Luis Edmundo Sauma - Do Portal
10/11/2013Afonso Celso Garcia Reis foi um jogador pioneiro. Não por ter inventado algum drible ou tática diferente, embora lhe sobrasse categoria para isso. Destreza e disposição também não faltavam nas lutas fora de campo, em busca de melhores condições de trabalho. Proibido de treinar e jogar no Botafogo por ter cabelos compridos e barba longa, o ex-meia entrou em litígio com o clube e tornou-se um dos primeiros atletas do país a ser dono do próprio passe (vínculo entre atleta e clube), na década de 1970. Assim desfilou a habilidosa canhota nos quatro grandes cariocas, no Santos, no América Mineiro, no Madureira.
Politizado, formado em Fisiatria pela Escola de Medicina e Cirurgia do Rio, Afonsinho destacou-se por defender sua categoria profissional e por apoiar movimentos contra a ditadura militar. Do alto de seus 66 anos, tem autoridade para avaliar a mais recente mobilização dos jogadores atrás de avanços trabalhistas, batizada pretensiosamente de Bom Senso Futebol Clube. Liderado pelo zagueiro Paulo André, do Corinthians, e o meia Alex, do Coritiba, o grupo reivindica, por exemplo, "fair play financeiro", um calendário menos extenuante e mais participação nas decisões políticas. Em entrevista, por telefone, ao Portal PUC-Rio, Afonsinho, hoje colunista da revista Carta Capital, opinou também sobre o momento do futebol brasileiro, a Copa de 2014 e as manifestações populares.
Portal PUC-Rio: Como o senhor, um dos defensores do passe livre, avalia essa recente mobilização dos jogadores em busca de melhores condições de trabalho?
Afonsinho: É a melhor coisa que pode acontecer. Vem em boa hora. Os jogadores devem se unir, juntar forças, para buscar sua participação nas decisões políticas e reivindicar seus direitos.
Portal: Das causas levantadas pelo Bom Senso FC, como um calendário menos intenso e a maior participação dos jogadores nas decisões políticas, qual o senhor considera a mais importante?
Afonsinho: O calendário está sendo muito debatido, é importante. Mas, na minha opinião, a reivindicação principal é o aprofundamento do poder de decisões junto à CBF. Com a maior participação política, os jogadores passam a ter voz nas outras questões, fica mais fácil resolver os outros pontos. Sem essa influência junto aos dirigentes, os atletas podem até conseguir algo agora, mas não ganhariam tração para discussões futuras.
Portal: O senhor se considera uma inspiração para esses atletas?
Afonsinho: É uma sequência, eu não inventei a pólvora. É uma luta contínua por mudanças, avanços. Existe até uma relação com a escravidão, a conquista gradual de direitos. Teve a minha contribuição, depois a democracia corintiana, agora é o Bom Senso.
Portal: O senhor e o Sócrates (morto no ano passado) tornaram-se, em épocas distintas, exemplos de ativismo no futebol e até fora dele, envolvendo-se em lutas cívicas contra a ditadura militar. Faltam, hoje, jogadores mais ativos politicamente?
Afonsinho: Acho que é relativo ao momento. Hoje em dia, o jogador é muito desencontrado em termos de classe. O futebol e a sociedade em geral passaram por uma transformação em busca do individualismo. Creio que essa comparação com o passado é prejudicial, o que passou, passou. Nós (os jogadores) devemos aproveitar esse momento de manifestações para nos organizarmos: a atuação deve ser a mais intensa possível.
Portal: Apesar da reconhecida habilidade, o senhor se notabilizou mais pelos feitos fora de campo do que pelos títulos (bicampeão carioca em 1967/68 e campeão brasileiro de 1968, ambos pelo Alvinegro). Isso lhe causa alguma frustração?
Afonsinho: Não chega a ser uma questão de bom ou ruim, é uma constatação. Essas duas histórias correm juntas. Obviamente, meu trabalho era ser jogador de futebol. Mas minha carreira acabou sendo curta, e, depois de passada pela peneira, foi mais lembrada pelas minhas atividades extracampo. Até hoje, trabalho como médico, tenho uma coluna na Carta Capital (substituiu o ex-jogador Sócrates), mas ainda sou muito apaixonado pelo futebol.
Portal: Falando sobre futebol, qual a sua opinião sobre o Campeonato Brasileiro? Muitos cronistas consideram o nível técnico baixo...
Afonsinho: Para mim, a irregularidade é a marca maior, a tônica desse campeonato. Como diz a música de Gal Costa: “Tá tudo solto na plataforma do ar”.
Portal: E a seleção? O elenco montado por Felipão está no caminho certo para o sonhado hexa?
Afonsinho: A expressão corporal do Felipão diz tudo. Não houve uma preparação, acabaram por trocar o treinador, a própria cúpula da CBF passou por mudanças. Para mim, o treinador busca desesperadamente fazer um time. A menos de um ano da Copa, nós não temos uma equipe. Felipão tenta reunir os jogadores por 30 minutos e formar um coletivo, é uma luta contra o tempo.
Portal: Caso o treinador consiga entrosar a equipe, o Brasil se confirma favoritos ou um dos favoritos para ganhar a Copa?
Afonsinho: De jeito nenhum. Nosso maior trunfo é o fato de sermos sede. Não estamos fazendo um bom trabalho, nem vivendo um bom momento no futebol, longe disso. A Copa vai acontecer quando nosso futebol está no fundo do poço, ao contrário de 1950, quando estávamos em evolução. Naquele tempo, a competição ajudou a construir um valor cultural. Para o ano que vem, Espanha e Alemanha estão muito melhores do que nós.
Portal: Ainda em relação à Copa, o senhor acredita que o legado para o país seja positivo?
Afonsinho: O desrespeito ao cidadão chegou a um ponto inaceitável, as manifestações mostram isso. Mas é difícil classificar entre bom e ruim, é uma questão complexa. Se pegarmos o conceito, fazer uma Copa do Mundo no Brasil, o país do futebol, é maravilhoso. Apesar disso, escolhemos o pior momento para realizá-la, em termos de relações humanas. Há um desequilíbrio no neoliberalismo, e um predomínio dessa ideia perversa. A suspeita de superfaturamento das obras e a projeção de estádios virarem elefantes brancos podem até tornarem-se positivas, pois ajudariam a fazer pressão sobre os governantes, por meio das manifestações.
Entenda o que é o Bom Senso Futebol Clube O movimento nasceu no final de setembro, após a divulgação do calendário para 2014. Insatisfeitos com, entre outros, o número excessivo de jogos, jogadores como Juninho Pernambucano (Vasco), Alex (Coritiba), Alexandre Pato (Corinthians) e Rogério Ceni (São Paulo) se uniram para reivindicar melhores condições para o futebol brasileiro. Segundo o grupo, os pontos prioritários nesse momento são: A reformulação do calendário nacional, um período de férias igual ou superior a 30 dias ininterruptos, sem contar a pré-temporada (por conta da Copa do Mundo, os jogadores teriam apenas 17 dias entre o fim do Brasileirão 2013 e o início dos Estaduais de 2014, e a pausa para a competição internacional, em junho), um aumento da pré-temporada dos clubes, que hoje é de aproximadamente duas semanas, maior participação no conselho técnico das federações e o fair play financeiro, que endossa a segurança contra atrasos salariais por parte dos clubes. Na última segunda-feira (28), Seedorf (Botafogo), Fernando Prass (Palmeiras), Juan (Internacional) e Alessandro (Corinthians) se reuniram com a TV Globo (detentora dos direitos de transmissão), a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), alguns clubes (Corinthians, Flamengo, Vitória, Atlético-MG, Coritiba, Internacional e Fluminense), a Associação Nacional dos Árbitros de Futebol (ANAF) e a Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf). Ficou acordado que o calendário do ano que vem será mantido, mas a temporada de 2015 deve sofrer alterações. |