruturaram a lógica de policiamento, muitas vezes de forma desnecessária.

 Tania Rêgo / Agência Brasil O "despreparo da polícia" e a percepção de incapacidade ou negligência na defesa do cidadãos são os argumentos usados pelos justiceiros para tomarem a frente da perseguição e punição aos supostos criminosos. Pereira não crê, porém, que estas sejam a verdadeira origem da violência da contra aqueles nos quais os justiceiros enxergam perigo. Para o professor, tal comportamento é fruto da tradição senhorial de violência privada, de opressão pela força, de uma sociedade que "nunca equacionou sua desigualdade". Ainda assim, apontam analistas, o descrédito em relação às instituições habita as raízes de iniciativas de “justiça com as próprias mãos”. Cardoso percebe "uma mobilização anarquista como não se via desde o início do século XX":

– Essa desconfiança não é nova, e vem crescendo faz tempo, pela direita e pela esquerda. Pela direita, é algo muito relacionado com a própria ideia de uma sociedade liberal, com Estado mínimo, sem interferência na educação, na saúde, na vida das pessoas. Já pela esquerda, tem a ver com as alianças feitas com segmentos políticos de atuação diferente daquela imaginada pelos militantes.

Crise de representação tem origens complexas

Duran credita a violência pela violência – que denota um “nivelamento por baixo”, segundo ele – à desconfiança generalizada, à crise das instituições, crescente em virtude de vários fatores, como a "desigualdade abissal histórica". Já Dornelles diz não se tratar de descrédito, e sim de uma “intensa luta político-ideológica que se expressa em práticas diferentes no seio da sociedade”:

– Não existe uma única origem para este quadro. A crise de representação expressa um conjunto complexo de fatores que tem origem na nossa história, nos legados de barbárie do passado, na falta de políticas de memória para que não se repitam as permanentes violências aos direitos humanos.

Manifestantes radicais e justiceiros têm na falta de representação um pano de fundo comum 

O fato de os justiceiros estabelecerem uma técnica de organização, mesmo sem arma de fogo, denuncia uma fronteira “sempre frágil”, na visão de Burgos, associada à (des)confiança nas instituições. Um limite que expressa, para o especialista, algo maior: falta de compromisso e crença nos fundamentos da ordem democrática brasileira. Um hiato, afirma ele, entre o sistema de participação e representação política e as pretensões cultivadas, sobretudo, pelos jovens:

– Faço uma conexão entre os justiceiros e os mais exaltados das manifestações. Não para estigmatizar o jovem, mas para pensar saídas que aumentem os mecanismos de canalizar seus anseios e as vias de diálogo. A praça não foi capaz de construir ponte de comunicação com o sistema político – sintetiza – A camada mais periférica, não no sentido de pobreza, mas de dissonância do entendimento do espaço público, da participação, recorre à posição radical. Não podemos perder a valorização das instituições, a conquista do direito, dos direitos. Não é mera coincidência que ocorram simultaneamente. O pano de fundo é comum – avalia o professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.

O sistema político, segundo o especialista, é o grande gargalo. O radicalismo seria uma expressão de quem quer entrar na política, embora não seja politizado nem ideologizado. Os justiceiros, porém, diz o professor, ao condenarem a inércia da polícia e negarem as instituições democráticas com ações de próprio punho, passam ao largo do sistema.

Mais que uma guinada conservadora, Cardoso percebe um cenário cada vez mais intenso de radicalização de opiniões. Ainda que se ouça hoje mais o movimento negro, exemplifica, que identifica racismo na proibição do rolezinho e na agressão ao jovem no Flamengo, "há as pessoas que se revoltam, que acham besteira e dizem vivermos numa democracia racial". Dentro dos grupos conservadores e contestadores, completa, há os radicais ganhando "mais voz e visibilidade do que estávamos acostumados". Tendência que se espalha pelo mundo virtual:

– Assim que o jovem amarrado no Flamengo teve a foto publicada, logo se viu a radicalização de opiniões na rede, muito porque, nessas discussões, você dá visibilidade para pessoas que não teriam visibilidade. Elas têm possibilidade de falar e espalhar visões exacerbadas. Na rede, há também raiva momentânea do assunto. Transforma-se numa polêmica da internet – avalia Cardoso.

O clima de conservadorismo, a realidade de desqualificação da prática política, que expressa o exercício da cidadania, levam Dornelles a qualificar o ambiente de hoje com o que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos chamou de “fascismo social”. A tendência de radicalismo, a intolerância e os atos de “justiça com as próprias mãos” representam um alerta, conforme o especialista, para a gestação do ovo da serpente, que coloca em risco conquistas históricas de direitos:

– Pautas regressivas, antidemocráticas, são divulgadas constantemente, e a demanda por políticas repressivas e seletivas está na ordem no dia. Os atos dos justiceiros são a explicitação do desejo submerso de um setor da sociedade. Essa violência explícita se relaciona com outras formas de intolerância mais camufladas.

Rompimento com instituições de defesa à liberdade: aproximação ao fascismo

Se tomada a Segunda Guerra Mundial como parâmetro de comparação, Cardoso hesita em estabelecer as ações desses jovens do Flamengo como fascismo. Para Maria Helena Zamora, professora de Psicologia da PUC-Rio, embora não estejam atrelados a partidos políticos, podem ser comparados aos fascistas por pregarem a exclusão da vida pública ou até da vida do “diferente”.

Uma das características do fascismo é a ruptura com todas as instituições associadas com a defesa às liberdades. É nesse ponto, do rompimento com as estruturas intermediárias, que Burgos liga os justiceiros aos fascistas:

– São jovens que não reconhecem as instituições. São de direita porque tendem a procurar respostas que criminalizam um outro, um diferente do que seria a classe média típica. Há relatos de que não atuam só em casos de furto e assaltos, e isso lembra muito o fascismo. 

Na visão de Júnia, tais comportamentos refletem a cultura de intolerância, do descrédito, das desqualificação às minorias locais. O que mais assusta a psicanalista é "a forma como os pais vêm educando os filhos, com a naturalização da violência no lugar das leis e dos valores". A naturalização da violência e das práticas de barbárie resultam, para Dornelles, da intensificação do estranhamento em relação aos que são “diferentes”, em uma sociedade que não assume as suas contradições:

– Essa dissonância implica o aumento da violência generalizada, o clima de confronto permanente, a reprodução contínua das práticas de exceção, o arbítrio e as cenas como a do jovem do Flamengo, que remontam à Idade Média.

 Tania Rêgo / Agência Brasil A médio e a longo prazos, uma das vacinas contra a radicalização e as práticas de exceção associa-se, sugere o especialista, a políticas públicas sociais de redistribuição de riqueza e "integração das legiões de excluídos aos benefícios de bem-estar social da sociedade moderna". A curto prazo, propõe a participação social nas políticas de segurança pública e a desmilitarização das polícias. Duran sugere também repensar a política das Unidades de Polícia Pacificadora:

– É preciso que a UPP se envolva com caráter social, não só segurança pública. Uma política intersetorial, que congregue trabalho, cultura, esporte, lazer. Em termos de planejamento estratégico mais participativo, isso gera confluência virtuosa de fatores para a relação policial-morador. O Estado não é só concessório, os indivíduos devem ser envolvidos. É uma construção.

Individualismo, falta de empatia, desprezo aos direitos humanos: o caldo dos justiceiros

Ao analisar o comportamento dos justiceiros, Júnia também reconhece "individualismo e falta de empatia", marcas da cultura contemporânea em que, segundo ela, a pessoa é consumo e produção. Circunstâncias que fazem aflorar o medo e a raiva, pontua Maria Helena. Tais sentimentos, acrescenta, “não são bons juízes de decisão” e acabam levando as pessoas a apoiar ou fazer “justiça” com os próprios meios:

– O medo da violência, dos assaltos, do adolescente que poderia oferecer perigo, esse medo está exponenciado. Não é que não exista a chance real de um ataque violento a qualquer um de nós. Mas é um temor muito amplificado, sem que o aumento dos delitos possa justificar. Se estamos com medo, precisamos fugir ou lutar. Como não se pode fugir, há raiva, ódio. Preciso destruir o que é possivelmente ameaçador a mim e os alvos são sempre as figuras que representavam o terror desde o Brasil colônia – analisa.

Cardoso observa a tendência de "desumanização da pessoa do outro lado", o que sustenta a visão de que a violência é a solução. Para Duran, esse cenário indica um “nivelamento por baixo”, porque, mesmo que o jovem do Flamengo, por exemplo, tivesse cometido um crime, os justiceiros o impuseram uma situação bárbara e também se curvaram ao crime.

– Há falta de valores compartilhados pelos indivíduos. É uma questão moral. Basta pensar na contraofensiva sofrida pela Yvonne por conta de seu ato solidário. A ojeriza de parte da população à denúncia dela indica padrão muito forte de medo social. A sociedade se vê desprotegida pelas instituições sim, mas também convive com uma individualização negativa. Não há proximidade, e os laços estão fracos em termos de agregação social – ressalta.

O individualismo é reiterado pelo conceito de legítima defesa, cuja utilização tem apresentado abuso, argumenta Burgos. A cidade é entendida como uma guerra de todos contra todos e a "legítima defesa", que tem acolhida jurídica, parece um biombo para justificar qualquer prática contra a ameaça real ou potencial, avalia o professor.  

Em meio ao debate sobre democracia racial e descrédito nos organismos do Estado, impõe-se a discussão referente aos direitos humanos, uma "briga de algumas décadas", observa Cardoso, entre os que pregam segurança pública calcada na cidadania e os que acusam a defesa dos bandidos e pedem contenção do caos por vias repressoras.

Essa discussão é, para Duran, insuficiente. Pois não deveria representar "uma agenda de trabalho a curto prazo", e sim a formação de uma consciência a longo prazo, que envolva a "questão educacional" e as instituições encarregadas da segurança pública.

– Não há pedagogia que discuta isso institucionalmente. Há grupos importantes que pautam essas questões com muita dificuldade. Observo também desprezo pelo aspecto associado aos direitos humanos, porque há descrença tremenda de que a longo prazo funcionem como solução. Não é uma solução, é a formação de aprendizado em relação a alguns valores.

"Avançamos no aparato de proteção mas retrocedemos na prática da segurança pública"

Na opinião de Dornelles, não se trata de desconhecimento dos princípios de direitos humanos, mas sim da contrariedade a eles. Expressa em última instância, diz o professor, duas “concepções existenciais absolutamente opostas”. Isso se deve, ainda segundo o especialista, aos avanços e retrocessos concomitantes desse campo no Brasil:

– Avançamos no aparato de proteção, na existência de leis e ampliação de direitos de crianças, idosos, homossexuais, mulheres, negros. Conquistas dos movimentos sociais no quadro que se abriu com a transição democrática. Retrocedemos, entretanto, especialmente no setor de políticas criminais e na prática real das instituições de segurança pública.

Numa perspectiva sociológica, Burgos considera os recentes casos de "justiça pelas prórias mãos"´sintomas de “algo que está muito errado”. Ele pondera que esse sentimento está presente em qualquer sociedade, sobretudo entre jovens que, de alguma forma, se sentem ameaçado pela chegada de estrangeiros, por exemplo. Atenta-se, porém, que esse estranhamento tenha dado lugar a uma atuação parecida com a lógica da milícia, pelo menos na origem:

– Quando esses jovens de classe média, mesmo sem vínculo direto com a polícia, se arvoram a controlar o uso do espaço público e as ações dos supostos potenciais criminosos, colocam em prática um comportamento sempre latente nos Estados Unidos, no México, na América Latina, no Brasil.

Cardoso lembra que há cinco, seis anos, já haviam sido documentados grupos de extermínio voltados aos que cometem pequenos delitos. O que chama a atenção do analista é a origem social dos justiceiros, jovens de classes média e alta, com perfil próximo ao objeto de estudo do mestrado: os pitboys.

– A grande diferença dos pitboys para os justiceiros é que os primeiros cometiam atos de violência contra pessoas da mesma classe social. Comportamento de determinada masculinidade violenta exacerbada, que incomodou a classe média por ver seus filhos como vítimas potenciais. 

 Viviane Vieira  Flávia Eyler: “A política foi criada para conter a violência” 

A primeira experiência de viver junto do homem não deu certo, porque vigorava a lei do mais forte e do mais esperto. Zeus então, segundo a mitologia grega, resolveu conceder o senso da justiça e do pudor, a arte da política, para minimizar o potencial de violência na espécie humana, a única que foge à lei natural da sobrevivência e deriva para a matança de seus semelhantes. Assim sintetiza, em entrevista ao Portal, o desenvolvimento da vida cívica a professora do Departamento de História Flávia Eyler, hoje marcada, segundo ela, pelo individualismo possessivo e pela desconfiança nas instituições.

Portal PUC-Rio: A senhora diz que a política é o contrário da violência. Mas hoje vemos grupos que assumem a violência como uma forma de política. Como a senhora vê esse quadro?

Flávia Eyler: Na Grécia, a política foi criada para conter a violência. Tão diferente da gente, né? Diálogo no lugar da paulada. A violência não pode ser política. Pode ser protesto, mas jamais uma política. A vida cívica implica na convivência pacífica das diferenças, exatamente porque não somos seres pacíficos. Basta observar as crianças, que primeiro recorrem à briga e depois aprendem a conversar. Toda educação é por aí.

Portal: O que isso pode nos dizer sobre a sociedade contemporânea?

Flávia: Hoje não somos mais o homem grego. O grego era definido pela identidade que o outro dá para ele. Era a sociedade da vergonha e da honra. Nós, não. Somos a sociedade do dever e da culpa, com horizonte de pensamento muito diferente. O problema é o mesmo, com circunstâncias diferentes, porque hoje vivemos certa desconfiança e falência das instituições. A confiança é a base da política. Persuasão, amizade, tudo isso no mundo grego era inquestionável e, hoje, há clamor que não vai para lugar nenhum, que se dispersa na violência pela violência.

Portal: Se o grego era definido pela identidade que o outro dá para ele, não caberia a comparação com a visão dos justiceiros que colocam o jovem negro como ameaça?

Flávia: Aí entramos na questão do preconceito. Vivemos na sociedade de classes e em meio ao advento da sociedade capitalista e à ideia, sobretudo americana, do self made man, em que todos têm acesso a tudo e são iguais. No mundo grego, as pessoas não são iguais e isso não é problema. O problema é quando você lança princípios de igualdade para situações que são desiguais, o que gera violência. No mundo grego, a confusão entre política e economia, é um contrassenso. As pessoas são distintas na necessidade, são pobres ou aristocratas, mas iguais na política: mesma voz, mesmo lugar diante da justiça. Isso é complicado para nós. Essa transição é difícil na sociedade.

Portal: E por que é tão difícil?

Flávia: O individualismo possessivo consumista está aí. O maior perigo da pólis não era o corrupto, era o idiota, porque ele era aquele que pensava só em si, nos seus interesses. Nós vivemos isso, somos todos idiotas. Vivemos total insegurança e é esse medo que tem que ser banido para que o homem encontre sua excelência, que é seu pensamento.

Portal: Enquanto o grego era parte do cosmos, o homem hoje se considera tão o centro do universo a ponto de fazer justiça com as próprias mãos?

Flávia: Esse é o centro da questão. Somos individualistas, possessivos e não temos, em contrapartida, confiança nas instituições que deveriam nos proteger e prezar pelo todo. Há estilhaçamento dos valores. Não há confiança na política. Há vingança do sangue quando se sente atingido, assim como retrata a tragédia grega Oréstia. E é uma das questões colocadas pelos gregos: a virtude cívica pode ser ensinada? A gente aposta que seja.

Portal: Na internet, há pulverização de informações e opiniões, o que, segundo os analistas, contribui para a dispersão das pautas. Há ligação das redes sociais com a Ágora grega, o espaço em que os gregos se reuniam para discutir questões da pólis?

Flávia: A Ágora exigia participação integral do homem com seu corpo. O corpo do homem era o corpo da cidade. Hoje, você desvincula o corpo da ideia, da política e, quando ele aparece, aparece vulnerável. Nas redes sociais, parece que temos relações sólidas. Mas quando o corpo se apresenta fisicamente, elas não são tão sólidas assim. Há novas possibilidades de relação, o que é positivo. Mas é fácil prestar solidariedade sem se deslocar, sem precisar ver a dor do outro, presenciar o sangue, a ferida. É muito diferente. Era isso que os gregos queriam evitar com a mímesis, porque é mais fácil olhar o quadro de um cadáver que ver um cadáver.