Júlia Cople - aplicativo - Do Portal
03/02/2014Pela terceira vez, em agosto do ano passado, o governo federal teve de adiar o leilão do Trem de Alta Velocidade entre Rio, São Paulo e Campinas, por falta de interessados na obra de R$ 38 milhões. Com o novo adiamento, o trem-bala corre o risco, como já reconheceu o ministro dos Transportes, César Borges, de custar, só com o projeto executivo, um bilhão de reais aos cofres públicos, o equivalente a 2.569 praças públicas revitalizadas ou 82.963 casas de um bairro popular construídas pela Prefeitura do Rio, e não sair do papel. A quantia se assemelha ao gasto final previsto para a construção da via expressa entre a Barra da Tijuca e Santa Cruz, a TransOeste (R$ 1,08 bilhão), e viabilizaria, por exemplo, a expansão de uma linha de metrô em 9 quilômetros, da malha ferroviária em 332 quilômetros, segundo cálculos do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). Cobriria também a construção de 16,5 quilômetros de Veículo Leve Sobre Trilhos, o VLT, ou 33 quilômetros de Bus Rapid Trânsit, na sigla em inglês, o BRT, de acordo com estudo do consultor em transporte metroviário Peter Alouche.
O valor do projeto executivo, ressalvam os analistas, é compatível com a complexidade da construção. Um planejamento incompleto, alertam, demandaria ainda mais recursos no decorrer da obra. Mesmo assim, o TAV divide opiniões e esquenta o debate sobre as prioridades da gestão pública, principalmente no contexto atual de reivindicações nas ruas pela melhor qualidade do transporte das grandes metrópoles. Abaixo, especialistas em engenharia de transportes e planejamento urbano pensam alternativas para a mobilidade de Rio-São Paulo, opinam sobre a necessidade do trem-bala e sugerem como aproveitar melhor um bilhão de reais.
Ricardo Esteves, mestre em Engenharia de Transportes e professor de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio:
''Na medida em que a aviação civil resolveu o problema da aeronave de média capacidade, conseguiu viabilizá-la, e havendo um aeroporto no centro do Rio, o Santos Dumont, e no centro de São Paulo, o Congonhas, o trem-bala nunca será competitivo, nem do ponto de vista de tarifa (a menor que vi foi de 100 reais), devido ao tempo de viagem. Mas existe outro olhar: a ligação com cidades de porte médio, na região do Vale do Paraíba, que é a região mais próspera do Brasil, uma função estratégica nessa ligação ferroviária. E aí cria outra pergunta: precisa ser um trem-bala? Já existe uma estrutura ferroviária. É o caso de, com esse mesmo valor de um bilhão, investir na melhoria operacional da estrutura existente ou ampliação de sua capacidade, em uma operação não necessariamente de alta velocidade, mas de rapidez suficiente para atender e manter a acessibilidade a essas cidades. Na escala regional, a tecnologia ferroviária atende melhor, porque a viagem tem custo operacional menor e, eventualmente, as ligações rodoviárias complementam esse sistema.
Fora isso, temos possibilidade de mais e maiores deslocamentos a pé e uso de bicicleta, além dos transportes de alta capacidade alimentados por ônibus, sempre do ponto de vista do coletivo. Mas, para isso, é necessária uma política definida de investimento em mobilidade, entendendo essa escala e essa conexão entre as tecnologias, a articulação entre os meios. É claro que o trem de alta velocidade é uma tecnologia bem contemporânea, bastante avançada, cara, do ponto de vista do seu desenvolvimento. Mas se eu fosse optar, seu eu tivesse o dinheiro, não seria nessa ligação que investiria. Investiria em metrô. A partir de uma política de mobilidade, o sistema seria montado de acordo com as funções e capacidades específicas de cada tecnologia. Montaria o sistema pela ótica do cidadão e da cidade, não pela lógica do operador ou da gestão pública. Este é o pulo do gato: conseguirmos que nossa mobilidade seja desenhada, projetada, implementada, mantida, fiscalizada, sempre do ponto de vista do usuário, enxergando o coletivo desse espaço.''
Vania Barcellos Gouvea Campos, pós-doutora em Engenharia de Transportes e professora do Instituto Militar de Engenharia:
''O trem-bala é um bom sistema, mas vejo o trânsito das metrópoles como prioridade. Custos são complicados de esboçar, mas vejo outras melhores opções para esse bilhão na mobilidade urbana. É importante melhorar a questão de vias prioritárias para ônibus. As faixas exclusivas para ônibus devem existir, devem se expandir na medida em que for possível, mas tem que haver fiscalização. Não adianta existirem sem que a operação ocorra da maneira que deve ocorrer, sem invasão de faixas e sem motoristas burlando. Melhorar até o controle operacional das cidades, da CET-Rio. Uma coisa importantíssima é a informação no ponto de ônibus do tempo que falta para o veículo chegar. Isso só existe em sistemas eficientes, e é fundamental até para suscitar o uso do meio.
A maior carência da mobilidade urbana do Rio é o transporte público eficiente. Mais metrô é o que sempre se espera. Aumentar a rede, fazer a interligação, porque são linhas direcionadas. Parte dela está superlotada. Não é rede, não é teia, como em outros países. Como não houve investimento suficiente no passado, hoje é difícil reverter essa situação. Quanto ao sistema ferroviário, principalmente no que toca ao transporte de carga, deve ser expandido porque há muitos gargalos, como rodovias sobrecarregadas de caminhões. Esses caminhões contribuem para acidentes, aumentando o congestionamento. A rodovia deve ser pensada como veículo com uma logística de transporte e ampliada nesse sentido.''
Luis Carlos Soares Madeira, mestre em Planejamento Urbano e Regional e professor de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio:
Temos de perceber o trem bala como uma estratégia de desenvolvimento regional que não implica necessariamente demandas das metrópoles do Brasil, de uma forma geral. Se a gente colocar na conta, entre as demandas de um projeto como esse, com desenvolvimento regional numa área economicamente mais desenvolvida do país, do ponto de vista de descentralização dos recursos do país, realmente não faria sentido nesse momento. Assim, o ideal seria descentralizar o recurso de um bilhão para outras regiões do país, com mais necessidade de desenvolvimento. Há também as demandas das metrópoles em relação a transporte e mobilidade. Ainda quanto ao bilhão de reais, daria para implantar um desses corredores de transporte, com base em pneu, o BRT.
Existe também uma polêmica sobre qual linha de metrô deveria receber recursos: Gávea-Barra ou reforço da linha 3 Centro de Niterói-Centro do Rio, com outro caminho pela Cruz Vermelha até a Estação Estácio, gerando malha rodoviária mais segura e mais adequada. Transporte de massa tende a gerar muito mais economia e promover uma migração de alternativas de transporte individual para o coletivo, o que resulta em menor emissão de carbono e em maior qualidade de vida, menos trânsito. Metrô e BRT são desejáveis e a cidade do Rio os espera há muito tempo. Caso sejam aproveitadas vias pré-existentes, só implantando faixas do BRT, fica mais barato. Na comparação com a TransOeste, um bilhão significaria cerca de 2 quilômetros, o que não me parece expressivo. Mas R$ 30 bilhões é uma diferença muito grande.
De qualquer maneira, a discussão é se a demanda é por transporte de altíssima velocidade, garantindo a opção de em duas horas fazer Rio-SP, ou de ter trem de média velocidade, que também tem eficiência maior que rodoviário, que garante articulação mais efetiva entre as cidades do triângulo Rio-São Paulo-Campinas. Diminuiria pela metade o valor original da obra — que seria bem maior que R$ 30 bilhões — e geraria vantagens locacionais para além da ligação das metrópoles. Para transporte de pessoas e bens puramente, já existe via aérea. O modo ferroviário foi esquecido da matriz de transportes há muito tempo. Se não há certeza sobre o investimento que será feito no futuro, não faz o menor sentido investir um bilhão no projeto. São muitas coisas complicadas na mobilidade urbana. O investimento sobre sistema cicloviários em vias de pedestres adequados, como o projeto pensado para a área central do Rio, aproveitando toda a reurbanização da área portuária, teria baixo custo comparativo, com impacto enorme na mobilidade sustentável.
Telmo Giolito Porto, doutor em Planejamento de Operação de Transportes e professor de Engenharia de Transportes da USP
O trem-bala tem muitas vantagens. Aqueceria a economia entre São Paulo, Rio e Campinas, um eixo de enorme importância econômica, que interessa ao Brasil todo. Gera conhecimento, tecnologia para o país todo, escritórios centrais que geram riqueza. Faz sentido também no sentido de desafogar rodovias, com impacto na saúde pública pela menor poluição. Menos acidentes, o que também tem impacto na saúde pública. Mas a minha opinião é que provavelmente conseguiríamos os mesmos efeitos com um trem rápido (em vez de 350 km/h, 150 ou a 200 km/h), da mesma forma e por um custo menor. Mas aí tem que fazer duas vezes, o rápido agora e o bala depois, mas nós não temos certeza se virá o bala. Se o Brasil quiser, pode fazer os dois.
A prioridade, porém, nas grandes metrópoles, São Paulo e Rio, é executar o que está planejado. Não existe solução maravilhosa que ainda não tenha sido pensada. Com esse dinheiro, expansão do metrô, revitalização da malha ferroviária. O negócio é tirar do papel. Os governos têm que fazer um planejamento a longo prazo, independentemente dos interesses políticos. Nas cidades menores, deve haver uma captação para que consigam acessar tecnicamente e também saibam como acessar os recursos que estão disponíveis no governo federal. Passa pela questão do uso do solo compatível com o de transportes, são interdependentes. Sem dúvida, a questão da mobilidade é crítica no Brasil, porque significa economia, mas também descanso, produtividade, acesso a lazer, cultura, qualidade de vida, tudo o que significa o cidadão. A maior carência da mobilidade urbana dessas grandes metrópoles é você ter o melhor meio aplicado a cada necessidade. A mobilidade depende da integração adequada aos diversos modos de transporte. O que precisa é ter um sistema de transporte planejado em que cada um desses modos seja otimizado.
Eu vejo o presente como um momento positivo. Se você tem nesse momento a modernização do metrô e o investimento em ferrovias e corredores de ônibus, eu vejo o cenário de daqui a dez anos muito positivo. Temos que lembrar que transporte público nunca é muito rápido porque envolve projetar, planejar, fabricar ou construir, sempre um ciclo longo. Na verdade, você tem também vinculações técnicas. Para modernizar ferrovia, não adianta comprar trem sem energia, subestação sem sinalização. O transporte urbano passa pela ocupação do solo. Todas as políticas de planejamento e ocupação do solo têm que estar preocupadas com isso.
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