Arthur Ituassu* - aplicativo
14/02/2014A morte do repórter-cinematográfico Santiago Idílio de Andrade, da Rede Bandeirantes, na segunda-feira (10/02/2014), provocou uma avalanche de editoriais na grande mídia brasileira em defesa da liberdade de imprensa no país e da importância do jornalismo para o ambiente democrático no Brasil. Em editorial veiculado na edição do mesmo dia da morte de Santiago, o Jornal Nacional, por exemplo, afirmou que "é essencial, numa democracia, um jornalismo profissional, que busque sempre a isenção e a correção para informar o cidadão do que está acontecendo. E o cidadão, informado de maneira ampla e plural, escolha o caminho que quer seguir". O texto termina afirmando: "Sem cidadãos informados não há democracia".
No dia seguinte, editorial do jornal O Globo argumentou: "Se grupos radicais buscavam um cadáver nas manifestações de rua, conseguiram. Mas não foi o que poderiam imaginar. Em vez de jogar mais combustível na ferocidade do vandalismo em cima do corpo de um manifestante, mataram um repórter-cinegrafista no exercício de uma atividade essencial para a democracia, relatar os fatos para a sociedade". Ao fim, diz o periódico, "Atingiram a própria democracia, que tanto desprezam".
Também no dia 11, a Folha afirmou em editorial: "Identificar, julgar e punir autor e cúmplices do disparo que matou Andrade é tarefa urgente para evitar danos ainda mais graves. Com desenvoltura incontida, esses delinquentes têm transformado atos pacíficos em campos de batalha, ameaçando a segurança de quem está por perto e minando importantes pilares da democracia. Um deles é a própria legitimidade das manifestações. (...) O outro é a liberdade de imprensa".
A relação entre jornalismo e democracia é um tema tradicional no campo da Comunicação e Política, e a imprensa é em geral tida como uma das mais importantes instituições que sustentam os regimes democráticos. O jornalismo fiscaliza políticos e governos, informa o cidadão, cobra, denuncia e debate temas da política ou comuns à sociedade. Na verdade, a política acaba sendo nos Estados modernos – se não em sua totalidade, ao menos em sua boa parte – o que se chama de "realidade mediada", ou seja, o cidadão tem contato com a política basicamente por meio do jornalismo midiatizado, que assume papel fundamental no desenvolvimento das democracias.
Apesar disso, a relação entre jornalismo e democracia não é, nem poderia ser, algo pronto, estabelecido, que não possa ser problematizado. Ou seja, o fato de haver imprensa livre e democracia não implica que a relação entre imprensa e democracia seja 100% benéfica para o regime democrático ou a sociedade. Na verdade, trata-se de um objeto complexo, para onde se deslocam inúmeras pesquisas e discussões do mundo acadêmico. Se é verdade que, na democracia, uma imprensa é melhor que nenhuma imprensa, isso não significa que a relação entre jornalismo e democracia seja positiva em todos os seus aspectos, momentos e/ou configurações.
Nesse sentido, se a morte de Santiago de Andrade despertou argumentos adormecidos sobre a importância da imprensa, o fato também parece estar servindo menos à reflexão e mais à reprodução de lógicas um tanto defasadas que tentam legitimar na marra a representatividade da grande imprensa no regime democrático brasileiro.
Afinal, quando o Jornal Nacional afirma que é "essencial, numa democracia, um jornalismo profissional, que busque sempre a isenção e a correção para informar o cidadão do que está acontecendo. E o cidadão, informado de maneira ampla e plural, escolha o caminho que quer seguir", pode-se lembrar, por exemplo, que a relação entre jornalismo e democracia no Brasil sofre com uma configuração excessivamente concentrada, adquirida em tempos pré-democráticos e com base em um relacionamento histórico e duradouro da empresa beneficiada com um regime não-democrático. Além disso, que tal relação pena com o fato de que a mesma empresa se coloca, com legitimidade questionável, na função de representante público do cidadão brasileiro, tendo por base um discurso legitimador calcado em noções sobre isenção, neutralidade e profissionalismo jornalístico que não se sustentam, sejam atacadas pela história ou por simples questionamento epistemológico.
Perguntas semelhantes podem ser feitas quando O Globo afirma que "mataram um repórter-manifestante no exercício de uma atividade essencial para a democracia, relatar os fatos para a sociedade". Ora, é no serviço de "relatar" os fatos para a sociedade que se sustenta a legitimidade da imprensa no ambiente democrático? Quando é mais que notório que nem O Globo nem qualquer outro órgão de imprensa apenas "relata" os fatos para a sociedade e que o jornal faz parte de um grande grupo empresarial, com seus interesses econômicos e políticos naturais, que controla sozinho uma enorme fatia da comunicação midiatizada no país, onde estão as bases para a representação legítima da imprensa no ambiente democrático?
Dessa forma, se a morte de Santiago de Andrade tirou a poeira do debate sobre jornalismo e democracia no Brasil, homenagem maior o jornalismo brasileiro faria ao cinegrafista se aproveitasse a ocasião para refletir sobre os problemas fundamentais que envolvem a relação no contexto brasileiro, como a concentração excessiva da estrutura midiática, a baixa remuneração dos profissionais nas redações, o uso intensivo de mão-de-obra ainda em formação e/ou de pouca experiência, a fraquíssima formação intelectual oferecida nos cursos de jornalismo no Brasil, o uso político de concessões de comunicação midiática, o preconceito do jornalismo com a universidade e o pensamento acadêmico, a espetacularização/novelização da notícia e da política, a baixa representatividade social nos debates midiatizados, a superficialidade excessiva da produção jornalística, a ênfase desmedida no entretenimento etc.
Nesse contexto, a reprodução desenfreada de lógicas defasadas e discursos questionáveis de legitimidade podem apenas alimentar a tragédia. Como escreveu a Folha, "A morte de Santiago Andrade é, por óbvio, o episódio mais lamentável, mas, considerando a ação policial e a de manifestantes, foram registrados, desde junho, inaceitáveis 117 casos de agressão, hostilidade ou detenção de jornalistas".
*Coordenador do curso de Jornalismo da PUC-Rio, doutor em Relações Internacionais pelo IRI. Texto originalmente publicado no blog do Ituassu.
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