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Rio de Janeiro, 16 de março de 2025


País

Eles ajudam a recuperar vidas castigadas por tragédias

Vítor Afonso - Do Portal

28/01/2013

 Agência Brasil / Deivid Dutra

Por trás do amplo noticiário e dos superlativos inerentes a dramas como o incêndio que matou pelo menos 231 em boate de Santa Maria (RS), neste fim de semana (veja, no fim do texto, quadro com casos semelhantes no mundo); por trás da busca por explicações e palavras; por trás de respostas protocolares, perícias e procissões judiciais, uma tropa de profissionais cumpre, com discrição e perseverança, a missão de transformar cinzas em esperança. Espécies de bombeiros da alma, esses psicólogos ajudam quem acorda com o pesadelo de ver filhos, pais, maridos, irmãos drasticamente subtraídos por tragédias. São especialistas em recompor cacos. Um trabalho quase invisível, paciente, sistemático, que sucede às manchetes e ao luto.

A psicóloga Marina Melo presta assistência do gênero às famílias dos seis jovens assassinados em setembro do ano passado, na chacina da Chatuba, na Baixada Fluminense. Mais do que uma determinação legal, seu ofício revela-se, frequentemente, a ponto possível entre a saudade e o difícil recomeço.

 Arte: Maria Christina Corrêa Tarefa igualmente árdua carrega a também psicóloga Maria Helena Franco. Ela ajudou familiares traumatizados pela perda de pessoas queridas nos dois principais acidentes aéreos no Brasil: o da TAM, em 2007, e o da Gol, um ano antes. As duas formam um retrato desses bombeiros da alma, que, por trás das lentes e das lágrimas, procuram apagar a dor alheia.

Marina trabalha no Posto de Saúde da Família em Nilópolis e assiste os familiares de Victor Hugo da Costa, de 17 anos, Christian de França Vieira, de 19, Patrick Machado de Carvalho, de 17, Josias Searles, de 16, Douglas Ribeiro da Silva, de 17, e Glauber Figueira Eugênio, também de 17 anos, todos mortos na chacina da Chatuba. Apesar do distanciamento profissional exigido pelo ofício, seria ilusório deduzir que o psicólogo mantém-se incólume aos dramas alheios. A psicóloga conta que esteve relacionada com a chacina da Baixada "desde o início":

– Na segunda-feira, 10 de setembro, quando eu estava de plantão, a mãe de um dos jovens entrou no posto gritando. Ali começou a minha relação com este caso. Entrei em contato com a assistência social e com a Prefeitura de Nilópolis para ajudarmos essas famílias. Estamos acompanhando a situação desde então.

Intercâmbio entre famílias favorece superação

Acostumada a lidar com problemas familiares, Marina diz nunca ter enfrentado tamanho desafio. Uma das, digamos, estratégias para tonificar o suporte psicológico, e tornar a superação mais palpável, remete ao intercâmbio entre famílias das vítimas. No caso da chacina, foram criados dois grupos: um para as crianças, o outro para os adultos. Contemplam as seis famílias em “um meio onde podem trocar experiências”:

– Os grupos também são compostos de amigos que têm vontade de participar. Nessas condições, eles se sentem mais inclinados a conversar sobre a situação e trocar ideias e vivências – justifica.

Marina disse que busca realizar passeios com a família, ir ao shopping e também recorre a terapias. Segundo a psicóloga, “é essencial ter um espaço diferente do seu trabalho”:

– Também precisamos fazer terapias, em outros ambientes, para colocar as nossas dificuldades e problemas para fora.

Crianças recebem atividades lúdicas

A psicóloga esclarece que a divisão em dois grupos deve-se às “particularidades” identificadas, sobretudo em função das idades. Pois crianças, observa Marina, exigem uma abordagem psicológica diferente:

– Trabalhamos com atividades lúdicas para as crianças. É na brincadeira que conseguimos ver o que estão passando. Crianças não são como os adultos, que falam mais facilmente. Elas demonstram o que estão sentindo quando brincam.

Ainda de acordo com Marina, um dos principais obstáculos na reconstrução da perspectiva de vida fuzilada por uma tragédia a revolta persistente de alguns familiares. Ao limite, tal comportamento inibe a aceitação da perda:

– Existem famílias que ficam revoltadas, que querem, acima de tudo, justiça. Estamos lidando com pessoas que não querem aceitar o que aconteceu, principalmente, porque os jovens nunca foram envolvidos com nada de errado.

Acompanhamento deve respeitar "o tempo de cada um"

Por outro lado, a psicóloga mostra-se otimista sobre a capacidade de superação. Ela acrescenta, contudo, que este tipo de assistência deve ser de longo prazo e respeitar "o tempo de cada um":

– Há famílias que acompanhamos sempre. Como as que perderam parentes e amigos na enchente de 2009. Acompanhamos essas famílias até hoje. O ponto a partir do qual uma família ou uma pessoa consegue seguir por conta própria varia de caso para caso.

Marina reconhece a formação e a experiência profissionais não lhe asseguram imunidade ao sofrimento dos familiares envolvidos em tragédias:

– Somos psicólogos, mas também somos seres humanos. Também sentimos dificuldades para encarar uma situação tão complicada como essa – admite, referindo-se à chacina na Baixada..

 Arquivo pessoal Tarefa tão delicada implica, além das competências específicas, uma vocação para reconstruir um mundo que faça sentido, Aos jovens interessados em seguir este caminhos profissional, Marina lembra:

– A vontade de ajudar o próximo e o gosto pelo trabalho são os pontos de partida. Primeiro, o jovem precisa gostar do que faz. Além disso, é preciso saber em qual área prefere trabalhar. É um mercado muito amplo e é preciso saber que direção escolher.

Tia de jovem assassinado destaca apoio psicológico.

A dona de casa Renata Lúcia Ribeiro, de 34 anos, tia do jovem Douglas Ribeiro, assassinado na chacina da Baixada Fluminense, destaca a importância do apoio psicológico. Um “encontro abençoado”:

– É um encontro abençoado porque está reunindo as seis famílias. É bom para unirmos as forças. Está ajudando muito, acariciando mais o nosso coração.

Renata afirmou que a ajuda psicológica está sendo importante desde o primeiro dia e que “a integração entre as famílias é muito positiva”:

– A integração é boa porque a gente já se conhecia, conhecíamos os meninos desde pequenos.

A dona de casa comentou também sobre a dor que está sentindo, revelando que o único sentimento que está em seu coração é “uma força para pedir justiça”:

– O sofrimento existe sim. Mas o que eu sinto mesmo agora é a vontade de conseguir justiça.

Renata revelou ainda que pretende realizar outras atividades para “distrair sua mente”, e enxerga até uma oportunidade de profissionalização:

– Eu vou fazer um curso de depilação para me distrair e arejar minha cabeça. Talvez até possa trabalhar com isso.

“É preciso estabelecer limites”, afirma psicóloga.

Maria Helena Franco, psicóloga do Instituto Quatro Estações, coordenou a equipe de aproximadamente 35 psicólogos que atuou no acidente aéreo da TAM, em 2007. A psicóloga disse que, apesar de também fazer terapias, o apoio daqueles que estão a sua volta é fundamental para lidar com estes casos. Além disso, ela acredita que é preciso “estabelecer limites na profissão”:

– Precisamos contar muito com apoio da família, dos amigos e da própria equipe, porque o trabalho é muito envolvente. Muitas vezes as pessoas não conseguem estabelecer limites entre a vida pessoal e trabalhos deste tipo.

Maria Helena ressaltou que a realização de outros exercícios e atividades é “essencial para devolver a energia consumida pelo trabalho”:

– Eu leio, vou caminhar, converso sobre outros assuntos, faço meditação. Procuro algumas condições que possam me devolver o equilíbrio e a energia.

A psicóloga contou sobre o trabalho realizado com os familiares das vítimas da TAM, destacando que o primeiro contato com eles foi “full time”:

– Eu tinha uma equipe grande e a gente se alternava para ter cobertura total. As famílias eram enviadas para os hotéis e lá havia pelo menos um psicólogo para cada família. Além disso, também atuamos em outros lugares, como no funeral e no velório.

A psicóloga, que “não particulariza casos”, disse também que algumas famílias recebem apoio até hoje e que alguns familiares das vítimas da TAM necessitaram de tratamento especial:

– Pelo cenário estabelecido pelo acidente, com dificuldade de identificação de corpos, algumas pessoas precisaram realizar um tratamento de psicoterapia. É um tipo de tratamento especial, mais aprimorado, necessário em alguns casos.

Maria Helena, que também esteve a frente no primeiro acidente da TAM, em 1996, e no da GOL, em 2006, disse que os psicólogos lidam com um constante problema no contato com as famílias das vítimas:

– As famílias, muitas vezes, associam o psicólogo com a situação que provocou aquele acidente e voltam para nós a angústia e a revolta. Mas já contamos com isso e conseguimos lidar bem com essa situação.

Com casos complexos no currículo, a psicóloga revelou que o mais marcante foi o acidente no metrô de São Paulo, em 2007, na estação Pinheiros. Ela disse que lembra bastante do caso, pois ficou no local “até o último corpo ser encontrado”:

– Foi muito forte porque, além das famílias dos mortos, tiveram também os sobreviventes que ficaram verdadeiramente traumatizados por terem presenciado a tragédia e quase morrido.

A psicóloga, aproveitando seu lado de professora, destacou as características fundamentais que os jovens precisam adquirir, ressaltando a necessidade de um “preparo específico” para lidar com grandes desastres. Para ela, o jovem não pode ser seduzido pelo “mito do herói”:

– Os jovens devem entender que para trabalhar com emergências, com desastres, com condições desse tipo, eles precisam de um preparo específico. Ter força de vontade e determinação é bom, mas não é suficiente.

Acidente com ônibus da 1001 também conta com presença de psicólogos.

No dia 22 de outubro um acidente com um ônibus da Auto Viação 1001, no km 102 da rodovia Rio-Teresópolis, deixou 15 mortos. Segundo Pedro Ivo, da assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro (SMAS), o apoio aos feridos e aos familiares das vítimas será prestado pela própria empresa:

– Trabalhamos com pessoas que possuem vulnerabilidade social. Neste caso, o acidente envolveu uma empresa privada e cabe a ela essa responsabilidade.

Rodrigo Alvim, assessor de imprensa da 1001, afirmou que a corretora de seguros Paluama está realizando assistência “desde o dia do acidente”. O assessor disse ainda que seis psicólogos já foram contratados para trabalhar no caso:

– Já temos assistência aos familiares e aos feridos que precisam passar por alguma cirurgia, por exemplo. Além disso, já contratamos psicólogos para trabalhar no caso.

Tragédias em casas noturnas ao redor do mundo

O desastre de Santa Maria é a terceira maior tragédia em casas noturnas na história mundial. Somente o incêndio da Coconut Grove, em 1942, nos Estados Unidos, no qual morreram 492 pessoas, e o da Discoteca de Luoyang, no Natal de 2000, na China, que resultou na morte de 309, superaram a catástrofe da boate Kiss.

Outros casos similares ao da casa noturna gaúcha ocorreram em Mississippi, nos Estados Unidos, em 1940, quando morreram 207 pessoas no clube Rhythm, e na boate República em Buenos Aires, em 2004, com um saldo de 194 mortos.