Danilo Azevedo* - aplicativo - Do Portal
18/12/2013O confronto entre torcedores do Atlético-PR e Vasco na última rodada da série A do Campeonato Brasileiro retomou um debate antigo do futebol brasileiro. A edição de 2013 rendeu 17 denúncias de violência e cinco clubes condenados a perda de mando de campo. O ano também foi considerado o mais violento do esporte, com 30 mortes em brigas entre torcidas, segundo pesquisa do sociólogo Mauricio Murad. O Vasco foi punido com perda de oito mandos de campo, dos quais quatro serão com portões fechados, e multa de R$ 80 mil. Já o Atlético-PR perdeu 12 mandos de campo, seis desses sem público, e multa de R$ 140 mil. Entre debates sobre o tema, voltou-se a discutir os termos e o cumprimento do Estatuto do Torcedor, que completou dez anos em 2013.
Apesar de já ter uma década, as medidas de prevenção previstas no estatuto não são cumpridas e nem as penas aplicadas. Uma medida que contribuiria para a aplicação de penas é o cadastro dos membros das torcidas organizadas, constando nome, foto, biometria, endereço, entre outros dados. Esse cadastramento começou a ser realizado em 2011, no Estado do Paraná, como parte do programa Torcida Legal do Ministério do Esporte, mas foi interrompido após suspeitas de irregularidades. Em agosto deste ano, o ministério voltou a anunciar que fará o cadastro das 475 torcidas organizadas até a Copa do Mundo de 2014, porém ainda está desenvolvendo um sistema de dados. O site onde era feito o pré-cadastro em 2011 encontra-se fora do ar.
O estatuto ainda prevê que o torcedor pode ser impedido de ir ao estádio por até três anos, Para isso, site da entidade organizadora (no caso do Brasileirão, a CBF) deveria publicar a relação dos torcedores proibidos de frequentar os jogos em local visível e com caracteres legíveis. No entanto, o site da confederação só dispõe de um documento em que proíbe dois torcedores (do Fluminense) de ir ao estádio. Esse documento só é encontrado depois de uma pesquisa na seção de notícias do site. Entre as penalidades previstas está o afastamento por seis meses dos dirigentes das entidades responsáveis e até a sua destituição, em caso de infrações que comprometam a segurança.
Para o filósofo Vanderlei de Lima, coautor do livro O protagonismo das torcidas organizadas na promoção da paz (Prol Editora), a mudança no estatuto vigente não basta.
– O Estatuto do Torcedor é uma vergonha nacional, e para ser devidamente aplicado precisaria ser reformulado outra vez. Lembro que ele entrou em vigor em 2003 e já precisou ser remendado em 2010 com a promessa de que erradicaria, arrancaria pela raiz, a violência no futebol. Ora, os casos vergonhosos a que assistimos dentro e fora dos estádios mostram que o Estatuto fracassou em termos de prevenção da violência, que, mais do que apenas punição, requer educação do ser humano, independentemente se ele é ou não torcedor – ressalta Vanderlei.
No dia anterior à confusão de Joinville, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, assinou um manifesto pela paz no futebol, junto com representantes de torcidas organizadas de todo o Brasil. O ministério se compromete a cumprir a lei vigente no Estatuto do Torcedor, enquanto os representantes divulgarão as ações do manifesto e cadastrarão seus torcedores no site do ministério.
Vanderlei de Lima indica que orientações educativas na própria torcida organizada, por iniciativa própria ou mesmo exigência das autoridades públicas, devem se seguir a essas ações:
– Penso, pela minha experiência no estudo das ciências humanas, que a melhor alternativa para ajudar a coibir os atos de violência entre torcedores é a educação. Toda torcida deveria promover palestras, anunciar os jogos com o nome do rival, e não deboches capazes de excitar os ânimos; proibir letras violentas contra os rivais; e valer-se da expulsão dos brigões. Cada responsável por um bairro, cidade ou subsede teria autoridade para advertir os maus membros e passar à diretoria central da torcida os casos mais graves, a fim de que providências sérias fossem tomadas.
Algumas torcidas já possuem o cadastro dos torcedores, como é o caso da Camisa 12, a maior e mais antiga tocida do Internacional de Porto Alegre. Diogo Rodrigues, vice-presidente da Camisa 12, confirma:
– Aqui temos até cadastro biométrico. Pelas imagens encontramos tudo: endereço, CPF... De acordo com a gravidade, punimos com multa, suspensão ou expulsão.
Porém, segundo Vanderlei de Lima, também diretor do projeto Toppaz (Torcida Organizada Pela Paz), a prática de punição a seus torcedores que ocorre no Internacional não é um hábito das organizadas brasileiras de maneira geral.
No Rio de Janeiro, a atuação do Grupamento Especial de Policiamento Esportivo (GEPE), grupo vinculado ao Batalhão de Choque da PMERJ, conseguiu coibir a violência nos eventos esportivos de 2013. Outra medida foi a ampliação dos Juizados Especiais Criminais dentro dos estádios. O modelo carioca é visto como bem-sucedido pelo Ministério do Esporte.
Em reunião na quinta-feira 12 de dezembro, o presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Flávio Zveiter, anunciou que vai sugerir ao Conselho Nacional do Esporte (CNE) que o clube que tiver torcedores envolvidos em brigas perca pontos no campeonato, nos casos mais graves. Atualmente, as maiores penas para esses casos são perdas de mando de campo e multas que giram em torno de R$ 100 mil.
– O STJD também é outro órgão do Brasil que precisa ser revisto. Ele só dá prioridade a quem é panelinha deles, como foi com o Fluminense. O STJD tem que garantir a segurança do torcedor, mas hoje ele só pensa em punir, e não em prevenir – critica Diogo Rodrigues, da Camisa 12.
A violência vinculada à imagem das torcidas organizadas incomoda parte de seus dirigentes e integrantes. O projeto Organizadas Brasil (OBR) é um reflexo dessa insatisfação. Trazendo como lema “Torcendo pela paz nos estádios”, o site afirma ter o objetivo de informar que “organizadas não são redutos de bandidos e desocupados”, imagem que afirma ser passada pela imprensa. Outro exemplo é a Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (TORJ), que diz ser uma união de torcidas “contra as arbitrariedades das autoridades”.
Projetos como esses defendem que a punição seja aplicada aos indivíduos envolvidos nas brigas, e não à torcida organizada, como acontece em alguns casos. Por exemplo, a torcida do Atlético-PR, a Fanáticos, está proibida de estrar no estádio por seis meses. Essas medidas não costumam funcionar, já que o torcedor brigão continua indo ao estádio, porém, sem a camisa da torcida organizada.
– Em Porto Alegre, a brigada militar é o advogado, o promotor, tudo. Aplica punição à torcida, tranca todo o seu material, manda e desmanda. Tem que punir o indivíduo, e não a instituição. Se um policial mata um inocente, ninguém pune a polícia, pune o policial. Não podem generalizar. Essa confusão de Joinville está respingando em todo o país. Aqui a mídia não tem outro assunto, diz que o clube financia isso e só taca pau na gente – desabafa o vice-presidente da Camisa 12 do Internacional, que também critica os temas abordados pela mídia em relação às torcidas: – A mídia hoje só fala de torcida para falar de problemas que são da sociedade toda, como a violência. Dos nossos projetos sociais eles não falam. Da nossa sopa que a gente distribui, dos chocolates que a gente entrega na Páscoa, agora no Natal vamos fazer outra ação social. E não fazemos isso para limpar nossa barra; fazemos porque queremos ajudar mesmo. Mas isso não passa no noticiário, porque não vende como as tragédias.
As torcidas organizadas costumam ser divididas em “famílias”, que identificam basicamente suas localizações geográficas, por serem muito grandes. Normalmente, as maiores têm sedes próprias e até sub-sedes, com diretores atuantes, funcionários e reuniões durante a semana. A renda vem das mensalidades dos sócios e eventualmente de apoio dos clubes. Algumas organizadas se tornaram também escolas de samba e disputam o carnaval, como é a Mancha Verde (Palmeiras) e a Gaviões da Fiel (Corinthians), ambas de São Paulo.
História das torcidas
A primeira torcida organizada a surgir no Brasil foi a Torcida Uniformizada do São Paulo (TUSP), em 1939. As primeiras identificações entre os torcedores foram as roupas e os instrumentos, que começavam a entrar nos estádios. As torcidas tocavam os hinos dos clubes e marchinhas carnavalescas. A inclusão de músicas nos estádios gerou polêmica. Alguns jogadores reclamavam que as músicas atrapalhavam o jogo. O caso foi levado à Justiça, que permitiu os instrumentos com o argumento de que iria abafar os palavrões no estádio. Atualmente, as torcidas entoam músicas que trazem palavrões em suas letras.
A partir da década de 60, começaram a surgir as torcidas chamadas de jovens, que se opunham às primeiras, denominadas de charangas. Enquanto estas charangas davam apoio incondicional aos clubes, essa nova geração tinha como característica o protesto, quando o clube não ia bem. As charangas costumavam nascer dentro dos próprios clubes, sendo, ás vezes, fundadas pelos próprios sócios, o que facilitava fiscalizações internas de conduta dos seus membros. Já as jovens, inicialmente, não tinham ligações diretas com os clubes.
A torcida organizada do Corinthians Gaviões da Fiel, por exemplo, foi fundada em 1969 justamente para fazer oposição ao presidente do clube. A Gaviões tinha como lema “força independente”, em alusão a essa oposição. A presidência do Corinthians respondeu, fundando em 1971 a Camisa 12, garantindo apoio nas arquibancadas.
A relação entre a direção do clube e as torcidas é, portanto, antiga. As organizadas costumam dar apoio nas campanhas eleitorais internas dos clubes, que, por sua vez, organizam caravanas e oferecem ingressos. Os primeiros líderes de torcidas se caracterizavam, principalmente, pelo carisma. Com o passar do tempo, alguns passaram a se destacar pela sua força física nos grupos que pretendem brigar.
Para Bernardo Buarque de Hollanda, professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais/CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a mudança no perfil das torcidas organizadas ocorreu ao longo da década de 70.
-Em âmbito internacional, deflagra-se a crise de valores e de gerações, por meio da emergência da juventude como protagonista de uma história ambígua de contestação e de adesão à sociedade envolvente, em particular as transformações do capitalismo de então.Em escala nacional, pode-se apontar a ditadura militar, com suas influências, diretas e indiretas, sobre a juventude brasileira, em específico os estudantes. No nível futebolístico, a criação de um Campeonato Nacional de clubes, a partir de 1971, levou as torcidas à necessidade de uma maior estruturação interna, para as caravanas, que contribuíram para construir uma identidade juvenil e um estilo de vida ao redor do futebol.
Apesar de o estatuto ter sido criado em 2003, o problema de violência nos estádios já tem mais de 20 anos. É o que aponta Bernardo.
- As torcidas tornam-se caso de polícia em 1988 com a morte de Cléo, líder e fundador da Mancha Verde, do Palmeiras. Em termos judiciais, o fenômeno deriva da chamada “batalha campal” do Pacaembu, ocorrida em 1995, quando Mancha Verde e Independente são proscritas dos estádios. –
Cléo foi assassinado a tiros, aos 23 anos de idade, em uma tocaia armada em frente a sua casa. A “batalha campal” de 1995 ocorreu em um jogo da final da Supercopa São Paulo de Futebol Júnior entre Palmeiras e São Paulo, quando palmeirenses invadiram o campo para comemorar a vitória. Os torcedores do São Paulo se sentiram provocados e entraram em campo, iniciando o confronto. Eles se valeram de paus e pedras de uma parte do estádio que estava em obras. O confronto deixou 101 feridos e um morto, o adolescente são-paulino Márcio Gasparin da Silva, de 16 anos, assassinado em frente às câmeras. O torcedor palmeirense que apareceu nas imagens dando uma pancada com um pedaço de madeira na cabeça de Márcio ficou preso por 12 anos. Desde então, bandeiras e mastros são proibidos nos estádios paulistas.
*Colaborou Igor Novello
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