* Miguel Pereira - aplicativo
19/09/2013A ideia de que um filme pode estabelecer uma relação temporal livre e um espaço como um não lugar é uma premissa, no mínimo, ambiciosa, quando está em jogo a atmosfera do suspense. É que a imagem cinematográfica cola identidades e ações sucessivas visíveis. O que se passa fora desse quadro, de algum modo, interfere nele. No entanto, é preciso que as pistas dessa interferência sejam explicitadas ou sugeridas. É exatamente isso que o mestre Alfred Hitchcock elabora em seus magistrais filmes. A mente revela o que nela se passa através das imagens construídas para esse fim. Não foi isso que o jovem realizador Barnaby Southcombe, filho da excelente atriz Charlotte Rampling, conseguiu em seu primeiro longa-metragem, Eu, Anna, que tem a mãe com protagonista. Sua narrativa pretende abstrair as evidências cênicas e criar ambientes e personagens erráticos, como se fossem autômatos da vida e não senhores dela.
Essa despersonalização e o jogo das aparências acabam não sustentando uma dramaturgia de natureza elíptica como forma de criar o suspense no espectador. O que ocorre é um acúmulo de situações que dizem mais ou menos a mesma coisa. Parece não haver conflitos, por mais que algumas cenas sejam até bem violentas, como um assassinato, ou grosseiras, como a da mulher mais velha aconselhando a solitária e perdida Anna a comportamentos sexuais descabidos para as idades de ambas.
Southcambe escolheu ambientações cujos sinais indicam e ao mesmo tempo diluem elementos básicos da trama. Esse procedimento conduz o espectador a um entendimento multidirecional sem uma articulação mínima dos sentimentos e das ações. Em momento algum da narrativa, há indícios confiáveis de que as imagens a que assistimos são uma projeção da mente doentia da protagonista, ou expressem o seu sentimento de culpa. É como se estivéssemos diante de um enigma sem solução, elemento básico de todo relato que pretende criar o suspense. Nem mesmo a paixão do comissário se explica. Há uma inadequação física entre os personagens. O filho cineasta forçou a mão da mãe atriz, sempre excepcional em tudo que faz. Só ela não garante o espetáculo que fica a meio-caminho das pretensões anunciadas.
Muito longe do cinema de Hitchcock, embora o quisesse homenagear, Eu, Anna também não convence como drama psicológico. Preferiu a fragmentação das imagens apresentadas como dados neutros, sem pulsação e força interior. Essa abordagem artificializou a trama e desencantou o espectador.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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