Maria Christina M. Corrêa - Do Portal
13/11/2012Íntima dos agitos culturais, Santa Teresa respirou no fim de semana uma iniciativa pioneira que tende a se replicar por outras áreas pacificadas do Rio. Aberta quarta-feira (7), com a bênção do escritor Ariano Suassuna e do músico MV Bill, por exemplo, a 1ª Festa Literária Internacional das UPPs produziu, até domingo, rimas animadoras, algumas incomuns, entre artistas de diversos matizes, origens e estágios profissionais. Ali no Morro dos Prazeres, mestres como Ferreira Gullar e Ana Maria Machado, além do próprio Suassuna, encontraram novatos no mundo das letras e das artes em geral, como a estudante Paloma Marabenevito Martins, de 10 anos.
Moradora do morro, Paloma é uma das mil componentes da Orquestra de Vozes Meninos do Rio, formada por crianças de 23 escolas públicas. Elas anunciaram a largada do caldeirão cultural inspirado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Representavam também a perspectiva de se amplificar a voz das comunidades no cenário artístico. O Portal PUC-Rio acompanhou, naquela noite iluminada de quarta-feira, os primeiros esboços do que pode se constituir em páginas mais vivas para a cultura do Rio e do país. (Veja galeria de fotos da FLUPP).
Com o equilíbrio de um "realista esperançoso" – pois os "otimistas são ingênuos e os pessimistas, amargos" –, Ariano Suassuna mostrava-se empolgado ao testemunhar o interesse dos jovens moradores pela literatura. O dramaturgo, poeta e romancista acredita na libertação de novos talentos, tanto nas favelas, quanto fora delas:
– O Brasil real está nas favelas. Nas favelas existe gente trabalhadora que é vítima do crime como todo mundo. Todos estão, de certa maneira, libertando o brasileiro.
Igualmente empolgada estava Paloma, que subiu ao palco com os colegas Escola Municipal Pedro Ernesto. Ela começou a cantar há três anos, e já traça voos profissionais:
– Quero ser compositora.
Nem o nervosismo de se apresentar para centenas de espectadores fez a menina arranhar a convicção da carreira artística. Segundo ela, a Flupp ajudou na decisão. Paloma espera que a iniciativa desdobre-se em outros pontos da cidade e contribua não só para a descoberta de novos talentos, mas para aproximar a cultura dos moradores das regiões pobres.
Experiência deve ganhar outras comunidades
Um dos organizadores da Flupp, o escritor Julio Ludemir conta que a ideia nasceu de uma "visão" durante visita à Flip do ano passado. E amadurecu num papo em um bar de Nova Iguaçu, lembra o também escritor e organizador Elcio Salles. Entre as conversas preliminares e a consolidação da festa, com mesas redondas, declamações, intervenções, apresentações musicais e feira literária, foram necessários sete meses de preparação. A Ludemir e Elcio juntaram-se a pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda, o antropólogo Luiz Eduardo Soares e o empresário Alexandre Mathias. Elcio comemora o resultado:
– Isso aqui demonstrou a força que a literatura e a Flupp. Agora é manter.
Ludemir completa:
– A ideia inicial era potencializar uma coisa que já existe, e não pode parar.
Embora a extensão da Flupp a outras comunidades ainda esteja em estudo, é provável que a experiência ganhe novas dicções na geografia carioca. Elcio desconversa:
– Estamos pensando. Talvez São Carlos ou Vila Cruzeiro.
Segurança estimula a literatura, e vice-versa
Enquanto os moradores aproveitavam a descontração predominante na noite de abertura e o encontro com bambas da literatura e de outras artes, autoridades reconheciam a importância de ações do gênero tornarem-se mais comuns na cidade. O secretário estadual de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, ressalvou:
– Este movimento concreto mostra que estamos no caminho certo, mas a consolidação do processo da UPP depende de ações assim. Este é o segredo da consolidação do processo da paz: trazer cidadania e dignidade para essas pessoas. Não é um trabalho da policia, ou único da policia.
O coronel Joaquim Seabra acrescenta que "a arte é liberdade em essência", o que consolida a cidadania:
– Isso ajuda você se a compreender como cidadão. Ajuda a consolidar uma democracia e uma sociedade justa e libertária. É nisso que a gente acredita, para isso que a policia trabalha.
Organizador de feiras literárias na Cidade de Deus, na Zona Oeste, o rapper MV Bill espera que outros setores da administração pública apoiem ações do gênero. Ele considera a Flupp um primeiro passo para que "todos entendam que a cultura também é uma forma de combate à violência":
– É diferente, para mim, ver um órgão do governo que só entra (na favela) com braço armado também se envolver com literatura, que sempre foi uma forma de combate à violência. É outra forma, outro tipo de arma, que não atira, não mata, não causa lesão corporal. Mas que é eficaz nesse combate.
"Pacificação faz diferença para o aprendizado", reconhece a secretária de Educação
A secretária municipal da Educação, Cláudia Costin, afirma que os encontsros literários nas comunidades também represente a abertura de oportunidades a crianças que foram vítimas do tráfico. Ela aposta que, assim, as salas de aula ficarão cheias:
– Temos escolas aqui em áreas pacificadas e não pacificadas. Está provado que a pacificação faz diferença no aprendizado das crianças.
"O país precisa formar leitores com discernimento", diz professora da PUC-Rio
A professora do Departamento de Letras da PUC-Rio Eliana Lúcia Yunne, coordenadora da Cátedra Unesco de Leitura, reforça a relevância da ampliação de espaços para a leitura e a escrita em "amplas faixas da população":
– O país, para se tornar um lugar de pessoas críticas e responsáveis, precisa formar leitores com discernimento sobre o que se lê e vê. A conjugação da leitura e eda scrita é indispensável para que as comunidades se qualifiquem como gestores das suas vidas políticas.
A professora afirma também que não há como desenvolver programas de segurança "sem envolver os fatores da comunidade": os moradores. Ela lembra que, para tornar frequentes atividades como essa, é necessário, além da segurança pública, investimento crescente em cultura e educação:
– A educação precisa se transformar da quantidade de conteúdo gramatical ou aritmético, por exemplo, para que tenha um envolvimento com a vida da pessoa. Sem a mudança da educação, sempre nos faremos essa pergunta. Se há dinheiro para a ocupação (policial), é possível investir em cultura. E eu não percebo isso com a mesma seriedade com que o estado tem investido em segurança pública – compara.