Victoria Sulocki* - Do Portal
02/05/2013O Plenário da Câmara Federal deve votar, em junho, a Proposta de Emenda à Constituição nº 37/2011 (PEC 37). Se aprovada pelos parlamentares, a emenda constitucional, de autoria do deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), esvaziará o poder de investigação criminal pelos Ministérios Públicos estaduais e federal e o limitará às polícias civis e federal. Enquanto a votação não chega – são necessários 308 votos favoráveis em dois turnos para aprovar uma PEC na Câmara –, intensificam-se as discussões entre representantes do Ministério Público e da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol). De um lado, os delegados pressionam o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), por reunirem cerca de 270 assinaturas de deputados federais favoráveis à votação da PEC em plenário. Do outro, o MP, derrotado por esta lista de nomes na comissão especial criada para analisar a proposta, busca as adesões da opinião pública e de parlamentares indecisos sobre a PEC. Apesar da polarização, Alves anunciou, terça-feira passada, após reunião com o Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, representantes do MP e das polícias, a criação de um grupo que deve fazer ajustes à proposta. O grupo terá quatro representantes da Polícia, quatro do Ministério Público, dois do Senado, dois da Câmara, um do Ministério da Justiça e anunciará as mudanças até 30 de maio.
A convite do Portal, a professora do Departamento de Direito da PUC-Rio Victoria Sulocki esclarece, no artigo abaixo, alguns pontos importantes e pondera que a discussão sobre a PEC 37 deve ir além do reducionismo que polariza as opiniões em torno de "não à impunidade" e "autonomia da polícia". Ela afirma que ambas posições devem passar pela Constituição para fugir de um "Fla-Flu jurídico-constitucional" e da esterilização do debate.
PEC 37: por um debate sem reducionismos
A discussão sobre a proposta de emenda à Constituição de n.o. 37/2011, mais conhecida como a PEC 37, vem se limitando aos midiáticos lemas “não à impunidade”, por parte do Ministério Público; ou, de outro lado, “pela autonomia da polícia”, como se estivéssemos em um “Fla-Flu” jurídico-constitucional, deixando de lado o cerne importante da questão: o modelo processual penal escolhido pela Constituição da República, qual seja o sistema acusatório.
Nunca é demais transcrever o texto da proposta de emenda, já que os debates têm convenientemente esquecido dele, que é bem simples e não suprime qualquer outra norma já existente em texto constitucional, mas apenas acrescenta ao artigo 144 da Constituição Federal, no capítulo dedicado à Segurança Pública, o parágrafo 10 explicitando que “a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1.o. e 4.o. deste artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal respectivamente.”
Assim, a disputa se dá pelo próprio sentido e alcance da investigação criminal no Direito Brasileiro, e os órgãos que nela intervirão. Em última análise, trata-se de uma disputa por poder. Toda vez que falamos de crime, também falamos de poder punitivo estatal, portanto do poder mais violento que o Estado possui frente ao cidadão comum. Por esta razão, embora seja um procedimento preliminar, portanto pré-processual, o procedimento de apuração de infrações penais deve ser entendido no marco da Constituição Federal, sob a ótica de que os direitos e as garantias fundamentais da Carta Maior constituem o próprio processo penal democrático, significando os limites a este poder punitivo estatal. O sistema acusatório se caracteriza, para dar uma definição muito breve, pela clara distinção entre as atividades de acusar, Ministério Público, e julgar, Poder Judiciário, sendo a iniciativa probatória atribuída às partes, Acusação e Defesa, em igualdade de oportunidades, mantendo-se o juiz como terceiro imparcial.
Nesta estrutura, as atribuições de cada órgão público envolvido em investigações são definidas pela própria Constituição da República, não havendo margens para desvios na atuação estatal, como, por exemplo, investigação exclusiva pelo Ministério Público, que sendo parte do processo penal investigará, por ser de sua natureza, apenas os fatos e indícios que interessem à acusação, ou atuação policial livre dos controles, o que também não é permitido pela Constituição, uma vez que atribui ao Ministério Público este controle externo.
Neste sentido, a PEC 37 não retira qualquer dos poderes constitucionalmente conferidos desde 1988 ao Ministério Público; particularmente os previstos no artigo 129, incisos I, VII e VIII da Constituição Federal que dispõe ser a promoção da ação penal pública privativa do Ministério Público, ser função institucional do Ministério Público o controle externo da atividade policial, além de ter o Ministério Público poderes para requisitar diligências investigatórias e instaurar inquérito policial. Portanto, em relação à atuação do Ministério Público, a PEC 37 não traz supressões de atribuições, ou mesmo mudanças no amplo campo de atuação do órgão ministerial.
De forma reducionista, o tema da PEC 37 se limitou à questão: pode ou não pode o Ministério Público investigar? Como já vimos acima, a promoção de ação penal pública é privativa do Ministério Público, portanto a investigação criminal é dirigida para coligir elementos que embasem denúncia e, como tal, pode o órgão requisitar tanto a abertura de inquéritos quanto diligências investigatórias, para não falar da obrigatoriedade de exercer o controle externo da atividade policial.
A obediência às regras do jogo, no caso as regras constitucionalmente estabelecidas, é condição sine qua non para a vida democrática, não sendo suscetíveis de flexibilizações ou reducionismos, não podendo serem sacrificadas no altar do utilitarismo processual em nome de um eficientismo penal que, ao longo do tempo, corroerá o Processo Penal Democrático, constituído pela Carta Política de 1988, afetando o próprio Estado Democrático de Direito. O debate acerca da PEC 37/2011 não escapa dessa obediência às regras do jogo, devendo todas as diferentes posições passarem pelo crivo dos princípios da Carta maior, sob pena de ficarmos assistindo um debate estéril que pode reforçar um estado policial que de há muito pensamos deixar no passado.
* Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio
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