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Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2024


País

Programas sociais interferem na escolha religiosa de brasileiros

Tiago Coelho - Do Portal

11/07/2012

Eduardo de Holanda

O resultado do Censo Demográfico 2010 do IBGE mostrou que no campo religioso a sociedade brasileira acompanha um movimento que se observa há quatro décadas: a redução do número de católicos, cuja parcela na população nacional caiu 27 pontos percentuais, de 91% em 1970 para 64% em 2010, enquanto a parcela dos evangélicos, sobretudo pentecostais, cresceu 17 pontos percentuais no mesmo período, de 5% para 22% (veja o quadro no pé do texto). Mas o que há de novo neste cenário, segundo avalia o cientista político Cesar Romero Jacob, é a diminuição do ritmo do crescimento evangélico e da perda de católicos. A raiz deste fenômeno está em questões sociais e econômicas, conforme apontou o diretor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e autor de livros que detalham a geografia das religiões no Brasil, como Religião e Sociedade em Capitais Brasileira (2006) e Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil (2003).

Para explicar esse entra e sai dos templos cristãos no Brasil, o pesquisador aponta a política de assistência social do governo – da qual o programa mais conhecido, e badalado, é o Bolsa Família –como o principal motivo para a redução do ritmo de crescimento evangélico e do ritmo de diminuição do número de católicos. Romero também mostra que o processo de mudança religiosa no país começa com o ciclo migratório de regiões predominantemente católicas para a periferia das grandes metrópoles e a fronteira agrícola do país, onde há uma menor presença do Estado brasileiro e da Igreja Católica. Por isso, observa-se nestas regiões o aumento da população evangélica, principalmente pentecostal. O especialista considera significativo o encolhimento católico, que reduziu nove pontos percentuais em relação ao censo anterior, uma perda de 1,7 milhão de pessoas em 10 anos, apesar de ainda ser a maior nação católica do mundo, com mais de 123 milhões. Ele ressalva, entretanto, que as políticas de distribuição de renda foram fundamentais para diminuir o "desespero" das populações periféricas e desacelerar o crescimento das igrejas pentecostais, que exercem um trabalho de "proteção social" aos que estavam à margem do Estado e das instituições católicas.

Em entrevista ao Portal PUC-Rio, Cesar Romero também fala sobre onde cada religião é mais forte no Brasil, o alto crescimento dos que se declaram sem religião e como esta dinâmica interfere no cenário político e eleitoral brasileiro:

Portal PUC-Rio: A queda do número de fiéis católicos e o crescimento da população evangélica são um fenômeno que se observa desde a década de 1970 e se repete no mais recente resultado da pesquisa do IBGE. O que este censo traz de novidade sobre os grupos religiosos no Brasil?

Cesar Romero Jacob: A Igreja Católica, somando as perdas nos últimos 40 anos, viu seu volume de fieis diminuir em 27 pontos percentuais a parcela na população brasileira. Perdeu um terço do número de pessoas que se declaravam católicas. Não é pouca coisa, mas o ritmo da queda começa a diminuir. O número de evangélicos também continua crescendo, mas em um ritmo menos acentuado. O que há de novo nesta pesquisa é a queda no ritmo do crescimento dos evangélicos e na perda de fiéis católicos.Amanda Reis 

Portal: Quais são os motivos desses movimentos? As razões são propriamente religiosas ou teológicas?

Cesar Romero: Tem a ver com questões sociais, principalmente. O desenraizamento religioso deriva do processo migratório e de questões como a ausência do Estado e presença insuficiente da Igreja Católica em algumas regiões.

Portal: Como a migração explica esse fenômeno?

Cesar Romero: No Brasil, a Igreja Católica é mais forte no Nordeste, avançando por Minas Gerias e na Região Sul. A fé católica é mais forte no Brasil de onde saem os migrantes. E esta parcela da população vai para a periferia das grandes cidades ou para a fronteira agrícola do país. Há um desenraizamento religioso quando o sujeito migra do campo para a cidade ou para a fronteira agrícola. Se a Igreja Católica e o Estado não estão lá, então outros grupos irão marcar presença.

Portal: Mas sempre que há migração observa-se esse "desenraizamento religioso"?

Cesar Romero: Não necessariamente. Nos anos 1950, 1960 e 1970, a  migração do campo para cidade era muito grande e as pessoas não deixaram de ser católicas. A partir dos anos 1980 continua havendo migração, mas neste período se observa o desenraizamento religioso. A diferença acontece porque o capitalismo brasileiro vai viver dois momentos diferentes. Nos anos 1950, 1960 e 1970, a população que saía do campo vem para a cidade atraída pela perspectiva de melhorar de vida. Era o Brasil se urbanizando e se industrializando, que acenava com empregos e a possibilidade de melhoria de vida. E melhorou. Porque a expansão da economia urbana no setor industrial, do comércio e serviços deu emprego para essa população que chegou vinda de regiões católicas, e essas pessoas continuaram católicas. A partir dos anos 1980, 1990, já não acontece mais isso. A população que sai de onde o Brasil é mais católico (Nordeste e Minas Gerias), atraída pela cidade, encontra a economia industrial brasileira estagnada nos anos 1980 e 1990, época da hiperinflação e da crise do Estado brasileiro. A população do campo é expulsa porque o setor de agronegócios continuou se expandindo. Houve mecanização da agricultura, que expulsou a mão de obra com baixa escolaridade, que vai para a cidade.

Portal: O senhor pode explicar melhor como as ausências do Estado e da Igreja Católica na periferia das grandes cidades e na fronteira agrícola contribuíram para a mudança de religião dos migrantes?

Cesar Romero: Esta parcela da população que migra a partir dos anos 1980 vai morar na periferia das grandes cidades; ou na fronteira agrícola, onde há uma carência de serviços básicos como escolas, hospitais, segurança pública e saneamento básico. Além disso, a Igreja Católica possui uma estrutura de paróquias, colégios e universidades muito menor do que no centro das metrópoles. Por este motivo, as igrejas evangélicas, sobretudo as  pentecostais vão assumir um papel central na periferia e na fronteira agrícola, ganhando força entre a população local. Nessa situação de caos as pessoas vão encontrar na Igreja Evangélica um espaço de organização. Nesses locais não há sindicatos, partidos políticos, então as pessoas se reorganizam nas igrejas. Que vão ter várias funções de proteção do próprio grupo, formando-se uma comunidade forte. Cria-se uma rede de proteção e acolhimento para o migrante que se vê à margem da estrutura católica e das políticas do Estado. E como se diz no jargão futebolístico: quem não faz, leva.

Portal: Onde as populações católica e evangélica são, respectivamente, mais fortes no país?

Cesar Romero: Os católicos são maioria no centro e os evangélicos, na periferia metropolitana e na fronteira agrícola do país. O catolicismo é forte onde há estrutura (do Estado e da Igreja). As partes mais ricas das capitais onde estão as classes A e B e C, sobretudo, a Igreja Católica vai muito bem. No Rio de Janeiro, por exemplo, o número de católicos é mais forte no Centro, Zona Sul, Niterói e na Barra da Tijuca, onde há uma ampla estrutura da instituição católica, como colégios, a própria PUC, rede de hospitais e paróquias. São áreas que continuam predominantemente católicas. Na periferia e na fronteira agrícola, o Estado brasileiro quebrado não acompanha a migração e se mostra ausente. É nesta ausência que o narcotráfico domina. A Igreja Católica não teve agilidade para se deslocar para estas áreas. O problema dos grandes centros está ligado à segregação. As favelas da Zona Sul continuam católicas, porque estão em áreas onde o catolicismo possui estruturas solidificadas. Mas no complexo da Maré, por exemplo, isso não acontece, pois está numa área isolada, segregada. Ao contrário da Zona da Leopoldina (Ramos, Olaria, Bonsucesso, Penha), que reúne muitas favelas mas conta com uma presença significativa da igreja romana. Do outro lado da Avenida Brasil, no Complexo da Maré, a população está segregada, e na segregação cresce o pentecostalismo. O pentecostalismo surge com mais força na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, e vai aumentando à medida que se afasta dos centros para a periferia. A Igreja Católica não fez aquilo que diz uma música do Milton Nascimento: “o artista tem que ir aonde o povo está”. E o povo está na periferia.

Portal: Como a queda de católicos e o crescimento de evangélicos, pelos motivos que o senhor explicou, são observados há quatro décadas, a redução do ritmo desses movimentos insinua-se a maior novidade registrada pela nova pesquisa do IBGE. Na sua opinião, quais são as causas das desacelerações?

Cesar Romero: Eu acho que tem a ver com o fato de o Estado passar a se fazer presente através dos programas de inclusão social, como o Bolsa Família, e muitos outros programas de assistência dos governos federais e estaduais, com suas políticas de complementação de renda. Esses programas atingem as classes D e E, que são mais desamparadas. O Estado começa a se fazer presente para essa população. O desespero de sobrevivência dessas populações fica menor. Isso poderia explicar a redução da queda de católicos e do crescimento de evangélicos. Porque agora o sujeito está menos desesperado e menos ansioso para encontrar conforto espiritual. Mas, como não há padre em determinadas áreas, o sujeito vai procurar o pastor. Mas não é uma mudança radical, pois as Igrejas Católicas e Evangélicas estão dentro do mesmo contexto do cristianismo. A mudança não é tão grande. Estão todas dentro do universo cristão. A razão é religiosa? Não. O sujeito não saiu da Igreja Católica para uma igreja diferente. Não é como a crise que se abateu no catolicismo durante a reforma religiosa no século XVI.

Portal: Mas no centro das grandes cidades, onde a Igreja está estruturada, também se observa uma queda no número de católicos...

Cesar Romero: É natural que haja uma diminuição nos grandes centros, pois o Brasil é um país aberto, plural e globalizado, que recebe influências de todos os tipos. Uma tendência maciça de fiéis só é possível em um país fechado como o Irã, que não tem espaço para a diversidade religiosa. Todo tipo de proposta religiosa está disponível na internet. Qualquer pessoa desconfortável do ponto de vista religioso pode fazer escolhas diferentes de religião.

Portal: O crescimento do número de pessoas sem religião também é representativo...

Cesar Romero: Sim. Este foi outro fenômeno importante nos últimos anos.  O percentual de pessoas sem religião nem chegava a 1% (0,8%). Agora correspondem a 8% da população. Mas isso significa um aumento de ateus ou agnósticos na mesma proporção. O sem-religião pode ser uma pessoa detentora de uma religiosidade, mas que não tem filiação religiosa a nenhuma igreja. Ele monta sua própria religiosidade a partir de influências diversas, de um sincretismo religioso. O sem-religião é sem filiação religiosa, mas é claro que entram aí também ateus e agnósticos.

Portal: Todos os setores da Igreja Evangélica cresceram?

Cesar Romero: Foi um crescimento sobretudo de evangélicos pentecostais, que estão associados a uma igreja que tem forte estrutura nas periferias. A Assembleia de Deus é a igreja com maior número de fiéis e a que mais cresceu nos últimos 10 anos (em 2000, reunia 8,4 milhões; em 2010, o número passou para 12,3 milhões de fiéis). Quanto aos evangélicos históricos (luteranos, metodistas, presbiterianos, batistas e anglicanos), não houve modificação substancial no número. A Igreja Universal, que também é pentecostal, apresentou queda: perdeu mais de 289 mil adeptos, passando de 2,102 milhões para 1,813 milhão na última década.Amanda Reis 

Portal: Os evangélicos, como um todo, cresceram 6%. Só os pentecostais cresceram 3%. Se os evangélicos históricos não apresentaram aumento, onde estão os outros 3%? 

Cesar Romero: Eu levantaria duas hipóteses. Uma delas é que, com o crescimento do número de evangélicos, passou-se a ter o evangélico que não está afiliado a igreja específica. Ele pode ir tanto à Assembleia de Deus, à Universal ou Deus é Amor, ou qualquer outra. Isso pode constituir num fenômeno semelhante ao que se observa entre os católicos, o do “não praticante”: o católico que se define católico mas não frequenta a missa. Toda religião, quando cresce, forma um grupo com os que se declaram daquela religião mas não a frequentam. A outra hipótese é a do microempreendedor religioso, aquele que cria sua própria igreja, que se espalha pela cidade. São as chamadas igrejas de "fundo de quintal". Mas o IBGE não dá conta, porque ela não é suficientemente robusta para entrar na lista de religiões evangélicas.

Portal: A "teologia da prosperidade" influencia na mudança para as igrejas evangélicas?

Cesar Romero: Não no grupo de pentecostais que está na periferia, mas sim na Classe C. A Assembleia de Deus professa a teologia da austeridade.  Você não tem como promover a teologia da prosperidade numa área miserável.  A igreja pentecostal atende melhor esta parcela da população por sua teologia da austeridade, mas não só por isso. Há um percentual maior de mulheres evangélicas do que homens. Quais são os maiores problemas da mulher evangélica na periferia? O medo que ela tem de o marido alcoólatra ficar desempregado, da filha virar prostituta e de o filho entrar para o tráfico. A Igreja Pentecostal cumpre o papel de manter a unidade familiar pela moral. A moral rigorosa da Assembleia de Deus cumpre o papel nessa população de manter a família unida.  A teologia da prosperidade encontra força no subúrbio onde está a classe C, que aspira um padrão de vida melhor. E é onde está a Universal do Reino de Deus, que professa este tipo de teologia. A Universal está no subúrbio do Rio. O seu maior e mais luxuoso templo está no subúrbio, onde há uma classe média que quer ter o padrão de vida do católico que está na Zona Sul, Barra, Tijuca e em Niterói. A aspiração dessa classe é consumir. E esta teologia é um caminho para o consumo. Os templos da Assembleia de Deus na periferia são modestos e os da Universal, megatemplos para dar a sensação de que você integra um mundo de prosperidade.

Portal: Significa, entre outras coisas, que a renda e o nível de escolaridade interferem no mapa religioso?

Cesar Romero: Sim. Na Zona Sul, Tijuca e Niterói, onde os católicos são mais fortes, a renda é alta e escolaridade, idem. Na área da Leopoldina, de escolaridade e renda média, os católicos também são fortes, mas há uma presença significativa da Universal do Reino de Deus. E os pentecostais são mais fortes na Baixada e São Gonçalo, onde a renda e a escolaridade são menores.

Portal: Há uma disputa muito forte, crescente, por parte dos políticos pelo eleitorado evangélico.

Cesar Romero: Sim. Na eleição de 1989, o então candidato Fermando Collor entendeu a expressividade desses votos e fez aliança com evangélicos pentecostais.  Nas regiões com muitos evangélicos havia mais votos para Collor. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique também fez. Em 2002, Lula entendeu que não dava para PT ter uma ligação muito forte com setores da Igreja Católica e com a teologia da libertação, e fez alianças com os pentecostais. Na eleição de 2002, o mapa dos votos de Garotinho era semelhante ao mapa dos evangélicos. Mais evangélicos, mais Garotinho. Mas é um voo de galinha, pois se o piso é alto, o teto é baixo. O Garotinho teve um piso alto mas o teto foi baixo, pois onde o Brasil é mais católico ele não tinha voto. Há uma nítida rejeição onde o Brasil é mais católico. Significa dizer que, em eleição majoritária, isso coloca um problema grave; mas, em eleição proporcional, não. Em eleição majoritária, se você é muito identificado com uma religião ou clube de futebol, não se elege. Há uma rejeição muito forte. Em eleição proporcional, a bancada evangélica se faz como as bancadas gay, sindicalista e ruralista. São certos setores que desejam representação no Congresso, mas majoritariamente esses setores não conseguiriam se eleger.

Portal: Então a possibilidade se ter um presidente evangélico é remota?

Cesar Romero: Eu não vejo a religião como empecilho, desde que não haja proselitismo religioso. A defesa de um discurso religioso gera reações dos outros grupos não identificados. Desde o inicio da República, o Brasil tenta separar a igreja do Estado. Ao contrário do Irã, que é uma teocracia: quem manda no Estado é a religião. Já no Brasil, e na maior parte dos países, o Estado é laico: quem o sustenta são pessoas de inúmeras religiões, não a religião. O Estado não tem que ser a favor de A, B, C ou D. Kennedy era católico e se elegeu presidente dos Estados Unidos, que tem maioria protestante. Então não há problema, pois é uma questão de foro íntimo. Ele não utilizou a estrutura da Igreja Católica para se eleger. Fernando Henrique Cardoso é ateu, problema nenhum, pois ele não fazia propaganda disso. Mas, para os políticos que fazem da religião um palanque, fica difícil conquistar o eleitorado de outras religiões.

Número de católicos e evangélicos muda significativamente em 40 anos

Em 40 anos, a Igreja Católica viu o número de fiéis despencar. De aproximadamente 90% da população brasileira na década de 1970 para 64% em 2010. O percentual de evangélicos, por outro lado, aumentou de 5% para 22% no mesmo período, como mostra o quadro abaixo. O crescimento da população evangélica, no entanto, é impulsionado pela vertente pentecostal, que cresce mais que os devotos das Igrejas Evangélicas de Missão (luteranas, presbiterianas, metodistas, batistas). O elemento novo neste cenário cristão é a redução do ritmo de crescimento evangélico e da diminuição de adeptos do catolicismo.     

Anos

Católicos

Evangélicos

Evangélicos

Evangélicos

Outras

Sem

 

 

de Missão

Pentecostais

Total

Religiões

 Religião

1970

91,8

 

 

5,2

2,5

0,8

 

 

 

 

 

 

1980

89,0

3,4

3,2

6,6

3,1

1,6

 

 

 

 

 

 

1991

83,3

3,0

6,0

9,0

3,6

4,7

 

 

 

 

 

 

2000

73,6

4,1

10,4

15,4

3,2

7,4

 

 

 

 

 

 

 

2010

64,6

4,0

13,3

22,2

5,2

8,0

Fontes: Censos Demográficos 1970, 1980, 1991 e 2010 IBGE