Miguel Pereira* - aplicativo
06/12/2013Uma forte tempestade abre o último filme de Bille August, Trem noturno para Lisboa. Uma cena comum no cinema. No entanto, aqui ela tem uma conotação não atmosférica. É o prenúncio de um percurso acidentado que será vivido durante a jornada do seu protagonista. A forma e o jeito de ser são do gênero policial. A realidade narrada, no entanto, é uma investigação histórica que deseja acertar as contas com o tempo vivido durante a ditadura salazarista e a preparação da Revolução dos Cravos. É um olhar de dentro que tenta compreender não apenas a questão política, mas os afetos que a atravessam. Assim, vale pouco a fidelidade aos fatos e muito o processo enquanto espaço humano da construção de uma utopia ou de um futuro diferente do presente. Baseado na obra homônima de Pascal Mercier, o filme segue a trama canônica de uma investigação pessoal cujo mistério se revela ao longo do relato.
Como resultado desse procedimento, o entrelaçamento das tramas centrais e paralelas segue uma lógica que nada tem de novelesco, mas se propõe ser uma autorreflexão sobre a construção da história e suas fragilidades discursivas. São faces diferentes de um ambiente político-social que não deve ser mitificado. Os protagonistas da história passada são tão frágeis quanto cada um de nós é hoje. Conflitos internalizados e guardados no coração geram ressentimentos e formas não libertárias de viver. A sociedade não sai da opressão sem que a liberdade seja um sentimento íntimo de cada um, cidadão do hoje e do ontem. É esse olhar libertário que Bille August lança para o espectador de seu filme. No fundo, os dilemas permanecem os mesmos. O professor interpretado, com sutilezas e elegância, por Jeremy Irons é um curioso do bem. Seu gesto inicial de salvar a jovem suicida já integra a sua forma de ser e viver. É talvez a atitude de um pedagogo à moda antiga que precisa ser ressuscitado. O seu comportamento radicalmente ético incomoda. Mas, de certa maneira, é desse ser íntegro que tanto necessitamos nas sociedades contemporâneas.
Sem ser moralista, Trem noturno para Lisboa consegue a façanha de se colocar na contramão do moderninho, dando o seu recado simples e objetivo para nos dizer que o hoje e o ontem estão ligados em natureza e potência transformadora. O melhor está para vir, pois o que é não conta mais. Uma filosofia pequena e singular, assim como uma dramaturgia simples, fazem do filme de Bille August um painel humano sobre o qual devemos prestar muita atenção para não repetirmos o mesmo. Nossa vida avança e muda, não importa em que momento dela estejamos. O filme de August tem uma estética cuja atmosfera ressalta a beleza de Lisboa e serve como uma luva à sua abordagem minimalista dos sentimentos e tramas, além de um elenco de grandes intérpretes. É para ser apreciado sem preconceitos e com a visão sábia de seu protagonista que insiste no discernimento de si, como arma contra a ignorância.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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