Miguel Pereira* - aplicativo
14/08/2013A citação da epístola de São Paulo aos Romanos dá uma das indicações do último filme de Terrence Malick. Na realidade, Amor pleno tem uma evidente inspiração bíblica e pode ser percebido como uma espécie de caminho guiado para a vida contemporânea no que diz respeito às relações amorosas. Sua postura é de uma investigação poética sobre os sentimentos mais profundos dos indivíduos que ainda acreditam no transcendente. Nem sempre a plenitude do amor se sedimenta. É passageira e insegura. No entanto, nos momentos em que acontece, produz a euforia e a beleza que o livro Cântico dos Cânticos, da Bíblia, já imortalizou e permanece como um enigma à interpretação dos exegetas. Em alguma medida, a estrutura narrativa de Malick assume em parte esse conteúdo, quando apresenta pequenas frases em alguns conjuntos de imagens, como se fossem indicativos poéticos do belo e das dúvidas existenciais.
Ao mesmo tempo, cria a figura de um padre mediador, inseguro de seu próprio ministério, que vagueia entre escombros e vidas humanas em frangalhos. É um quadro de decadência, num oásis artificial de belas casas, construídas no meio de uma terrível poluição ambiental, característica da exploração predatória que os interesses econômicos fazem com a natureza. Na primeira parte do filme, Paris domina o ambiente e as maravilhas do amor são cantadas e embaladas para construir o sublime nas relações amorosas. Na segunda parte, quando a narrativa vai para os Estados Unidos, tudo muda e o sentimento passa a viver o seu tempo de crise. Nessa modulação, o filme ganha o seu lado mais contraditório que pode ser comparado a uma ascese ou à "noite escura da alma", descrita por São João da Cruz. Essa talvez seja a reflexão mais interessante do filme, pois as provas de amor, no mundo contemporâneo, saltam como ilusões que se revelam insuficientes. A proposta estética de Terrence Malick é lançar uma pequena luz sobre esse mundo dos sentimentos mutantes e suas possibilidades de ancoragem num terreno mais experimentado e seguro. Aponta, assim, para a esperança e a reconstrução das vidas a partir de uma inspiração bíblica.
Na avaliação de muitos espectadores, o filme é arrastado e de um estilo hermético. No entanto, para os que têm o cinema como uma expressão da arte e não apenas como produto da comunicação de massa, Amor pleno é instigante e conjuga, de modo esplêndido, imagens, sons e interpretações perfeitas em suas funções narrativas, além de um escore musical de primeira grandeza, com destaque especial para Bach e Arvo Pärt, e uma belíssima fotografia de Emmanuel Lubezki.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa