Se na cidade do Rio a pobreza extrema ainda mostra sua face em meio aos cartões-postais conhecidos internacionalmente e apesar dos recursos crescentes para a cidade, como mostrou a primeira reportagem da série Feições da Miséria, a miséria insinua-se ainda mais em áreas afastadas do centro cultural e econômico. Em Belford Roxo, na Baixada, a 20 quilômetros da capital fluminense, a renda per capita média cai para R$ 595, contra R$ 836 no Rio.
Às margens da rodovia Presidente Dutra, por onde escoa boa parte da riqueza do país, Belford Roxo está entre os 20 municípios com as maiores taxas de pobreza extrema na Região Metropolitana, ao lado de Japeri e São Gonçalo, de acordo com o Censo 2010 do IBGE. Por isso foi um dos escolhidos pelo governo do estado para receber o programa Renda Melhor. Em que pese a projeção de mais investimentos – impulsionados por eventos como a Copa 2014 e a Olimpíada 2016 e pela expansão de setores como o de óleo e gás –, o Estado do Rio reúne 586 mil em pobreza extrema. Um retrato do desequilíbrio renitente no país. Apesar do crescimento que consolidou a sexta posição na economia mundial e dos ganhos na distribuição de renda, o Brasil é o quatro país mais desigual da América Latina, aponta relatório do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat). De acordo com o estudo, divulgado semana passada, fica atrás só de Guatemala, Honduras e Colômbia.
O avanço é lento e os desafios são grandes, como mostra a trajetória da família de Antônia Soares, que divide um casebre na periferia de Belfortd Roxo. Tecnicamente, estão acima do limiar da pobreza extrema, pois a renda per capita mensal supera, em alguns trocados, os R$ 70 que rotulam o subsolo econômico. Os números, entretanto, não alcançam a batalha por comida, saneamento, dignidade. Apesar de os programas de distribuição de renda terem melhorado a vida, eles refletem com precisão a desigualdade social brasileira.
Para conhecer um pouco da rotina de Antônia Maria Melo Soares, de 41 anos, o Portal PUC-Rio percorreu quilômetros de Belford Roxo adentro até o bairro de Nova Aurora. Como havia caído uma forte chuva na véspera, fomos alertados sobre dificuldade de se chegar ali. Ruas esburacadas e sem asfalto formavam obstáculos infelizmente ainda comuns a diversos cantos do país.
Simpática e comunicativa, Antônia nos recebeu na modesta casa em que vive com o marido e os oito filhos ("cinco meus e três enteados"). Nos cômodos apertados a grande família se “ajeita como pode”. Escapam da etiqueta pobreza extrema determinada pelo governo federal (R$ 70 per capta/mês) graças aos auxílios de programas de distribuição de renda como Bolsa Família (R$ 469), Renda Melhor (R$ 300) e Brasil Carinhoso (R$ 81). Assim, a família atinge a renda per capita mensal de R$ 85, somando R$850 e proporcionando que cada integrante da casa viva com R$85 por mês.
Já em relação ao parâmetro adotado pelo governo estadual (R$ 100 per capita/mês), eles estão no estágio mais rasteiro da pobreza. "Levamos em conta, no cálculo, o custo de vida no estado", explica o secretário de Assistência Social e Direitos Humanos, o sociólogo Rodrigo Neves.
Classificações à parte, Antônia, o marido e os filhos lutam para equacionar os números ralos, transformá-los em sustento e, mais que isso, em perspectivas além do amparo assistencialista. Na a contramão do Censo, que confirma a redução na média de filhos por família e 2,38 em 2000 para 1,90 em 2010, comemoram a superação de "momentos dramáticos" desde que passaram a receber, há um ano recebendo, ajuda do governo.
– Teve época em que pegava dinheiro emprestado para comprar comida. Aconteceu de faltar arroz e leite algumas vezes. Já dependi muito da ajuda de vizinhos e parentes – conta Antônia.
A matriarca revela habilidades de gestora orçamentária. Equilibra o dinheiro entre a alimentação familiar e a construção da casa nova. Sonha, sobretudo, em deixar a moradia à beira de um barranco. Lá, os dias dia chuvarada significam, na melhor das hipóteses, invasão de lama.
Nos dias secos, a casa também sofre com paredes molhadas. A umidade decorrente da infiltração crônica castiga os caçulas Pablo e Moisés, de 4 e 5 anos, com alergias constantes. Antônia conta os dias para ficar pronta casa maior que o marido Fernando, de 36 anos, está construindo, sob o castigo de uma hérnia teimosa. O sacrifício, aguardam todos, será recompensado.
– Terminar minha casa é o nosso maior sonho – empolga-se.
Outro investimento que Antônia fez com os R$ 850 mensais foi a compra de um freezer usado para conservar os sacolés e o guaraná natural cuja venda reforçam o orçamento doméstico. Ele lembra, contudo, que já ficou oito meses sem geladeira e deixava os alimentos na casa de vizinhos.
A renda familiar também é composta de trabalhos informais, obtidos aqui e ali por Antônio e por Fernando, desde capinar terrenos da vizinhança até “virar massa” em serviços de pedreiro. A baixa escolaridade de ambos dificulta o acesso ao emprego formal. Assim, a educação dos filhos é uma das maiores preocupações de Antônia, que aproveita o material escolar das crianças para exercitar a leitura. Ocorre de Antônia gostar de ler. Prova de resistência e esperança. Quando jovem, recorda, escrevia com papel de pão porque não havia dinheiro para caderno.
Antônia deixou a escola para "ajudar em casa". Seguiu ordem do pai, que, segundo ela, dizia: "mulher vai para escola só para arranjar namorado". Carrega a tristeza de jamais ter se formado, e a aflição de ter se distanciado da chance de um emprego melhor.
Segundo o relatório Motivos da Evasão Escolar, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o desinteresse é a causa principal da evasão escolar de adolescentes entre 15 e 17 anos: 40% dos que deixam a escola alegam "falta de motivação" – justificativa que pode embutir outras razões, como insegurança e pressão familiar para contribuir no orçamento doméstico. Uma consequências da evasão é o fantasma do desemprego: 19 milhões de jovens entre 15 e 19 anos são excluídos do mercado de trabalho, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Embora estejam na escola, os filhos mais velhos de Antônia lutam contra o atraso na trajetória educacional. Suelly, de 17 anos, está na 8º ano do ensino fundamental. Pretende ser cabelereira. Pablo e Moisés, fãs do Neymar e do Wagner Love, querer jogar futebol. A única filha que pretende realizar o sonho da mãe e cursar uma universidade é Fernanda, 15 anos, que também está na 8ª série. Planeja cursar medicina. A matriarca admite ser dura com a educação deles, para que tenham as oportunidades das quais foi privada:
– Gostaria que meus filhos fizessem faculdade, mas sei que é difícil. Não temos condição de bancar. Mas aqui na minha casa todo mundo vai para escola. O que a pessoa tem na vida de melhor é o estudo.
Fora o altruísmo e a vontade de legítima de ver os filhos "progredirem na vida", mantê-los na escola também é uma exigência para manter a renda mensal reforçada: a contrapartida para receber o dinheiro dos programas sociais. A socióloga Maria Sarah da Silva Telles lembra que a educação tem um papel primordial na superação da pobreza e, portanto, deve ser tão urgente quanto a política de distribuição de renda:
– Além das políticas de assistência em curso, urge aumentar os valores atribuídos aos beneficiados. E produzir políticas sociais de ponta: educação, saúde e trabalho, de modo que os empregos e salários permitam uma vida de dignidade, e que esta situação seja sustentável – sugere.
Esses serviços essenciais, como reconhece o próprio governo, ainda estão longe do ideal. Na avaliação de Antônia, a escola frequentada pelos filhos, lá mesmo em Belford Roxo, “dá para o gasto, mas às vezes falta merenda”. Antônia reclama também do posto de saúde “só com um pediatra”. só tem 1 pediatra. Rodrigo Neves reconhece que, como a pobreza é "um fenômeno multidimensional", as políticas de combate precisam estar atreladas à distribuição de oportunidades sociais:
– Uma trajetória de inclusão social passa pela educação. Há uma disparidade muito grande do ensino público para o ensino privado. É um desafio melhorar o ensino. É fundamental para a superação da pobreza um ambiente de ensino adequado.
Os municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, também na Baixada, concentram o maior número de famílias em extrema pobreza no estado, beneficiadas com programas de destruição de renda: 35 mil e 31 mil, respectivamente. Unem-se, apesar das diferenças geográficas, sociais, econômicas e culturais, a luta de família pobres na capital fluminense, como a de Gorete de Souza, apresentada na primeira reportagem desta série.
A história de Gorete assemelha-se, em muitos aspectos, com a de Antônia Soares: moradia precária, baixa escolaridade, desqualificação profissional, ausência de oportunidades, dependência de programas assistencialistas. Em comum, também, o fato de serem moradoras de áreas urbanas.
Para solucionar casos assim, afirmam especialistas, são necessárias políticas específicas voltadas aos centros urbanos. Na próxima segunda-feira, na última reportagem da série, eles esclarecem as raízes destes problemas e apontam soluções para que o Brasil superar a pobreza extrema e renitente desigualdade social.
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