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Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2024


País

Pobreza extrema ainda desafia o Rio dos cartões-postais

Tiago Coelho - Do Portal

21/08/2012

Tiago Coelho

A poucos metros de cartões-postais como o Pão de Açúcar, próxima de estruturas como o Maracanã, cuja reforma movimenta R$ 1 bilhão, no coração da segunda cidade mais rica do país, a família de Gorete de Souza vive uma realidade comum aos 586 mil que, segundo Censo 2010 do IBGE, ainda amargam a pobreza extrema no Estado do Rio. Gorete mora no Morro Santo Amaro, no Catete, em plena Zona Sul carioca. Lá do alto, a deslumbrante vista para o Aterro do Flamengo e para a Baía de Guanabara contrasta com a mágica diária para pôr comida na mesa.

Em meio ao mar de investimentos prometidos ao Estado até 2016, quando acolherá a tão sonhada Olimpíada, a família de Gorete é uma ilha de pobreza onde ela e os cinco filhos sobrevivem com menos de R$ 70 por mês cada um. Para o governo Federal, vivem em situação de pobreza extrema as famílias cuja renda per capta é inferior a R$70.

À margem dos holofotes e dos orçamentos portentosos especialmente destacados em períodos eleitorais, a cearense radicada no Santo Amaro sonha que parte dos R$ 181,4 bilhões destinados ao Rio pelas iniciativas pública e privada, até 2013, possa ajudá-la a sair do buraco. Um buraco no qual, a despeito dos avanços decorrentes dos programas de distribuição de renda, ainda estão aproximadamente 16,2 milhões de brasileiros. O drama de Gorete abre a série de três reportagens que dão feições a esses números teimosos, alheios às ambições e aos discursos de sexta economia do mundo. 

Desempregada, vivendo de bicos como doméstica, Gorete, 43 anos, sustenta a família com R$ 198 do Bolsa Família e R$ 120 do Cartão Carioca, ação de distribuição de renda do município. Na casa dividida com os cinco filhos, a renda mensal permite que cada um viva com R$ 53 por mês, R$ 1,73 por dia. No pequeno barraco de três cômodos, 18 metros quadrados no total, a ripa que sustenta o telhado está envergando e corre o risco iminente de cair. A parede  da cozinha, polvilhada de rachaduras, também pode ceder a qualquer momento. Gorete sabe do perigo, mas reluta em chamar a Defesa Civil. Teme ser levada com a família para um local distante e diz que não tem como pagar a mensalidade do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, no qual tentou se inscrever.

– Tenho medo de nos mandarem para um abrigo longe. Pelo menos, aqui tenho tudo perto: escola, hospital. Se formos para um abrigo provisório, vão nos mandar para um lugar distante. Já tentei me inscrever para o Minha Casa, Minha Vida, mas não sei se consigo pagar. Queria que dessem um jeito na minha casa. Minha vida é aqui – aflige-se Gorete, que mora há mais de 30 anos no Morro Santo Amaro.Tiago Coelho 

Às vezes a fome assola a casa de Gorete. Mesmo com a comida controlada, um racionamento obrigatório diante do orçamento familiar, não raramente falta "alguma mistura" e ela precisa da ajuda de vizinhos. Segundo a doméstica, com filhos pequenos, entre 7 e 12 anos, e a ausência de familiares com os quais possa deixá-los parte do dia dificultam a busca por emprego. Uma parcela do que ganha fazendo faxina ou passando roupa é usada para pagar alguém que cuide das crianças enquanto faz os bicos. No alto do morro, as crianças contam apenas com uma pequena quadra de piso irregular para brincar.

Com quatro crianças e um adolescente em casa, Gorete de Souza personifica mais uma estatística: 36% das mães no Brasil são chefes de família, estima pesquisa do Ibope. Os filhos desta cearense engolida pelo atraso têm pais diferentes – desconhecidos, mortos, ausentes.

– Dois dos pais deles morreram. Dois sumiram e um mora aqui perto, mas não ajuda em nada – resume Gorete, como se sintetizasse um Brasil renitente.

A única renda garantida da família vem da assistência do governo. Para aplacar os tentáculos da miséria, "é necessário mais do que os importantes programas de distribuição de renda", lembra o economista Francisco Menezes, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Na avaliação dele, é igualmente essencial oferecer serviços de qualidade que deem apoio para que as famílias superem a pobreza de forma mais ampla:

– Uma mãe que não tem creche perto de casa para deixar os filhos representa um tipo de carência que dificulta a entrada no mercado de trabalho – exemplifica – Conheço caso de mães que saem para trabalhar e deixam os filhos trancados em casa. É uma situação muito perigosa.

Gorete gostaria, como milhões de brasileiros em apertos semelhantes, que os filhos estudassem em tempo integral na escola. Argumenta que, assim, as crianças poderiam se alimentar e ficar em segurança enquanto ela trabalha.

– Tenho muito medo de ficarem jogados por aí. É difícil sair para trabalhar e deixá-los com qualquer um – desabafa.

O sufoco é sugerido pelo barraco remendado, mal iluminado e pouco arejado. A ventilação na casa passa apenas por um pequeno basculante ou pela única porta da residência, na qual políticos colam cartazes pedindo votos. A falta de circulação do ar faz proliferar o mofo sobre as paredes úmidas de infiltração. Na despensa e na geladeira a comida teima em acabar antes da hora:

– Estou passando um perrengue. Falta muito para acabar o mês e só tem um pouco de arroz, feijão e fubá. Às vezes eles pedem pão, leite, e não tem.

Custo de vida carioca dificulta saída da pobreza e exige ajuste nos parâmetros de avaliação

Não é preciso andar muito na comunidade de Santo Amaro para encontrar dramas parecidos. Quatro lances de escada acima da casa de Gorete, depois mais cinco lances abaixo, mora Tereza Ribeiro do Nascimento, 45 anos. No barraco de três cômodos, 15 metros quadrados, metade feito de tábuas de madeira, a outra metade de alvenaria, Tereza e os três filhos sobrevivem com os bicos do marido. Como tem de cuidar de um filho com necessidades especiais, ela também encontra dificuldade para trabalhar.

Somados o dinheiro do marido e o auxílio de programas assistenciais, a família vive com R$ 700 por mês e escapa da etiqueta "pobreza extrema" na qual se enquadram aquelas com R$ 70 per capita mensais. O parâmetro, contudo, revela-se um tanto desajustado a centros, como o Rio, em que o alto custo de vida morde com mais voracidade as receitas domésticas, pondera o secretário de Direitos Humanos e Assistência Social do Estado, Rodrigo Neves.

– Por ser uma região metropolitana, onde o custo de vida é mais alto, o repasse da renda precisa ser mais generoso. No Brasil sem miséria, o limite para medir a pobreza é de R$ 70 por indivíduo mensalmente, a partir da média nacional. No Rio, estipulamos R$ 100 per capita/mês – avalia o sociólogo formado pela Universidade Federal Fluminense.

Gorete e Tereza sabem bem o peso, na renda mensal familiar do custo de vida no Rio, que tem a terceira maior renda per capita do país, atrás só de São Paulo e do Distrito Federal. Moradora de uma das cidades mais caras das Américas, Tereza inclui, em seus gastos básicos, a compra sistemática de remédios e alimentos específicos para o filho que não consegue andar e mal sai da casa, num dos pontos mais altos do morro, de onde avista o Outeiro da Glória e o Palácio do Catete, antiga sede do governo federal. 

– Não sobra quase nada. Queria fazer obra na casa, mas fica difícil. O dinheiro não dá – lamenta uma resignada Tereza.

A miséria no Estado do Rio concentra-se nas áreas metropolitanas. O estudo do IBGE aponta que, entre os que vivem na pobreza extrema, 91,5% moram na zona urbana e apenas 8,5% nas áreas rurais. 

Tereza descarta a mudança para outra região, apesar das dificuldades impostas pela falta de dinheiro e expostas nas feições envelhecidas que sugerem mais do que os 45 anos da certidão. Também mostra-se resignada em relação à surpresa relativamente comum dos que, diante do rosto enrugado e dos cabelos brancos, descobrem sua verdadeira idade. Tiago Coelho

– Pela cara, pareço que tenho muito mais, não é? Todo mundo diz. Mas é o sofrimento da vida que faz isso com a gente – justifica, sem apelo ao óbvio.

A avaliação da pobreza extrema

Para determinar quem vive ou não em pobreza extrema, há critérios além da renda, observa Neves. A condição da moradia, a quantidade de cômodos, a escolaridade e o vínculo de trabalho formal ou informal também contam. É o chamado índice de vulnerabilidade, do qual Gorete não escapa em nenhum aspecto.

Como não concluiu o ensino fundamental, no Ceará, as opções no mercado tornam-se limitadas. Entre os bicos e os cuidados com o lar, confessa que seu maior medo é "adoecer e não poder cuidar dos filhos":

– Tudo o que espero é que meus filhos não descambem para o lado errado. Estou tentando criar na honestidade. Mas vou te falar, a vida tá muito dura.

Para defender tese de doutorado sobre a experiência da pobreza na favela de Rio das Pedras, zona oeste do Rio, a professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Maria Sarah da Silva Telles fez uma pesquisa de campo na qual constatou casos como o de Gorete. Migrantes nordestinos em moradias precárias, carentes de políticas habitacionais e a mercê do poder paralelo:

– Acompanhei a trajetória de famílias na extrema pobreza, a maioria habitando em barraco de madeira, lutando para permanecer na favela, como a única possibilidade de permanecer na cidade do Rio, já que eram todos migrantes nordestinos. O que logo ficou claro foram a enorme carência de uma política habitacional na cidade e a absoluta dependência das lideranças locais, no caso composta de milicianos.   

No morro Santo Amaro, a Força de Segurança Nacional inibe o tráfico, enquanto os moradores seguem a rotina na padaria, nas igrejas, nos bares. Ninguém opina sobre a presença do tráfico ou da polícia. A lei do silêncio fala mais alto. Transporte público no local, só alternativo.

Para brincar "com espaço e segurança", M.P. Silva, 45 anos, leva os três filhos para o Aterro do Flamengo nos fins de semana, pois não quer seus “meninos brincando pela comunidade". Durante a semana, quando não estão no colégio, ficam “presos” dentro de casa. Certa vez uma bala passou tão perto dela que ficou horas sentindo um zunido no ouvido. Noutra ocasião, teve a casa invadida por traficante que fugia da polícia. Com o marido de licença médica, conta com o auxílio do Bolsa Família para sustentar a família reforçada de um recém-nascido.

– Dá para se virar – diz, desanimada.

Ânimo para brigar com a pobreza

Diante da dureza, Gorete precisa buscar motivos diariamente para levantar da cama. Era uma manhã de sábado ensolarada no morro Santo Amaro quando, por volta das 10h, a equipe do Portal batia à porta. Gorete aninhava-se com as quatro crianças em uma cama de casal. O sol que ardia lá fora não penetrava na casa abafada e minúscula onde os pequenos logo pulavam agitados. Tiago Coelho

A agitação infantil era oposta aos gestos reservados de Gorete, como se procurasse forças para encarar o dia. Para Maria da Glória Rocha, coordenadora da Pastoral da Criança no Rio e veterana em trabalho assistenciais no morro, um dos principais desafios é recuperar a esperança que escorre pela falta de comida e de perspectiva:

– Quando se chega numa determinada situação de pobreza, no fundo do poço da miséria, as pessoas ficam com pouco ânimo e coragem para reagir. Levantar da cama é difícil.

Na próxima reportagem da série, o Portal revela o cotidiano de uma família de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde as condições de pobreza extrema estão entre as mais crônicas do Estado do Rio.