Alice Reis* - Da sala de aula
08/01/2014Em 19 de agosto de 2008, a desenhista americana Kate Bingaman-Burt comprou a segunda temporada da série de TV Mad Men na loja virtual iTunes. Dois anos depois, em 15 de julho de 2010, garantiu mais uma temporada. Mais dois anos e, em 19 de março de 2012, já assistia à quinta temporada. Em 7 de abril de 2013, não resistiu à sexta. Ainda que seja fã assumida do programa, que narra o cotidiano do publicitário Don Draper em Nova York – “É o único seriado que compro”, explica –, dificilmente lembraria as datas certinhas. Mas é fácil descobrir: os itens estão registrados na “nota fiscal” ilustrada que a desenhista americana mantém desde 2006.
Em rápida consulta à internet, encontra-se algo que Kate, de 35 anos, tenha comprado em cada dia dos últimos anos. A série Daily Purchase Drawings (desenhos de aquisições diárias, em português) surgiu de uma ideia para controlar a dívida do cartão de crédito e virou rotina. Hoje, é enviada em formato de revista a assinantes em panorama internacional e faz parte do projeto Obsession Comsuption (na tradução, consumo obsessivo), que atinge toda a carreira de Kate/;.
Em 2004, com contas a pagar, a jovem de então 26 anos aliou habilidade artística com economia: todo mês, quando quitava uma parcela do vermelho, desenhava o extrato bancário, até voltar ao azul, em 2010. No meio do caminho, em 2006, percebeu que gostava de misturar desenho e consumo, e resolveu ilustrar diariamente algo que comprasse. A estreia, em 5 de fevereiro daquele ano, foi uma fatura de US$ 25 no posto de gasolina de Starkville, Mississippi: “É o começo de uma série que – tomara – vai durar o ano todo”, escreveu Kate, que já extrapolou a previsão em sete anos.
A publicitária Claudia Brütt, professora da PUC-Rio que adora assistir ao fictício colega de profissão de Mad Men na televisão brasileira, mas ainda não conhecia o projeto, imagina que a audiência do Daily Purchase Drawings tenha a mesma curiosidade de um reality show. Mas ressalva:
– Achei ótimo. O consumo faz referência a valores individuais, e esses valores só fazem sentido em uma sociedade que os reconheça. O projeto de Kate só pode ser completamente compreendido pela sociedade americana. Nem sempre conhecemos as marcas e locais que ela menciona, então nem sempre há significado. Mas as pessoas querem ver um trabalho gráfico divertido.
Ainda que haja incógnitas culturais, boa parte dos produtos desenhados são populares no Brasil, como a batata Pringles, cujo pacote foi devorado em uma viagem de avião, em 16 de janeiro de 2012. “O valor monetário também é uma informação diferente para nós”, destaca Claudia Brütt. De acordo com a nota que acompanha a figura, a batata custou US$ 3, cerca de R$ 7. A autora confirma que o público identifica na série seus próprios hábitos. “Meus desenhos ajudam a criar uma narrativa da minha vida por meio das compras,” conclui.
Kate Bingaman-Burt não desenha de imediato, logo que sai da loja. “Crio uma memória visual do objeto e reservo um tempinho, à noite ou de manhã cedo, para fazer a ilustração”, contou, em entrevista por e-mail. Ela gasta entre dez e 40 minutos para concluir cada desenho, de acordo com a complexidade da peça-modelo. A caneta preta, usada para tingir o papel diariamente, é uma Faber-Castell profisional modelo S, vendida no atacado com desconto de 20% na papelaria da Universidade Estadual de Portland, onde a artista dá aula de Design e tem carteirinha de professora.
O penteado da foto da carteirinha, tirada em 3 de julho de 2008, era usado há um ano, desde que cortou o cabelo curtinho, em 8 de agosto de 2007. Ela pagou US$ 36 pelo corte – mesmo preço pelo qual, no ano anterior, havia aparado as pontas e feito as sobrancelhas, quando esteve no salão de beleza em 28 de junho, às vésperas de seu casamento.
Na segunda-feira 12 de junho de 2006 – Dia dos Namorados para os brasileiros (o equivalente americano, Valentine’s Day, é celebrado em 14 de fevereiro) –, Kate Bingaman esboçou as alianças de noivado dela e de Clifton Burt. “Mal posso esperar para me casar com ele,” declarou à época. Logo adotou o sobrenome do marido, o também artista com quem divide um ateliê.
Ela é de Missouri, no centro do país; ele, de Louisiana, ao sul. Kate já morou em Nebraska, fronteira com a terra natal, onde terminou o Ensino Médio, e no Mississipi, próximo a Louisiana. Hoje, moram em Portland, Oregon, no noroeste do mapa, acima da Califórnia. São 583 mil habitantes. “Finalmente sinto que pertenço a algum lugar. Mudei para cá aos 30, e é bizarro ter esse sentimento pela primeira vez aos 30”. Em 4 de abril de 2012, o casal adquiriu cartões-postais de todos os locais onde já viveram.
A irmã caçula de Kate, Kory Bingaman-Francka, 28, fica imaginando qual será o purchase drawing do dia em que fazem compras juntas. “Tem gente que pergunta a ela, então tento ficar ‘cool’ para não parecer uma bobona”, comenta Kory, que, sob a assinatura Kory Bing, também trabalha com desenho, mas nada de documentar o cotidiano.
– Minha irmã sempre gostou de registrar sua vida – lembra Kory, também via e-mail. – Ainda há diários antigos escondidos na casa dos nossos pais. Ela estava na faculdade e me dava papéis de carta, material para escrever, mas isso não me conquistou tanto quanto fez com ela.
Kory Bing casou-se com Ben Francka em setembro de 2009. Kate deu uma batedeira de presente para o casal – igual à que, mais tarde, comprou para si. Em outubro de 2010, fez uma cópia da chave de sua casa para eles, que deixaram Missouri e foram de mudança para Portland.
O Hemisfério Sul teve um março chuvoso em 2011, e a população do Rio de Janeiro temia uma nova tragédia como a do início daquele ano na região serrana. Na metade norte do planeta, Portland também estava molhada: o céu manteve-se nublado o mês todo, de acordo com a meteorologia do Wunderground. Dia 22, seguinte ao início da primavera, Kate equipou-se com um guarda-chuva. A cidade costuma encarar pluviosidade e tempo frio nesta época – em 2012, até nevou, mas a temperatura não impediu a desenhista de comprar um novo par de óculos de sol.
As estações bem definidas e o clima favorável à jardinagem foram aproveitados pelo governo, e Portland ganhou o título de região mais sustentável dos EUA. Kate passeia de bicicleta, usa capacete e luvas próprias para o veículo – das quais ela só notou a necessidade um mês depois de ter a bike, em 8 de outubro de 2008. As ruas são repletas de roseiras, atribuindo-lhes o apelido de “cidade das rosas”. Em 13 de julho de 2009, a artista comprava flores sem motivo especial. Mas, em 8 de março de 2012, teve porquê: era aniversário da avó, e Kate preparou um buquê.
Kate tem lembranças do estúdio caseiro da avó, já falecida, que ilustrou livros infantis por mais de 50 anos. “Lembro-me do cheiro das canetas e das pinturas. Às vezes, ficava o dia todo lá, e sabia que não a estava interrompendo”. A herança material para a neta foi a mesa na qual desenhava: “Fico feliz de usá-la e deixar minha avó orgulhosa”. Ela admite ter tido grande influência da família para seguir na profissão, sentimento compartilhado por Kory:
– Crescer com parentes criativos, que sempre deram duro, deixou uma forte marca em nós duas. Nossos pais ganhavam dinheiro como tecelões, então nunca tiveram a pretensão de que fôssemos médicas ou advogadas.