Arthur Ituassu* - aplicativo
15/08/2013O pior ainda estava por vir. No fim de julho, quando Javier Solana publicou o artigo "The Middle East Turmoil Trap", no site do Project Syndicate, o tema ainda era o golpe militar contra o presidente Mohammed Morsi, deposto no dia 3 do mesmo mês. Ou seja, nada perto da brutal repressão contra os partidários de Morsi, em maior parte ligados à Irmandade Muçulmana, e o subsequente estado de emergência, implementado em 14 de agosto.
Nesse sentido, se os prognósticos de Solana no artigo já eram preocupantes, pode-se imaginar como não ficam depois da violência perpetrada pelo governo egípcio contra os militantes islâmicos. O fato é que os problemas no Egito serão sentidos muito além das fronteiras do país de 85 milhões de habitantes.
Com uma sociedade dilacerada no que diz respeito à legitimidade do poder político e uma economia em frangalhos, o comportamento do governo interino no Egito favorece a Síria no conflito entre os rebeldes e o presidente Bashar al-Assad, que luta para manter sua ditadura secular e nacionalista. Afinal, Bashar al-Assad segue a linha do ex-presidente egípcio Hosni Mubarak (e do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein).
Mubarak ficou 30 anos no poder no Cairo, entre 1981 e 2011. Neste período, com o apoio maciço de Washington, levou à frente inúmeras táticas de repressão aos islâmicos no país, com a chancela dos governos conservadores na Casa Branca e um estado de emergência constante. Não à toa, islâmicos egípcios sempre estiveram na vanguarda do terrorismo internacional, inclusive com participação ativa de militantes e intelectuais radicais na al-Qaeda.
Um exemplo disso é Ayman al-Zawahiri, teólogo egípcio islâmico, líder da al-Qaeda, procurado pelos Estados Unidos. O Departamento de Estado americano oferece US$ 25 milhões por informações que levem a sua captura. Al-Zawahiri segue, na verdade, uma longa tradição de pensadores islâmicos radicais, onde se inclui o fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan-al Banna (1906-1949), discípulo do sírio Rashid Rida, que foi herdeiro espiritual de Mohammed ibn Abd al-Wahhab, o fundador do wahhabismo, seita na qual Osama bin Laden se formou na Arábia Saudita. Ou seja, não será surpresa se a volta da repressão à Irmandade Muçulmana no Egito vier acompanhada de um recrudescimento das atividades terroristas no planeta.
Da mesma forma, a situação no Egito também envolve, claro, as relações entre Israel e palestinos. Um dos grandes aliados da Irmandade Muçulmana é o Hamas, que tem forte presença na Faixa de Gaza. É pouco provável que o caos no Cairo não respingue sobre as primeiras negociações de paz entre os dois lados nos últimos cinco anos, que ocorrem neste momento em Jerusalém. A queda de Morsi retirou o apoio do Egito aos palestinos nas relações com Israel. Mesmo assim, é difícil achar que Israel ganha com tamanha instabilidade política nas suas fronteiras.
A divisão egípcia também afeta monarquias tradicionais do Oriente Médio. Os governos de Arábia Saudita e Emirados Árabes, preocupados com o radicalismo islâmico interno, foram rápidos em dar apoio, inclusive financeiro, ao primeiro-ministro interino Hazem Beblawi, após o golpe de julho. Tal ajuda pode sair mais cara após a violência recente contra os islâmicos egípcios.
O novo presidente iraniano, Hassan Rouhani, é outro que sofre com a tensão. Suas sinalizações moderadas devem enfrentar resistência interna se forem vistas como deferência a quem indiretamente sempre apoiou a repressão aos islâmicos no Cairo.
Como se não bastasse, também a Turquia é afetada com a instabilidade no Nilo. Não à toa o primeiro-ministro Recep Erdogan se pronunciou pedindo que as partes se entendam sem violência. Com a instabilidade no Cairo, o governo turco, que tem se proclamado como um modelo de convivência entre a democracia e o islamismo, até mesmo como forma de se colocar como uma liderança na região, tem seus planos atrapalhados. Além disso, com os problemas no Egito, como o próprio Erdogan prevê em seu discurso, o relativo sucesso do modelo turco não deve escapar de novos questionamentos, internos e externos.
*Arthur Ituassu é coordenador de Jornalismo da PUC-Rio e doutor em Relações Internacionais pelo IRI.
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