Coincidência ou não, estão em cartaz três filmes que abordam questões relacionadas com o tema das crises globais e suas consequências para a vida dos homens e das nações. O conselheiro do crime, de Ridley Scott, estampa as atrocidades do mundo do tráfico; O capital, de Costa Gavras, entra nos meandros financeiros e suas especulações, principais responsáveis pelas últimas crises do sistema econômico planetário; e o surpreendente Blue Jasmine, de Woody Allen, que embora não deixando o humor de lado, mostra a tragédia desse ciclo perverso, estampada nos endinheirados, participantes ativos das falcatruas. Este olhar cético e ao mesmo tempo demolidor de um sistema de valores que embasa as relações humanas e as joga no abismo é o centro da narrativa do filme. É como se Woody Allen quisesse nos apresentar um retrato do mundo em decomposição moral acelerada. Suas flechas não poupam ninguém. As primeiras imagens já definem essa atenção multilateral. O avião, símbolo da prosperidade global, singra as nuvens, e focaliza uma linda mulher, falando, ininterruptamente, com uma senhora ao seu lado que apenas escuta. A cena continua na chegada ao aeroporto quando finalmente a senhora encontra o marido, que a salva dessa situação desagradável. Esse momento de humor negro, característico da fórmula cinematográfica de Woody Allen, é o tom principal da obra. Um a um, todos os personagens vão sendo construídos e desconstruídos, isto é, virados pelo avesso. Suas duplas vidas aparecem nuas e cruas.
Esta estratégia faz com que o tempo e o espaço do filme sejam elaborados numa lógica episódica e não numa história narrada com princípio, meio e fim, procedimento, geralmente, utilizado pelo cineasta americano. Assim, do passado para o presente e vice-versa, os perfis dos personagens mudam e sempre se adensam num novo contexto revelador de situações que fogem ao controle pessoal de cada um. A ambiguidade que daí resulta é exatamente o trunfo narrativo maior de Woody Allen. Se de um lado a crise econômica está por trás de todas as existências, por outro cada personagem se comporta com suas características individuais profundas, e aí não há salvação. A imagem final é a expressão da tragédia humana em sua mais pura realidade. Ela vem logo depois do encontro entre mãe e filho que sela o sentido trágico do relato de Allen.
E o tradicional humor que sempre cobre os filmes de Woody Allen está no seu olhar quase cínico para as relações afetivas em que a dignidade dos personagens parece fugir pelos intervalos das imagens. As cenas da protagonista com o dentista são antológicas. Mas, também o são outras que acabam produzindo um certo bom humor nesse ambiente carregado em que o filme se desenvolve. Blue Jasmine é um filme singular que revela um novo olhar de Woody Allen sobre o mundo atual. É impossível não registrar a interpretação intensa da bela Cate Blanchett, além de um criativo escore musical e uma excelente fotografia de Javier Aguirresarobe.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa