Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2024


País

Pobreza extrema ainda desafia o Rio dos cartões-postais

Tiago Coelho - Do Portal

21/08/2012

Tiago Coelho

A poucos metros de cartões-postais como o Pão de Açúcar, próxima de estruturas como o Maracanã, cuja reforma movimenta R$ 1 bilhão, no coração da segunda cidade mais rica do país, a família de Gorete de Souza vive uma realidade comum aos 586 mil fluminenses que, segundo o Censo 2010 do IBGE, ainda amargam a pobreza extrema no Estado do Rio. Gorete mora no Morro Santo Amaro, no Catete, em plena Zona Sul carioca. Lá do alto, a deslumbrante vista para o Aterro do Flamengo e para a Baía de Guanabara contrasta com a pequena casa de três cômodos e a dificuldade diária para pôr comida na mesa.

Em meio ao mar de investimentos prometidos ao Estado até 2016, quando acolherá a tão sonhada Olimpíada, a família de Gorete é uma ilha de pobreza onde ela e os cinco filhos sobrevivem com menos de R$ 70 por mês cada um. Para o governo federal, vivem em situação de pobreza extrema as famílias cuja renda per capta é inferior a R$70.

À margem dos holofotes e dos orçamentos generosos especialmente destacados em períodos eleitorais, a cearense radicada no Santo Amaro sonha que parte dos R$ 181,4 bilhões destinados ao Rio pelas iniciativas pública e privada, até 2013, possa ajudá-la a sair do buraco. Um buraco no qual, a despeito dos avanços decorrentes dos programas de distribuição de renda, ainda estão aproximadamente 16,2 milhões de brasileiros. O drama de Gorete abre a série de três reportagens que dão feições a esses números insistentes, alheios às ambições e aos discursos de sexta economia do mundo. 

Desempregada, vivendo de bicos como doméstica, Gorete, 43 anos, sustenta a família com R$ 198 do Bolsa Família e R$ 120 do Cartão Carioca, ação de distribuição de renda do município. Na casa dividida com os cinco filhos, a renda mensal permite que cada um viva com R$ 53 por mês, R$ 1,73 por dia. No pequeno barraco de três cômodos, 18 metros quadrados no total, a ripa que sustenta o telhado está envergando e corre o risco iminente de cair. A parede  da cozinha, polvilhada de rachaduras, também pode ceder a qualquer momento. Gorete sabe do perigo, mas reluta em chamar a Defesa Civil. Teme ser levada com a família para um local distante e diz que não tem como pagar a mensalidade do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, no qual tentou se inscrever.

Tiago Coelho – Tenho medo de nos mandarem para um abrigo longe. Pelo menos, aqui tenho tudo perto: escola, hospital. Se formos para um abrigo provisório, vão nos mandar para um lugar distante. Já tentei me inscrever para o Minha Casa, Minha Vida, mas não sei se consigo pagar. Queria que dessem um jeito na minha casa. Minha vida é aqui – aflige-se Gorete, que mora há mais de 30 anos no Morro Santo Amaro.

Às vezes a fome assola a casa de Gorete. Mesmo com a comida controlada, um racionamento obrigatório diante do orçamento familiar, não raramente falta "alguma mistura" e ela precisa da ajuda de vizinhos. Segundo a doméstica, com filhos pequenos, entre 7 e 12 anos, e a ausência de familiares com os quais possa deixá-los parte do dia dificultam a busca por emprego. Uma parcela do que ganha fazendo faxina ou passando roupa é usada para pagar alguém que cuide das crianças enquanto faz os bicos. No alto do morro, as crianças contam apenas com uma pequena quadra de piso irregular para brincar.

Com quatro crianças e um adolescente em casa, Gorete de Souza personifica mais uma estatística: 36% das mães no Brasil são chefes de família, estima pesquisa do Ibope. Os filhos da cearense têm pais diferentes – desconhecidos, mortos, ausentes.

– Dois dos pais deles morreram. Dois sumiram e um mora aqui perto, mas não ajuda em nada – resume Gorete, como se sintetizasse um Brasil renitente.

A única renda garantida da família vem da assistência do governo. Para aplacar os tentáculos da miséria, "é necessário mais do que os importantes programas de distribuição de renda", lembra o economista Francisco Menezes, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Na avaliação dele, é igualmente essencial oferecer serviços de qualidade que deem apoio para que as famílias superem a pobreza de forma mais ampla:

– Uma mãe que não tem creche perto de casa para deixar os filhos representa um tipo de carência que dificulta a entrada no mercado de trabalho – exemplifica – Conheço caso de mães que saem para trabalhar e deixam os filhos trancados em casa. É uma situação muito perigosa.

Gorete gostaria, como milhões de brasileiros em apertos semelhantes, que os filhos estudassem em tempo integral na escola. Argumenta que, assim, as crianças poderiam se alimentar e ficar em segurança enquanto ela trabalha.

– Tenho muito medo de ficarem jogados por aí. É difícil sair para trabalhar e deixá-los com qualquer um – desabafa.

O sufoco é sugerido pelo barraco remendado, mal iluminado e pouco arejado. A ventilação na casa passa apenas por um pequeno basculante ou pela única porta da residência, na qual políticos colam cartazes pedindo votos. A falta de circulação do ar faz proliferar o mofo sobre as paredes úmidas de infiltração. Na despensa e na geladeira a comida teima em acabar antes da hora:

– Estou passando um perrengue. Falta muito para acabar o mês e só tem um pouco de arroz, feijão e fubá. Às vezes eles pedem pão, leite, e não tem.

Custo de vida carioca dificulta saída da pobreza e exige ajuste nos parâmetros de avaliação

Não é preciso andar muito na comunidade de Santo Amaro para encontrar dramas parecidos. Quatro lances de escada acima da casa de Gorete, depois mais cinco lances abaixo, mora Tereza Ribeiro do Nascimento, 45 anos. No barraco de três cômodos, 15 metros quadrados, metade feito de tábuas de madeira, a outra metade de alvenaria, Tereza e os três filhos sobrevivem com os bicos do marido. Como tem de cuidar de um filho com necessidades especiais, ela também encontra dificuldade para trabalhar.

Somados o dinheiro do marido e o auxílio de programas assistenciais, a família vive com R$ 700 por mês e escapa da etiqueta "pobreza extrema" na qual se enquadram aquelas com R$ 70 per capita mensais. O parâmetro, contudo, revela-se um tanto desajustado a centros, como o Rio, em que o alto custo de vida morde com mais voracidade as receitas domésticas, pondera o secretário de Direitos Humanos e Assistência Social do Estado, Rodrigo Neves.

– Por ser uma região metropolitana, onde o custo de vida é mais alto, o repasse da renda precisa ser mais generoso. No Brasil sem miséria, o limite para medir a pobreza é de R$ 70 por indivíduo mensalmente, a partir da média nacional. No Rio, estipulamos R$ 100 per capita/mês – avalia o sociólogo formado pela Universidade Federal Fluminense.

Gorete e Tereza sabem bem o peso, na renda mensal familiar do custo de vida no Rio, que tem a terceira maior renda per capita do país, atrás só de São Paulo e do Distrito Federal. Moradora de uma das cidades mais caras das Américas, Tereza inclui, em seus gastos básicos, a compra sistemática de remédios e alimentos específicos para o filho que não consegue andar e mal sai da casa, num dos pontos mais altos do morro, de onde avista o Outeiro da Glória e o Palácio do Catete, antiga sede do governo federal.

– Não sobra quase nada. Queria fazer obra na casa, mas fica difícil. O dinheiro não dá – lamenta uma resignada Tereza.

A miséria no Estado do Rio concentra-se nas áreas metropolitanas. O estudo do IBGE aponta que, entre os que vivem na pobreza extrema, 91,5% moram na zona urbana e apenas 8,5% nas áreas rurais. 

 Tiago CoelhoTereza descarta a mudança para outra região, apesar das dificuldades impostas pela falta de dinheiro e expostas nas feições envelhecidas que sugerem mais do que os 45 anos da certidão. Também mostra-se resignada em relação à surpresa relativamente comum dos que, diante do rosto enrugado e dos cabelos brancos, descobrem sua verdadeira idade. 

– Pela cara, pareço que tenho muito mais, não é? Todo mundo diz. Mas é o sofrimento da vida que faz isso com a gente – justifica, sem apelo ao óbvio.

A avaliação da pobreza extrema

Para determinar quem vive ou não em pobreza extrema, há critérios além da renda, observa Neves. A condição da moradia, a quantidade de cômodos, a escolaridade e o vínculo de trabalho formal ou informal também contam. É o chamado índice de vulnerabilidade, do qual Gorete não escapa em nenhum aspecto.

Como não concluiu o ensino fundamental, no Ceará, as opções no mercado tornam-se limitadas. Entre os bicos e os cuidados com o lar, confessa que seu maior medo é "adoecer e não poder cuidar dos filhos":

– Tudo o que espero é que meus filhos não descambem para o lado errado. Estou tentando criar na honestidade. Mas vou te falar, a vida tá muito dura.

Para defender tese de doutorado sobre a experiência da pobreza na favela de Rio das Pedras, zona oeste do Rio, a professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Maria Sarah da Silva Telles fez uma pesquisa de campo na qual constatou casos como o de Gorete. Migrantes nordestinos em moradias precárias, carentes de políticas habitacionais e a mercê do poder paralelo:

– Acompanhei a trajetória de famílias na extrema pobreza, a maioria habitando em barraco de madeira, lutando para permanecer na favela, como a única possibilidade de permanecer na cidade do Rio, já que eram todos migrantes nordestinos. O que logo ficou claro foram a enorme carência de uma política habitacional na cidade e a absoluta dependência das lideranças locais, no caso composta de milicianos.   

No morro Santo Amaro, a Força de Segurança Nacional inibe o tráfico, enquanto os moradores seguem a rotina na padaria, nas igrejas, nos bares. Ninguém opina sobre a presença do tráfico ou da polícia. A lei do silêncio fala mais alto. Transporte público no local, só alternativo.

Para brincar "com espaço e segurança", M.P. Silva, 45 anos, leva os três filhos para o Aterro do Flamengo nos fins de semana, pois não quer seus “meninos brincando pela comunidade". Durante a semana, quando não estão no colégio, ficam “presos” dentro de casa. Certa vez uma bala passou tão perto dela que ficou horas sentindo um zunido no ouvido. Noutra ocasião, teve a casa invadida por traficante que fugia da polícia. Com o marido de licença médica, conta com o auxílio do Bolsa Família para sustentar a família reforçada de um recém-nascido.

– Dá para se virar – diz, desanimada.

Ânimo para brigar com a pobreza

 Tiago Coelho Diante da dureza, Gorete precisa buscar motivos diariamente para levantar da cama. Era uma manhã de sábado ensolarada no morro Santo Amaro quando, por volta das 10h, a equipe do Portal batia à porta. Gorete aninhava-se com as quatro crianças em uma cama de casal. O sol que ardia lá fora não penetrava na casa abafada e minúscula onde os pequenos logo pulavam agitados.

A agitação infantil era oposta aos gestos reservados de Gorete, como se procurasse forças para encarar o dia. Para Maria da Glória Rocha, coordenadora da Pastoral da Criança no Rio e veterana em trabalho assistenciais no morro, um dos principais desafios é recuperar a esperança que escorre pela falta de comida e de perspectiva:

– Quando se chega numa determinada situação de pobreza, no fundo do poço da miséria, as pessoas ficam com pouco ânimo e coragem para reagir. Levantar da cama é difícil.

 

Família ganha renda mas espera por educação e saúde

Se na cidade do Rio a pobreza extrema ainda mostra sua face em meio aos cartões-postais conhecidos internacionalmente e apesar dos recursos crescentes para a cidade, como mostrou a primeira reportagem da série Feições da Miséria, a miséria insinua-se ainda mais em áreas afastadas do centro cultural e econômico. Em Belford Roxo, na Baixada, a 20 quilômetros da capital fluminense, a renda per capita média cai para R$ 595, contra R$ 836 no Rio.

Às margens da rodovia Presidente Dutra, por onde escoa boa parte da riqueza do país, Belford Roxo está entre os 20 municípios com as maiores taxas de pobreza extrema na Região Metropolitana, ao lado de Japeri e São Gonçalo, de acordo com o Censo 2010 do IBGE. Por isso foi um dos escolhidos pelo governo do estado para receber o programa Renda Melhor. Em que pese a projeção de mais investimentos – impulsionados por eventos como a Copa 2014 e a Olimpíada 2016 e pela expansão de setores como o de óleo e gás –, o Estado do Rio reúne 586 mil em pobreza extrema. Apesar do crescimento que consolidou a sexta posição na economia mundial e dos ganhos na distribuição de renda, o Brasil é o quatro país mais desigual da América Latina, aponta relatório do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat). De acordo com o estudo, divulgado semana passada, fica atrás só de Guatemala, Honduras e Colômbia.

O avanço é lento e os desafios são grandes, como mostra a trajetória da família de Antônia Soares, que mora em um casebre na periferia de Belfortd Roxo. Tecnicamente, estão acima do limiar da pobreza extrema, pois a renda per capita mensal supera, em alguns trocados, os R$ 70 que rotulam o subsolo econômico. Os números, entretanto, não alcançam a batalha por comida, saneamento e outros serviços públicos de qualidade. Apesar de os programas de distribuição de renda terem melhorado a vida, eles refletem com precisão a desigualdade social brasileira.   

Para conhecer um pouco da rotina de Antônia Maria Melo Soares, de 41 anos, o Portal PUC-Rio percorreu quilômetros de Belford Roxo adentro até o bairro de Nova Aurora. Como havia caído uma forte chuva na véspera, fomos alertados sobre a dificuldade de se chegar ali. Ruas esburacadas e sem asfalto formavam obstáculos infelizmente ainda comuns a diversos cantos do país. 

 Carlos Serra Simpática e comunicativa, Antônia nos recebeu na modesta casa em que vive com o marido e os oito filhos ("cinco meus e três enteados"). Nos cômodos apertados, a grande família se “ajeita como pode”. Escapam dos critérios de pobreza extrema determinados pelo governo federal (R$ 70 per capta/mês) graças aos auxílios de programas de distribuição de renda como Bolsa Família (R$ 469), Renda Melhor (R$ 300) e Brasil Carinhoso (R$ 81). Assim, a renda familiar soma R$850 e possibilita que cada integrante da casa viva com R$85 por mês.

Já em relação ao parâmetro adotado pelo governo estadual (R$ 100 per capita/mês), eles estão no estágio num estágio mais rasteiro da pobreza. "Levamos em conta, no cálculo, o custo de vida no estado", explica o secretário de Assistência Social e Direitos Humanos, o sociólogo Rodrigo Neves.

Classificações à parte, Antônia, o marido e os filhos lutam para equacionar os números ralos, transformá-los em sustento e, mais que isso, em perspectivas além do amparo assistencialista. Na a contramão do Censo, que confirma a redução na média de filhos por família de 2,38 em 2000 para 1,90 em 2010, Antônia comemora a superação de "momentos dramáticos" desde que passaram a receber, há um ano, ajuda do governo.

– Teve época em que pegava dinheiro emprestado para comprar comida. Aconteceu de faltar arroz e leite algumas vezes. Já dependi muito da ajuda de vizinhos e parentes – conta Antônia.

A matriarca revela habilidades de gestora orçamentária. Equilibra o dinheiro entre a alimentação familiar e a construção da casa nova. Sonha, sobretudo, em deixar a moradia à beira de um barranco. Lá, os dias dia chuvarada significam, na melhor das hipóteses, invasão de lama.

Nos dias secos, a casa também sofre com paredes molhadas. A umidade decorrente da infiltração crônica castiga os caçulas Pablo e Moisés, de 4 e 5 anos, com alergias constantes. Antônia conta os dias para ficar pronta a casa maior que o marido Fernando, de 36 anos, está construindo, sob o castigo de uma hérnia. O sacrifício, aguardam todos, será recompensado.

– Terminar minha casa é o nosso maior sonho – empolga-se.

Outro investimento que Antônia fez com os R$ 850 mensais foi a compra de um freezer usado para conservar os sacolés e o guaraná natural cuja venda reforçam o orçamento doméstico. Ela lembra, contudo, que já ficou oito meses sem geladeira e deixava os alimentos na casa de vizinhos.

 Carlos Serra A renda familiar também é composta de trabalhos informais, obtidos aqui e ali por Antônia e Fernando, desde capinar terrenos da vizinhança até “virar massa” em serviços de pedreiro. A baixa escolaridade de ambos dificulta o acesso ao emprego formal. Assim, a educação dos filhos é uma das maiores preocupações de Antônia, que aproveita o material escolar das crianças para exercitar a leitura. Quando jovem, recorda, escrevia com papel de pão porque não havia dinheiro para caderno.

Antônia deixou a escola para ajudar em casa. Seguiu ordem do pai, que, segundo ela, dizia: "mulher vai para escola só para arranjar namorado". Carrega a tristeza de jamais ter se formado, e a aflição de ter se distanciado da chance de um emprego melhor.

Segundo o relatório Motivos da Evasão Escolar, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o desinteresse é a causa principal da evasão escolar de adolescentes entre 15 e 17 anos: 40% dos que deixam a escola alegam "falta de motivação" – justificativa que pode embutir outras razões, como insegurança e pressão familiar para contribuir no orçamento doméstico. Uma consequências da evasão é o fantasma do desemprego: 19 milhões de jovens entre 15 e 19 anos são excluídos do mercado de trabalho, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Embora estejam na escola, os filhos mais velhos de Antônia lutam contra o atraso na trajetória educacional. Suelly, de 17 anos, está na 8º ano do ensino fundamental. Pretende ser cabelereira. Pablo e Moisés, fãs do Neymar e do Wagner Love, querem jogar futebol. A única filha que pretende realizar o sonho da mãe e cursar uma universidade é Fernanda, 15 anos, que também está no 8º ano. Planeja cursar medicina. A matriarca admite ser dura com a educação deles, para que tenham as oportunidades das quais foi privada:

– Gostaria que meus filhos fizessem faculdade, mas sei que é difícil. Não temos condição de bancar. Mas aqui na minha casa todo mundo vai para escola. O que a pessoa tem na vida de melhor é o estudo.

Fora o altruísmo e a vontade legítima de ver os filhos "progredirem na vida", mantê-los na escola também é uma exigência para manter a renda mensal reforçada: a contrapartida para receber o dinheiro dos programas sociais. A socióloga Maria Sarah da Silva Telles lembra que a educação tem um papel primordial na superação da pobreza e, portanto, deve ser tão urgente quanto a política de distribuição de renda:

 Carlos Serra – Além das políticas de assistência em curso, urge aumentar os valores atribuídos aos beneficiados. E produzir políticas sociais de ponta: educação, saúde e trabalho, de modo que os empregos e salários permitam uma vida de dignidade, e que esta situação seja sustentável – sugere.

Esses serviços essenciais, como reconhece o próprio governo, ainda estão longe do ideal. Na avaliação de Antônia, a escola frequentada pelos filhos, lá mesmo em Belford Roxo, “dá para o gasto, mas às vezes falta merenda”. Antônia reclama também do posto de saúde “só com um pediatra”. Rodrigo Neves reconhece que, como a pobreza é "um fenômeno multidimensional", as políticas de combate precisam estar atreladas à distribuição de oportunidades sociais:

– Uma trajetória de inclusão social passa pela educação. Há uma disparidade muito grande do ensino público para o ensino privado. É um desafio melhorar o ensino. É fundamental para a superação da pobreza um ambiente de ensino adequado.

Os municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, também na Baixada, concentram o maior número de famílias em extrema pobreza no estado, beneficiadas com programas de destruição de renda: 35 mil e 31 mil, respectivamente. Unem-se, apesar das diferenças geográficas, sociais, econômicas e culturais, a luta de famílias pobres na capital fluminense, como a de Gorete de Souza, apresentada na primeira reportagem desta série.                                   

 Carlos Serra A história de Gorete assemelha-se, em muitos aspectos, com a de Antônia Soares: moradia precária, baixa escolaridade, desqualificação profissional, ausência de oportunidades, dependência de programas assistencialistas. Em comum, também, o fato de serem moradoras de áreas urbanas. 

Para solucionar casos assim, afirmam especialistas, são necessárias políticas específicas voltadas aos centros urbanos. Na próxima segunda-feira, na última reportagem da série, eles esclarecem as raízes destes problemas e apontam soluções para que o Brasil possa superar a pobreza extrema e renitente desigualdade social.

Erradicação da pobreza exige melhores educação e serviços

As raízes da desigualdade social no Brasil são velhas conhecidas. Remontam ao período colonial, apontam historiadores. Da concentração de terras nas capitanias hereditárias e da força de trabalho escravo baseado na violência até um processo abolicionista conveniente a proprietários escravocratas, o Brasil legava um terreno fértil ao avanço do desequilíbrio na distribuição de renda – a quarta pior da América Latina, segundo levantamento da ONU divulgado há 15 dias. Embora a estabilidade e o crescimento econômico da última década, somados a programas como Bolsa Escola e Bolsa Família, tenham reduzido os déficits sociais e promovido a badalada ascensão da Classe C, o vigor de sexta economia mundial revela-se ainda insuficiente para extinguir a miséria que assombra 16,2 milhões de brasileiros, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com menos de R$ 70 mensais por pessoa, famílias confiam no assistencialismo, na criatividade e na educação dos filhos para superar a pobreza extrema que contrasta com os cartões-postais e a projeção internacional impulsionada por Copa e Olimpíadas.  

No combate à pobreza, algumas das armas que têm se mostrado mais efetivas são os programas de distribuição de renda idealizados e aperfeiçoados por governos de diferentes colorações políticas. Do tucano Fernando Henrique Cardoso ao petista Luiz Inácio Lula da Silva e à sucessora Dilma Rousseff, o poder central vem recorrendo a este tipo de inciativa para dirimir uma das maiores desigualdades do continente. Apesar dos avanços, o desequilíbrio mostra-se inferior apenas às de Guatemala, Honduras e Colômbia, segundo o relatório das Nações Unidas sobre a região. Um atraso que destoa, por exemplo, dos investimentos estrangeiros no país – quase US$ 66,7 bilhões no ano passado – e das ambições de figurar entre cinco primeiras economias do planeta.

O Estado do Rio é um dos emblemas desse paradoxo verde-amarelo. Por um lado, comemora a volta dos investimentos e da autoestima capitaneados pelos grandes eventos internacionais. Por outro, estampa, longe dos holofotes, casos de pobreza extrema. Em 2010, o Rio foi o estado brasileiro que mais recebeu investimento nacional e internacional, conforme apontou o Relatório de Anúncios de Projetos de Investimentos (Renai), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Até 2013, receberá US$ 18,45 bilhões, projeta a Receita.

Os números portentosos ainda não alcançam os 586 mil habitantes que, segundo o Censo 2010 do IBGE, batalham contra o nível mais rasteiro de pobreza no Rio, no qual são enquadradas as famílias cuja renda per capita mensal fica abaixo de R$ 70. Indiferentes a classificações, Gorete e Antônia, e outros tantos Brasil afora, renovam a esperança de que parte dos investimentos mude suas vidas. Sonham com o básico: emprego, casa e educação para que os filhos possam ter uma vida melhor. No dia a dia assombrado pela memória e pelo medo da fome, elas encontram sabedoria para buscar trilhos menos efêmeros do que as fontes assistencialistas. Confirmam, instintivamente, o consenso acadêmico de que a solução vai além do aumento de renda. Nesta reportagem, que fecha a série Feições da Miséria, gestores públicos e especialistas discutem os caminhos para superação da pobreza e da desigualdade crônicas no país.

Educação precária contribui para a permanência na pobreza, observam especialistas

As famílias visitadas pelo Portal apresentam traços sociais comuns, que ajudam a explicar o estágio de "pobreza extrema", de acordo com classificação do IBGE: baixa escolaridade, acesso deficiente à saúde, à educação, ao lazer e ao mercado de trabalho. O baixo nível educacional os empurra para o emprego informal e mal remunerado, como bicos de pedreiro e serviços domésticos sem qualificação.  

O secretário de Assistência Social do Rio, Rodrigo Neves, reconhece a necessidade de as políticas de transferência de renda caminharem juntas de iniciativas "compensatórias" ou complementares. Um dos responsáveis pela implementação do programa Renda Melhor no estado, o sociólogo de formação ressalta que é importante "enxergar a pobreza em seus diversos ângulos":

– Sabemos que a pobreza é um fenômeno multidimensional. Não adianta resolver só o problema de distribuição de renda. Uma trajetória de inclusão social passa pela educação.

Embora o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) divulgado no mês passado tenha apontado um (pequeno) avanço em relação à avaliação anterior e escolas do Rio tenham obtido a segunda, a terceira e a quarta melhores médias do ranking nacional, o estado também conta com uma escola entre as cinco piores da avaliação. Mais um retrato da desigualdade no estado, e a confirmação do longo caminho para a educação pública tornar-se compatível, por exemplo, com as aspirações econômicas e com a carga tributária em torno de 40% do Produto Interno Bruto (PIB), a soma das riquezas produzidas no país.

Baixa escolaridade, lembram os acadêmicos, admitem os gestores, é um obstáculo, entre outros dramas, ao emprego, ou ao melhor emprego, à inclusão social e ao aumento da renda. Irriga uma ciranda difícil de ser quebrada até pelos planos de transferência de renda, observa Francisco Menezes, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundada em 1981 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.

– Trabalhar e ter uma renda são o que permite uma família sair da pobreza extrema. A falta de serviços é a principal barreira a ser vencida. Uma família no fundo do poço não tem condição de o pai e mãe procurar um emprego e nem de mandar um filho para a escola. Uma mãe que não consegue vaga em uma creche não encontra condições de entrar no mercado de trabalho – exemplifica Menezes.

O cientista político e coordenador do Instituto Mais Democracia (IMD) João Roberto Lopes Pinto, concorda com esta lógica e acrescenta que a baixa renda não é o único ponto a ser combatido pelo estado:

– A pobreza não tem a ver apenas com a renda, mas também com a falta de acesso a direitos básicos como transporte público de qualidade, saúde pública e educação pública de qualidade. O programa de transferência de renda é positivo, porém a política publica está mais focada nesta coisa de gerenciar a pobreza e não de pensar soluções mais estruturantes para a desigualdade no país.

Falta de qualificação prejudica aproveitamento de recorde de empregos

A deficiência na qualificação também prejudica o aproveitamento do recorde de geração de empregos registrado em abril desta ano na Região Metropolitana. Foram abertos 14.235 postos de trabalho, informa o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Em todo o estado, as novas vagas chegaram a 18.541. No entanto, parte delas se manterá ociosa por falta de profissionais qualificados.

Pesquisa feita, no ano passado, pela Federação das Indústrias do Rio (Fierj), constatou que 60% das fábricas instaladas no país pretendiam aumentar o número de funcionários. No entanto, a maioria delas (53%) encontrou dificuldades para preencher os novos postos de trabalho justamente por causa da escassez de mão-de-obra capacitada. 

Especializada em pesquisas referentes a pobreza e desigualdade social, a socióloga Maria Sarah da Silva Telles, do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, avalia que a solução demanda um  "trabalho estrutural":

– Se não for acompanhado de uma política de geração de empregos bem remunerados, de qualificação dos jovens da rede pública, a situação continuará precária: os cidadãos mais fragilizados precisam da ajuda do Estado para poder se sustentar, viver dignamente, pagar suas contas, acompanhar os estudos de seus filhos etc. Só assim teremos uma sociedade justa e menos desigual.

Alto custo de vida deixa os mais pobres ainda mais vulneráveis

Os altos investimentos aportados no Estado são acompanhados de um dos maiores custos de vida do continente. Os grandes eventos programados para a cidade aquecem a economia, mas também a inflação. De acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a Região Metropolitana do tem a maior inflação entre as 11 regiões pesquisadas pelo IBGE. Enquanto no país a inflação média ficou em 2,32% até junho, na região fluminense fechou em 3,16% no mesmo período. A carestia deixa as famílias mais pobres ainda mais vulneráveis, afirma Francisco Menezes:

– O Rio está caro demais. Os grandes eventos trouxeram uma explosão nos preços. A população mais pobre fica mais suscetível diante da alta dos preços, agravando a miséria no estado. Há politicas emergenciais, como cozinhas populares, mas não são suficientes.

O mar de investimento que cobre o Rio é visto com desconfiança por João Roberto Lopes, autor do livro Economia solidária: de volta à arte da associação (Editora Empório do Livro). Para ele, a lógica dos investimentos na cidade serve, sobretudo, para reforçar a concentração nas mãos de um grupo e não para beneficio "de quem realmente precisa":

– Estes investimentos estão voltados para os ganhos e negócios de poucos, uma lógica de concentração, de elitização da cidade, muito mais do que investimentos mais distributivos e descentralizados pela cidade. Não geram uma distribuição, pelo contrário, deslocam recursos que deveriam ser utilizados em políticas sociais efetivas em termos estruturantes. A ausência de recursos em políticas sociais mais efetivas acaba reproduzindo este quadro de pobreza não só no Rio mas no pais inteiro – opina.

Se no país o limite da renda per capita para uma família ser classificada em pobreza extrema é de R$ 70, no Estado do Rio este valor aumenta por causa do alto custo de vida. Para tornar mais justos os "parâmetros da miséria" no estado, Rodrigo Neves subiu o teto para R$ 100 per capita.

– Adotamos uma linha de miséria de R$ 100 por mês para cada integrante da família. Essa linha é maior que a linha do Brasil sem miséria, de R$ 70/mês. Nós consideramos que a pobreza no Rio, por ser um estado metropolitano, o custo de vida é mais alto e o limite para a linha da pobreza deveria refletir isto. Por isso uma linha mais generosa – justifica.

Francisco Menezes ressalta que o direito ao alimento, garantido pela Constituição, não deve ser barganhando como mero produto de mercado:

– O alimento é um direito. Está na Constituição. Tem que ser garantido, caso contrário há uma grave violação do direito constitucional. O alimento não pode ser tratado como mais um produto comercial a ser negociado na bolsa.

Bolsa Família apresenta resultados positivos mas insuficientes, ressalvam analistas. 

Quase 20 anos depois de o Bolsa Escola ser implantado, em 1994, no governo Fernando Henrique, e perto de o Bolsa Escola, implantado no governo Lula, completar dez anos, os programas de transferência de renda apresentam resultados positivos. Entre 2002 e 2006, a miséria no país caiu 27%, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Órgãos internacionais como o Bird e a Organização Internacional do Trabalho elogiaram publicamente o projeto e ressaltaram a necessidade de se ampliar seu uso.

Rodrigo Neves rebate as críticas aos programas do gênero nesses anos. Lembra que os planos de distribuição de renda contam, atualmente, com um cadastro único utilizado pelas três esferas de governo no país. Enfatiza que são "republicanos alheios a manipulações eleitorais". 

– Pela forma como [o Bolsa Família] foi implantado, sua gestão blindou o programa para fins eleitorais. Porque ninguém é dono do cadastro único ou do beneficio. A porta de entrada é absolutamente republicana. Além disso, um conselho de controle social formado pela sociedade civil pode receber denúncias de não-cadastramento. A seleção é feita por critérios técnicos do governo federal. O caráter técnico do trabalho diminuiu o clientelismo. Algumas auditorias foram feitas via TCU e ficou demonstrado que, independente da filiação partidária de prefeito ou governador, não houve privilégio a qualquer município – assegura.

O "republicano" Bolsa Família não deixa de ser uma importante máquina eleitoral. Em 2010, ano de eleição presidencial, uma pesquisa do Ibope constatou que 22% dos eleitores nordestinos recebiam o Bolsa Família. Na região, para cada voto em José Serra, a presidente Dilma, que representava a continuidade de Lula, logo a permanência do projeto, teve o dobro.

Neves acrescenta que o programa tem "forte controle" de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU). Ele diz também que o "efeito preguiça”, apontado como uma das principais ameaças, "não foi observado" e o Bolsa Família, assim como o Renda Melhor e o Renda Jovem no Rio, ajuda a aquecer a economia:

– Esses programas têm um peso pequeno quando se compara com o PIB. O Bolsa Família beneficia 13 milhões de famílias e custa meio por cento do PIB. Prova de que não pesa tanto nas contas nacionais. E tem um efeito multiplicador nas economias locais, gera mais negócios, mais empregos e mais impostos. Em certo sentido, se autofinancia e ajuda o país a crescer, quebrando aquele dilema que diz é preciso crescer primeiro para depois distribuir. O efeito preguiça não foi comprovado. Observa-se um discreto aumento dos beneficiados no mercado de trabalho.

Embora reconheça os resultados positivos de programas do gênero, Francisco Menezes pondera que algumas cidades do interior do país ainda estão sujeitas ao clientelismo e a desvios de dinheiro público destinado a ações de distribuição de renda:

– O Bolsa Família é um ótimo projeto no plano federal. Mas, em alguns municípios, ainda se vê clientelismo e desvio do erário público. É um desafio grande. Sem contar que há moradores de rua que não estão no cadastro do governo federal. Nos rincões do país, onde não se tem informação, a pobreza persiste.

João Roberto Lopes diz que o programa é "importante, mas limitado para dar conta da complexa realidade social dos que vivem na miséria". Ele propõe a inclusão de outras políticas que ajudem a melhor garantir os direitos sociais:

– É uma proposta positiva (o Bolsa Família) e contribui para reduzir a pobreza, mas como se vê pelas últimas pesquisas a desigualdade é persistente e marca a estrutura social brasileira. Contudo, é um programa com potencial limitado para responder à desigualdade estrutural, e me parece que hoje a lógica do governo federal, mas também em outros níveis, é focar muito nesses programas em detrimentos de outras políticas que possam assegurar uma promoção efetiva de direitos sociais.

Maria Sarah estende a responsabilidade à sociedade civil. Com a experiência da pesquisa na favela Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio, para a sua tese de doutorado, a professora avalia que nos acostumamos com a pobreza urbana:

– A sociedade brasileira não conseguiu, até hoje, fazer uma opção cidadã. Nossa opção tem sido a de nos habituarmos a conviver com a pobreza, como parte de nossa paisagem urbana, e com um salário mínimo de R$ 622 para uma grande massa de brasileiros. 

Perto do Corcovado e da bela vista para a Baía de Guanabara, Gorete e seus cinco filhos esperam por condições que possibilitem a mudança do casebre mal iluminado, quase em ruínas, e a entrada no mercado de trabalho. Em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Antônia, o marido e os filhos confiam nos sacolés no freezer de segunda-mão para esticar a renda decorrente da assistência dos governos estadual e federal. Pertencem ao meio milhão de moradores do Rio que se equilibram no fio da "pobreza extrema" e torcem para que investimentos como o novo Maracanã e o novo Porto se convertam em perspectivas de melhor emprego, educação e serviços públicos.