A intervenção francesa para conter o avanço do extremismo no Mali, deflagrada no início do mês, indica desafios mais complexos do que o arrefecimento das tensões internas, avaliam analistas. Apoiadas pela ONU e por Estados Unidos, Reino Unido e outros países, tropas francesas ocupam ainda parte da antiga colônia. Tentam aplacar a resistência de rebeldes que pretendem invadir a capital Bamako. Mas a missão da “comunidade internacional” revela-se maior. Além de debelar incêndios terroristas derivados do conflito – como o que contabilizou mais de 80 mortes na vizinha Argélia, depois do sequestro de trabalhadores estrangeiros por grupos ligados à Al-Qaeda –, engaja-se na procura de caminhos para dirimir a propagação da onda de instabilidade ainda à tona em países árabes e no norte da África.
Cruzam tais caminhos preocupações de tons não só políticos e sociais, mas também (ou principalmente, na visão de alguns analistas) econômicos. Compreendê-las insinua-se tarefa bem mais difícil do que reconhecer a legitimidade de intervenções contra velhas e novas manobras de movimentos extremistas.
– Os países da beirada do Mediterrâneo, como a França, estão em alerta e percebem a possibilidade de escalada do conflito, vide o que aconteceu na Argélia – lembra o professor Márcio Scalercio, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.
Scalercio observa que o crescimento de grupos radicais e o acesso a armamentos facilitado pela guerra civil da Líbia contribuíram para a expansão do extremismo naquela área. Para ele, os recentes episódios devem ser analisados de forma integrada, pois relacionam-se com a guerra da Líbia, “que, por sua vez, está associada aos levantes de 2011 no Egito”:
– Os conflitos eclodiram no Mali não somente por razões internas. É como uma pedra sendo jogada num lago e promovendo ondas de turbulência na região como um todo. O potencial de a instabilidade continuar e se espalhar é alto. A situação no norte da África não vai ser resolvida com milhares de soldados franceses e de outras nacionalidades. É algo que vai durar mais tempo. É um processo de crise que vai se prolongar.
Abundância em recursos minerais ainda não exploradas no norte de Mali
Informações desencontradas, ou simplificadas por holofotes midiáticos, dificultam o diagnóstico do cenário complexo no qual emergem as investidas extremistas e o contragolpe da cavalaria ocidental. Sob justificativas protocolares, movem-se nuances – políticas, econômicas, culturais, históricas – cuja compreensão impõe-se necessária, ressaltam os analistas. Por exemplo, seria ingênuo desconsiderar o potencial petrolífero ainda não explorado ao norte de Mali e a riqueza do país em recursos naturais. Ou o histórico de oportunas alianças de países europeus naquela região e áreas afins. Ou mesmo desconsiderar os desdobramentos dos movimentos que, desencadeados há pouco mais de dois anos, derrubaram ditaduras na Tunísia, Líbia, Egito, Síria, Iêmen e ficaram conhecidos como Primavera Árabe.
Para o também professor de Relações Internacionais da PUC-Rio Alexandre dos Santos, especialista em África, os ventos dessa Primavera, revestidos da suposta busca de maior abertura política e democratização, influenciam rumos de países como Argélia, Marrocos, Mali. Carregam, contudo, apropriações, significados e traços particulares.
– Há um soprar desses ventos na Argélia e no Marrocos. O partido islamista perdeu as eleições e participação na Câmara argelina. A minoria tuaregue passou a ser mais respeitada no Marrocos, com o incentivo à construção de escolas na região habitada pela etnia para ensinar as crianças o francês, o árabe e o idioma deles. Mas, no norte do Mali, o que aconteceu foi que os tuaregues tentaram fazer uma reivindicação por uma região e outros grupos radicais islâmicos vieram a reboque. Sentiram a fragilidade do governo malinês e impuseram ali a sua leitura da lei islâmica – compara.
Governos fragilizados, pobreza, desigualdade social, injustiça, ineficiência do serviço público e carestia formam um campo fértil para a insurgência de grupos não raramente ancorados em discursos ou interpretações religiosas. Na trilha para o controle político, apresentam dicções e estratégias distintos. Nem sempre vestem o manequim radical, como se observou nas eleições convocadas na Tunísia e no Egito – cujos legados democráticos, no entanto, ainda estão sendo depurados.
Scalercio percebe outras influências, não menos significativas, na intervenção em Mali. Os embates representam um xadrez político e econômico mais profundo do que indicam os discursos de guerra ao extremismo. Na opinião do especialista, a França tenta reafirmar sua influência:
– Há em andamento uma espécie de disputa pelo predomínio na África. A velha influência europeia está sendo substituída, em alguns lugares, por uma presença chinesa mais contundente. O pós-colonial dessa região já tem um histórico de intervenções de tropas francesas. A colonização francesa deixou um legado de exploração e opressão, construindo outras Bastilhas no resto do mundo. Mas, por outro lado, a intervenção se faz necessária diante da possibilidade de radicais religiosos assumirem o controle de regiões do norte da África – pondera.
A ameaça do “avanço extremista” gera preocupações e incertezas nas relações econômicas. A Argélia está entre os três maiores fornecedores de gás para a União Europeia. O Mali, com o Níger, fornece urânio para usinas nucleares francesas. O país também é exportador de gêneros agrícolas, como algodão, e produtor de minérios como ouro. Com um isolamento político, a exploração e o comércio de riquezas estratégicas tenderiam a ser prejudicados.
Scalercio reitera que, por trás da intervenção no conflito, palpita também o interesse de reafirmação francesa em países nos quais “esteve tradicionalmente presente”. O professor aponta também o caráter emblemático do contexto social e econômico em que se encontra o Mali e países do norte da África. Um espelho, entre outros fatores, de alianças forjadas no oportunismo político e econômico:
– Por mais que haja a preocupação se Paris estará aquecido no inverno, com o gás natural que vem do norte africano, não se pode deixar de lado a situação econômica e social daqueles países, que é muito difícil. As desigualdades econômicas são gritantes. Os governos europeus durante décadas apoiaram ditadores e Estados ineficientes por puro oportunismo político – lembra Scalercio.
Precariedade de fronteiras facilita expansão dos tentáculos radicais
Essa não é a primeira vez que tropas francesas intervêm na região. Agora, é defendida inclusive pela população ao sul do Mali, que costuma ver com desconfiança a presença econômica da França. Desconfiança ora superada pela prioridade de conter a disseminação de grupos extremistas.
Militares e rebeldes intensificaram o confronto há aproximadamente duas semanas, após a insurgência de forças radicais na cidade de Konna, na fronteira imaginária entre o norte e o sul de Mali. Seguiram-se ataques aéreos liderados pelas forças militares francesas na região do Azawad e, posteriormente, investidas terrestres que retomaram as cidades de Diabaly e Douentza e os acessos a Gao e Timbuktu.
O atentado na Argélia, em que terroristas exigiam a retirada das tropas de Mali, rendeu um capítulo à parte mas igualmente emblemático para se compreender a dinâmica do conflito, seus contornos e implicações. O primeiro-ministro argelino, Abdelmalek Sellal, reconheceu a porosidade das fronteiras ali dispostas. Os terroristas, segundo ele, teriam entrado no país pela Líbia.
A delimitação e a vigilância precárias dessas fronteiras faz com que conflitos acabem se alastrando por diferentes territórios. O professor Alexandre dos Santos destaca que a condição desértica é estrategicamente aproveitada por grupos radicais:
– Lideranças radicais se valem da dificuldade de acesso e monitoração dessas áreas de deserto. Eles estão sempre se movimentando, buscando ajuda para se esconder e agir. Os tentáculos de onde eles podem agir se alastraram bastante, desde o conflito no Darfur, no Sudão – afirma. – Há grupos terroristas, alguns ligados a células da Al-Qaeda, agindo no norte da Nigéria, onde realizaram atentados a bomba contra a população cristã.
“Se os radicais dominarem aquela área, Mali pode se tornar uma Somália”
Alexandre acredita que, se o norte do Mali for dominado por esses “radicais islâmicos", pode se tornar uma Somália, lugar em que ninguém consegue ter controle, transformado num "porto seguro para os terroristas treinarem e se abastecerem". Apesar dos tons específicos das sucessivas manifestações e confrontos na região, ele identifica traços comuns preocupantes:
– As fronteiras dos países daquela região são desenhadas por linhas retas porque não há acidentes geográficos. São áreas muito difíceis de controlar e, de certa forma, todos os movimentos daquela região do Saara africano (o Sahel) estão interligados.
Desgaste será menor que no Afeganistão ou na Costa do Marfim, prevê professor
O estopim do conflito em Mali começou a se desenhar em 2012, vinte anos depois de as primeiras eleições democráticas em mais de duas décadas terem conseguido uma aparente estabilidade entre o governo legítimo e os tuaregues. Militares insatisfeitos com a falta de iniciativas para combater a entrada de rebeldes armados no norte do país lideraram um golpe de Estado. Percebendo a fragilidade do governo malinês, grupos radicais islâmicos, em conflito com lideranças tuaregues, insurgiram na região.
Entre os radicais, estaria a Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI), célula de uma organização terrorista que age em vários países da região. Tuaregues fundaram o Movimento Nacional de Libertação do Azawad (MLNA). Além destes, outros dois grupos radicais estariam jogando mais gasolina num incêndio de proporções ainda imprecisas.
De acordo com o especialista Alexandre dos Santos, grande parte da resistência armada teria vindo da Líbia. Logo após a morte de Kadafi, que financiava movimentos de cunho islâmico, uma espécie de exército treinado e armado ficou livre e passou a se organizar em outras regiões. Os tuaregues teriam voltado para o Mali equipados com armamentos e munições.
O especialista em África projeta um desgaste bem menor do que o dos Estados Unidos no Afeganistão, ou da França na Costa do Marfim. A previsão é que a França entregue o controle para as forças africanas. O roteiro esboça, inicialmente, a conquista das principais cidades do norte (Gao, Timbuktu e Kidal) e, em seguida, um acordo com os tuaregues, possíveis “aliados estratégicos”.
País fragilizado política e economicamente, mas rico em criação musical
Assim como no sul da Líbia, Burkina Faso, Níger, Argélia, Mauritânia e no Marrocos, parte do norte do Mali é habitada há séculos por tribos de origem nômade, os tuaregues. Eles reivindicam a independência da área chamada Azawad, que ocupa trechos do Saara e do Sahel.
O território do Mali, pelo menos duas vezes maior que o da França, contempla um trecho entre o deserto e a savana africana, o Sahel. Nas proximidades do rio Niger, o solo é fértil, mas, há cinco anos, o processo de desertificação tem aumentado nas poucas áreas agrícolas do Sahel. O país, como outros do continente, é dependente da importação de gêneros alimentícios e sofre com a alta dos preços de alimentos no mercado internacional. Para Márcio Scalercio, essa crise inflacionária, que já era uma tendência que só foi agravada pelas dificuldades da economia agrícola americana do ano passado, piora a vida da população dos países norte-africanos.
A população do país, entre os 25 mais pobres do mundo, é castigada pela fome. Agências da ONU, como a Unicef e a ACNUR, mantêm papel relevante na acolhida de refugiados e na emergência alimentar. Estima-se que, após a eclosão dos conflitos, com os bombardeios, haja um afluxo de refugiados para regiões fora do centro das ações militares e também para países vizinhos.
Cerca de 80% dos malineses vivem no sul. O norte, com partes inabitáveis, não recebe intervenções do governo central para melhoria da infraestrutura. Maioria na região desértica, os tuaregues lutam pela independência do Azawad.
Mali deixou de ser colônia em 1960 e, depois de 23 anos de ditadura, com as primeiras eleições, em 1992, tornou-se um modelo de democracia no continente africano até militares assumirem o poder em março do ano passado. Após a desestabilização do poder central, tuaregues decretaram a libertação do norte e aliados da Al-Qaeda insurgiram na região. Retrato de um país fragilizado e dividido politicamente.
A terra onde viviam os griôs (contadores de histórias, que transformavam-nas em canções e poemas), e tradicional berço de estrelas da música africana, sofre imposições de movimentos islâmicos. A lista de proibições inclui não fazer música, não fumar e, às mulheres, não saírem desacompanhadas.
– A região que hoje é o Mali, assim como parte do Burkina Faso, do Chad, Mauritânia e Argélia, era habitada desde os primórdios pelos griôs. As músicas mais bonitas daquela região são de artistas dali. É um contrassenso esses movimentos fazerem tais imposições. Pelo que vejo, a população está com medo e a própria resistência fez com que pessoas fossem mortas ou “torturadas” – ressalta Alexandre dos Santos.
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