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Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2024


Opinião do Professor

A crise de representação vai além do jornalismo

Carla Rodrigues * - aplicativo

26/09/2013

 Reprodução

O episódio da agressão ao repórter da GloboNews Julio Molica, ex-aluno da PUC-Rio, meu ex-aluno, marcou de forma singular o debate sobre a crise do jornalismo contemporâneo, suas perspectivas e limites. Nada justifica a agressão física sofrida por Molica, nada a relativiza, nada a legitima, assim como nada justifica bala de borracha em repórteres e fotógrafos, estas disparadas pela Polícia Militar. A agressão a Molica é marca singular por ele não ter sido agredido pelas forças de repressão, mas por manifestantes e integrantes do coletivo Mídia Ninja, suscitando um debate – a meu ver falso – sobre quem tem ou não tem direito de estar nas ruas cobrindo as manifestações. Todos temos o direito ao espaço público, mas alguns estão neste espaço em nome de uma tarefa.

Ser repórter é estar na rua em nome de, como representante de, como testemunha autorizada a reportar à sociedade aquilo que se vê, se testemunha, se investiga. Por mais que os repórteres gostem de se ver como heróis solitários em busca da notícia, este “self missionário” – para usar a ótima expressão da pesquisadora Michele Roxo – é uma maneira no mínimo romântica e ingênua de compreender as complexidades da profissão. Pensar a profissão de jornalista é, entre outras coisas, contribuir para desmistificar essa ideia. O jornalista é um mediador autorizado, em nome de um órgão de imprensa, identidade inseparável da sua função social. Reconhecer esse lugar significa repudiar duas vezes a agressão contra Molica: primeiro, contra a sua integridade física como repórter; segundo, a partir da perspectiva de que agredi-lo é uma forma violenta de cerceamento do trabalho da imprensa.

Meu argumento é que esse duplo repúdio não é suficiente para pensar o fenômeno das agressões, que se articulam inexoravelmente com a crise de representação pela qual passa o jornalismo. Crise de representação que não se limita ao jornalismo, mas que o inclui e o abarca, e não por acaso uma das palavras de ordem das manifestações tem sido “Fulano não me representa”, sentença na qual “fulano” pode ser desde um jornal até um deputado, desde uma emissora de TV até um ministro.

Pensar o fenômeno das agressões aos jornalistas é antes de tudo reconhecer como políticas as diversas formas de manifestações que também se voltaram contra a imprensa. E para pensar o fenômeno da rejeição à imprensa não basta pretender defendê-la como mecanismo necessário das democracias modernas. Se é função da imprensa ouvir a voz das ruas, é também ouvir o que as voz das ruas está dizendo sobre o papel desta imprensa.

Para isso, é preciso aceitar incluir nesta reflexão a crise da representação a que me referi, reconhecendo, por exemplo, que não cabe à imprensa deslegitimar formas de manifestação política, ainda que essas usem a violência como expressão. Caberia refletir sobre como os discursos que sustentam a dicotomia entre vândalos versus manifestantes pacíficos não dão conta de compreender as manifestações das ruas, assim como a dicotomia imprensa tradicional versus ninjas é insuficiente para compreender as transformações e as complexidades do jornalismo hoje. Apenas pensar a partir deste binarismo – a vítima versus o agressor, por exemplo – é reproduzir um dos problemas do jornalismo hoje, que insiste em pensar os fenômenos sociais a partir de dois lados. O que muitos de nós, professores, estamos fazendo na universidade é tentar ensinar aos alunos que não é mais possível pretender exaurir a complexidade da vida social apenas “ouvindo o outro lado”. Numa sociedade complexa e plural, tudo tem muitos lados, visões, perspectivas, contextos, e melhor será o jornalismo quanto mais se puder ampliar a gama de visões que se manifestam numa sociedade democrática.

Desde que comecei a lecionar jornalismo no curso de Comunicação Social da PUC-Rio, lá se vão oito anos, tenho trabalhado insistentemente em sala de aula com o tema do esvaziamento da função social do jornalista. Não para esvaziá-la ainda mais; ao contrário, questionando os discursos que pretendem afirmar que, com as chamadas novas tecnologias de informação e comunicação – já nem tão novas assim –, a liberdade de publicação e o fim do modelo emissor-receptor (também nunca assim tão bem dividido), a sociedade não precisa mais da imprensa.

Repito frequentemente a frase da também professora Silvia Moretzsohn (UFF): “O jornalista é aquele profissional autorizado a estar onde o público não pode estar, e por isso tem direito ao acesso a fontes através das quais pode apurar as informações necessárias à sociedade”. Essa é a condição que lhe garante o reconhecimento social de seu papel de mediador, e que lhe impõe a responsabilidade de representar um órgão de imprensa. Molica estava na rua como representante de um órgão de imprensa,  como mediador entre a notícia e a sociedade, e a violência contra ele precisa ser pensada a partir dessa condição.

 Reprodução Na universidade, fazemos um esforço de reflexão que contribua para a qualidade do jornalismo e do jornalista. Foi com este objetivo que organizei o livro Jornalismo on-line: modos de fazer (PUC-Rio/Sulina, 2009), no qual publico um artigo e reúno autores que problematizam questões como a formação do jornalista, a convergência de mídia como mecanismo de exploração e de esvaziamento intelectual do profissional de imprensa, e a pressão por audiência e resultados como forma de reprodução de um modelo de notícia como mercadoria. Discutimos sobretudo o problema da mediação, dos riscos de seu esvaziamento, e trago para o debate autores plurais, como Manuel Pinto, um crítico da “desintermediação”, e Carlos Castilho, para quem o jornalismo colaborativo é a saída para uma imprensa cada vez mais pautada por interesses econômicos e menos sensível aos interesses sociais. O fato de discordar de algumas de suas posições nunca me impediu de reconhecer a importância de suas reflexões sobre as transformações trazidas para a profissão pelas novas tecnologias nem de debater seus argumentos em sala de aula, seguindo o caminho da pluralidade que caracteriza o ambiente universitário.

Compartilho com meu amigo e jornalista Paulo Roberto Pires a crítica ao que ele chama de “desintelectualização programática do profissional do jornalismo”, processo que data pelo menos dos anos 1970, e com o qual muitas vezes os cursos de jornalismo foram acusados de contribuir, na medida em que passaram a enfatizar a formação técnica em detrimento do que deveria ser uma formação humanista. Na universidade, tem sido um desafio problematizar mais uma das dicotomias que impregnam o jornalismo, como se tecnologia e reflexão fossem coisas excludentes. A discussão está presente nas salas de aula e nos fóruns acadêmicos, nos quais cada um de nós também reconhece os problemas e as responsabilidades na formação do jornalista, os desafios diante das exigências do mercado e dos requisitos acadêmicos, que, se não são excludentes, também não podem ser pautados por uma mera relação de subordinação.

* Jornalista, doutora em filosofia (PUC-Rio), professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.